Thursday, April 29, 2021

Música Inacabada

 

A capa do disco


Aconteceu de eu reouvir o primeiro disco solo da Plastic Ono Band e a Apple lançar o Box (muito bom por sinal) com demos, outtakes e mixagens alternativas do álbum, lançado em dezembro de 1970.

Eu tive esse disco em vinil quando comecei a escutar Beatles. A verdade é que eu nunca gostei muito desse disco no começo. Achava cru demais, achava essa negação dos Beatles algo que ia contra os meus princípios beatlemaníacos na época, além do fato de que eu era contra toda qualquer produção deles. Diferente dos fãs que acham que suas carreiras solo são os Beatles separados, para mim já não são os Beatles. É outra coisa. Quem ouve os discos sente que falta algo que nunca vai ser preenchido.

É melhor pensar que cada produção solo tem vida própria. Por isso que eu desconsidero esses projetos tipo o Hot As Sun, que é uma invenção apócrifa que, a partir do que seriam as melhores músicas solo pós-Beatles, seria possível pensar um álbum pós-Abbey Road. Acho que isso pode ficar por conta do imaginário dos fãs dos Beatles, mas não faz sentido.

Esse disco da Plastic Ono Band, por exemplo. Ele é único e intransferível. Eu acho que não tem como imaginá-lo hipoteticamente como parte de algo que poderia ser associado ao trabalho dos quatro ou colocado como parte do que seria algo tributário do mundo dos Beatles.

Eles se separaram justamente porque esse tipo de produção, como o Plastic Ono Band, não cabe nos Beatles. E, no fim, cada um tinha tanta coisa a dizer além dos Beatles e eram obrigados, no fim das contas, a se tornaram uma espécie de franquia deles mesmos, fazendo música Beatles pret-a-porter para os fãs. E acho que a pior coisa que poderia acontecer com eles era viraram covers deles mesmos. E é isso o que o John fala naquela entrevista ao Jenn Wenner*. Ele sabia que suas novas canções desse disco eram fortes e, talvez, mais fortes e lúcidas do que muita coisa que ele escreveu ou compôs com Paul nos Beatles. Ele naturalmente não renegava de todo os Beatles mas é possível notar a distância entre alguém que virou funcionário de uma franquia para agradar os admiradores dos Beatles que não viveram aquele tempo. Provavelmente chega uma hora que isso não faz o menor sentido. E se desvincular da franquia era algo imperioso naquele momento.

Claro que eu, na figura de fã, não entendia isso. E o Plastic Ono Band, e o McCartney I sempre me soaram como uma grande traição dos dois. E o George, que eu já comentei aqui, é outro, com o All Things Must Pass, que eu só fui me converter depois de velho. Mas me converti no sentido de saber separar o momento deles pós-Beatles como uma grande demanda pessoal de cada um deles, e que não é traição aos Beatles nem aos fãs deles.

Por fim, acho que o Plastic... é um disco duro de ouvir. Muito já se falou sobre as sessões de terapia com o Janov que o John Passou. Lendo o livro do Hunter Davies** e a rejeição do John à biografia oficial dos Beatles, acho que ficou claro – pelo menos para mim – que ele rejeitou a forma como a infância foi retratada no livro, como se não existisse a menor sombra de trauma com o desaparecimento do pai e a morte prematura da mãe, que também o rejeitou, e a imagem de infância idílica apresentada por Mimi.

Depois disso, John entrou de cabeça na carreira com os demais Beatles e não parou. Foram dez anos imerso no sonho, que terminou em outro trauma, separação, além da paixão por Yoko que, de certa forma, foi um retorno ao eterno feminino da mãe perdida mas que, na vida real, encontrou o rechaço de fãs e dos próprios parceiros. Para culminar, a forma como a banda acabou e, por fim, a terapia.

Acho que pensando nesses termos, é possível entender perfeitamente o contexto do disco. As canções são uma espécie de catarse e, ao mesmo tempo, uma repaginação nas perspectivas de vida, a forma de lidar com isso segundo ele foi expondo todas as feridas e toda a dor e todos os traumas que vieram à tona naquele momento extremo, catalisado pelo fim dos Beatles.

É possível ver que, como ele diz na entrevista da Rolling Stone, ele é ele mesmo ali. A metáfora do “I was the walrus but now I‘m John” pode ser explicada (além da explicação que ele dá na entrevista) como essa liberação da “franquia” dos Beatles: John não queria mais escrever coisas que eram basicamente novelity songs, como “Dig a Pony”, “Mean Mr. Mustard” ou “Hey Buldog”. Nos últimos discos dos Beatles é possível vislumbrar esse coração duplo de John, o que faz as músicas ele mesmo e o heterônimo “beatle John”, que faz canções para a franquia. E isso ele fala bem no começo da entrevista ao Wenner. Porém, ele vai nesse desvelamento do eu às últimas conseqüências, e talvez seja por isso que o Plastic Ono Band seja um disco tão único e tão difícil de ouvir.

E como um disco de transição, ao escutar o box, é possível ver toda a genética da produção do álbum, todos os caminhos que ele escolheu para a mixagem da cada faixa. Algumas parecem melhores nas mixagens ou outtakes alternativos. Pessoalmente eu acho que os takes definitivos são quase sempre melhores, mas é sempre interessante ver os caminhos escolhidos por John.

O primeiro é usar apenas três músicos. O segundo é alternar canções do acústico para o piano, como “Mother” ou “Remember”. Ou exemplos no Box onde John tentou usar double tracking (coisa que ele fazia extensivamente nos discos dos Beatles) mas, no fim, querendo dar um caráter mais cru ao disco, acabou dispensando esse expediente. O disco ficou cru apesar de tudo, era a forma de relacionar o conteúdo das letras com a produção.

O que me pareceu interessante é que, depois de todos os experimentalismos, desde os Beatles até o primeiros trabalhos fonográficos associados à Yoko Ono, como Revolution 9 ou os discos Unfinished Music, John sempre foi tributário do apojo do rock dos anos 50. Isso é possível ver nos demos nas sessões de gravação. Quando ele improvisa com Ringo “Send Me Some Lovin” é possível tanto vislumbrar aquele disco de oldies que eles iriam (iriam?) fazer nas sessões Get Back quanto o começo do álbum Rock’n Roll. A verdade é o John, a despeito de todos os modismos, sempre foi roqueiro, sempre detestou o resto – principalmente o jazz, por razões explicáveis tanto na biografia do Hunter Davies quanto na entrevista da Rolling Stone. Tanto que, na sua fase solo, atavismos dessa primeira influência sempre reaparecem em seus trabalhos, desde os covers do  Live Peace in Toronto, em “Come Togheter” (emulando Chuck Berry) quanto em “(Just Like) Starting Over”, que mistura Lloyd Price com o do wop típico dos anos 50.

Outras curiosidades da caixa: versões primitivas de "Love" ainda acústicas, e de "Look at Me" sem o dedilhado que ele usa em várias faixas do Álbum Branco. E outras descobertas, como o arranjo de "God" (cuja demo foi popularizada originalmente nos programas da rádio Westwood e nos bootlegs Lost Lennon Tapes mas agora aparecem em versão remasterizada) , na verdade, é totalmente inspirado na versão de Ketty Lester para "Love Letters" - versão que Elvis Presley praticamente copiou para a sua versão, tempos depois. Infelizmente as jams roqueiras do Plastic Ono Band não desaguaram num álbum paralelo (que seria o Rock’n Roll) embora mostram evidências desse atavismo no rock, e que foi uma constante em seu trabalho). Aliás, pela primeira vez, as conhecidas jams - com covers de clássicos do rock dos anos 50 aparecem remasterizados pela primeira vez neste box: alguns eram conhecidos, como as de "Honey Don't", "Hound Dog" e "Don't Be Cruel" (embora apenas no âmbito dos bootleggers, por causa dos Lost Lennon Tapes também). Porém, o mais interessante no box de Plastic Ono Band é poder experimentar, disco a disco, todo o processo de criação de John, desde os demos até a construção do disco, faixa a faixa. 

* John Lennon Remembers. Rolling Stone, 1970. 

** A Vida dos Beatles, Hunter Davies, 1968. 


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