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A capa do disco |
Esse ano faz meio século de um disco que ainda hoje é
meio desconhecido e que certamente só foi redescoberto mesmo depois da morte do
Raul Seixas. È o Sessão das Dez, da Sociedade da Grã-Ordem Cavernista.
Quando Raul morreu, em 1989, o disco reapareceu na
onda de relançamentos de sua discografia. Esse, ao contrário da sua fase
Philips, mais associada à onda da MPB dos anos 70, e os demais, lançados em
diversas gravadoras, como a Copacabana, são os que comporiam o cânone da sua
obra.
No entanto, esse disco, que foi relançado em vinil
em meados dos anos 90, numa edição limitada, já saiu como raridade. O disco
depois naturalmente sumiu, para reaparecer com a Internet. Isso também na onda
da redescoberta de toda uma produção musical brasileira cujo espectro ainda
unia MPB e rock.
Sessão das 10 já era lenda antes que as pessoas
tomassem conhecimento dele. Existe um documentário onde Edy Star, um dos
Cavernistas (ou Kavernistas) sobreviventes, como detalhes interessantes sobre
os bastidores da gravação do álbum e desfaz alguns mitos.
O mais interessante deles era o de que o disco fora
gravado às escondidas. Edy rebate, e diz que não só o disco fora produzido com
o consentimento de gente da gravadora como fez largo uso de músicos de estúdio
do próprio selo. Na verdade, o grande problema do disco era a proposta com
relação à própria CBS, a gravadora onde Raul trabalhava e, junto com Sérgio
Sampaio, teve a idéia de lançar o disco underground.
(um parêntese: essa aura undeground iria seguir com os quatro pelo resto da vida. A despeito do enorme sucesso, Raul sempre fora um marginal, da mesma forma como Sérgio, que era considerado um dos "malditos" e Míriam Batucada, que foi uma excelente cantora e performer cuja carreira nunca deslanchou).
Existe um trecho de entrevista de Raul, onde ele critica o pensamento da CBS. De fato, se formos pensar, em 1971, a gravadora de Roberto Carlos e outros luminares da Jovem Guarda ainda pensava esteticamente daquela forma. Não seria errado pensar que, de certa forma, ela foi responsável pela transformação da Jovem Guarda no brega dos anos 1970 – uma espécia de maneirismo estendido onde todas os artistas pareciam o mesmo, mesmos arranjos, mesmas versões estrangeiras para um público docilizado por essa estética. Numa gravadora como a CBS, seria impensável um disco nos moldes do Mothers of Invention, ainda mais capitaneado por artistas praticamente desconhecidos.Ainda atuando nos bastidores da indústria do disco, Raul descobre Sérgio como compositor e cantor - ambos produziriam o compacto sinples "Coco Verde", que Dóris Monteiro regravaria a canção no álbum Doris, de 1971.
Gravar rock nos moldes do rock “underground”
internacional era impossível naqueles tempos. Alguma exceção pode-se encontrar
no disco do Gilberto Gil de 1969, que foi uma das últimas incursões de Gil e
Rogério Duprat no terreno da tropicália e na avant-garde (sem falar dos
Mutantes, também da Polydor). Na época, outros tentaram estabelecer carreira fazendo
rock psicodélico: Som Imaginário, Módulo 1000 ou Equipe Mercado. Todos em geral
foram barrados pela falta de promoção e de interesse desse mesmo público
docilizado.
Fazer rock (não a Jovem Guarda) no Brasil era mais
underground que o próprio underground, era pregar no deserto. Só para citar
exemplos, o Não Fale Com Paredes, do Módulo 1000 (produzido por Ademir Lemos
pela Top Tape) foi rechaçado pela gravadora. A coletânea pau de sebo Posições
(Odeon, 1970), teve título e capa vetadas pela Censura Federal e ninguém viu ou
ouviu o álbum, hoje uma raridade e clássico entre colecionadores e
pesquisadores. Por fim o Geração Bendita, projeto que naufragou por conta da
censura junto com o filme, que só seria lançado em 1974, já devidamente
cortado.
Nesse contexto que Sérgio Sampaio e Raul escalaram
Míriam Batucada e Edy Star para o Sessão das 10. O disco é interessante pela
ousadia, originalidade e como comentário social da época. Em 1971, viva-se a
época do Milagre, onde o sonho do brasileiro médio – em especial, o carioca,
era ter uma televisão na sala, pode ter acesso à crédito para compra de
eletrodomésticos, automóveis até apartamentos. As letras do disco, em geral,
fazem contraponto à esse clima de euforia protagonizado por uma classe média em
ascensão, e que se orgulhava de ver-se na tevê e, de repente, subir de classe,
tento pleno acesso a bens de consumo duráveis.
A própria bolha econômica da época, no Rio, provocou
um aumento na construção civil, principalmente em bairros nobres da Belacap
(como diria Ibrahim), Lagoa, Jardim Botânico, Ipanema, Leblon. Ao passar os
olhos em coleções de jornais da época, é comum anúncios – alguns de página
inteira, anunciando apartamentos que acenavam para a possibilidade de pagamento
em suaves prestações. Ao mesmo tempo, com o recrudescimento do regime militar
com o AI-5, o que restou para a classe cultural foi desbundar, gíria da época
para aqueles que declinavam da militância política em troca de sexo, drogas e
rock’n roll. Como fenômeno temporão, o hippie vira um personagem da fauna carioca.
Era a época da Gal no Tereza Raquel e as dunas do
barato no Píer de Ipanema. É esse Rio de
uma classe média “joie de vivere” que serve de moldura para as canções do
Sessão das 10. O contraponto a isso, e que seria recorrente na produção
posterior de Raul é o deboche e o ceticismo a esse estado de coisas. Como visão
de época, o Sessão das 10 seria um ótimo exemplo para estudar texto e contexto
a partir das canções que, em geral, à moda da banda experimental de Frank
Zappa, transitam por vários estilos, do baião e o samba ao rock e a seresta.
Mal comparando, na mesma linha da contracultura fora de época, os Cavernistas
eram uma espécie de Mothers of Invention brazuca.
Porém, como ressaltou Edy Star, se o álbum não teve
nenhum problema para a produção, depois de lançado, ele seria censurado pela
própria CBS. Como ele observa, não foi a censura da ditadura a responsável pela
interdição do álbum: foi a própria gravadora. A CBS já dava mostras que era um
ambiente musicalmente fechado – até no exemplo do episódio da gravação de um
compacto simples com Tim Maia. O cantor depois viu-se frustrado pelo fato de
que eles simplesmente não sabiam gravar soul. Se eles aprenderam a produzir
Jovem Guarda e alhures, eram castiços com relação a outros gêneros e muito
provavelmente alheios a qualquer mudança.
Logo, falar do Sessão das 10 é, ao mesmo tempo, falar
do contexto do contexto social e político em que ele foi gravado e, também, do
musical. Se formos pensar além, só mais tarde, em 1973, com o inesperado
sucesso do Secos e Molhados – numa gravadora brasileira e que não fazia parte
das majors multinacionais do disco, que seria possível dizer que houve uma abertura
para esse tipo de produção parecida com o Sessão das 10. Mesmo assim, projetos
audaciosos como o álbum conceitual dos Cavernistas seria ousado demais até para
uma gravadora mais “aberta” como a Philips. Importante lembrar que André Midani
também vetou projetos mais heterodoxos, como o disco do dou Cilibrinas do Éden
e o progressivo A e o Z, dos Mutantes. Ou seja, o rock tinha apenas dois
caminhos naquele momento: ou seguia as regras da arte das grandes gravadoras em
favor de uma produção radiofônica ou então apelar para a produção independente.
Raul, que fora produtor da CBS e conhecia o mercado fonográfico, quando
lançou-se, no estertor da Era dos Festivais, sabia exatamente onde a corda
esticava. Por isso que, depois do sucesso de “Let Me Sing”, ele seguiu o
primeiro caminho. Mesmo assim, acabou se transformando como baluarte do rock
numa época tão adversa como os anos 70.
Numa coluna Som de O Globo, de 27 de janeiro de 1974, Nelson Motta fala do sucesso de Raul e das razões dele: "O sucesso de "Ouro de Tolo" se baseou em dois fatores diametralmente opostos: a coisa nova e a coisa velha. Raul usou como melodia um tema muito próximo do estilo da música de Roberto Carlos, como "Detalhes" e outros. Só que usou a música de uma forma causticamente crítica, como pano de fundo para uma letra autobiográfica em que desmoralizava com humor ácido alguns dos sonhos e ilusões da classe média: o cidadão respeitável, o Corcel 73, jardim zoológico, tobogã*, a vida tranquila, a certeza do sucesso, a casa própria, etc". Como se vê, esses elementos já estavam geneticamente dispostos no projeto do Sessão das 10.
* Na época, havia a moda do tobogã, como o do Tivoli Park, na Lagoa, perto de onde Rasul Seixas morava. E o famoso Ford Corcel, quando foi lançado, se transformou numa espécie de sucedâneo do DKW, marca que não vingou no Brasil de todo.
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