Monday, May 24, 2021

80

Dylan em 1966

A primeira vez que eu ouvi Bob Dylan foi no rádio, em alguma FM, tocando “Lay, Lady, Lay”. Como era comum naquela época, a gente escutava determinado artista mas não tinha idéia de quem era ou qual era a sua cara. Então, quando eu ouvi Bob Dylan pela primeira vez, ele era apenas música, um cara cantando uma música. Com o tempo que eu associei aquela música com o cantor que ia se apresentar pela primeira vez no Brasil. A gravadora dele lançou uma coletânea que, na verdade, era aquela greatest hits de sempre, porém com outra capa, com uma imagem recente dele, provavelmente com fins comerciais. O problema daquele disco era que ele falava de um repertório muito antigo dele. Mas aquela coletânea era como a do Simon & Garfunkel, praticamente todo mundo tinha aquele disco. Em geral, eram discos que as pessoas compravam por causa de uma ou outra canção. Lembro de vasculhar as caixas de discos em sebos. Sempre na letra B quando eu procurava pelos discos dos Beatles, eu me deparava com a cara do Bob Dylan me olhando na foto da capa do Highway 61 Revisited. Não sei por que, não me interessava nada nele nem naquele disco mas alguma coisa no fundo da minha mente me dizia que eu iria um dia comprar aquele disco. Eu só fui ouvir Bob Dylan quando eu ganhei – de uma forma inusitada – uma cópia da trilha do filme Easy Rider. Até então, rock para mim era aquele iê iê iê do começo dos anos 1960. Quando eu escutei aquele disco, eu desbundei. Já estava na faculdade e aquele era o momento certo para desbundar. Eu ouvia aquelas canções tipo “The Pusher”, “If Six Was Nine” mas a interpretação do McGuinn para “Its Allright Ma” me deixou ligado. Então eu descobri que desde aquele libelo da liberdade em “Ballad of Easy Rider” e o desesperado grito niilista de “Its Allright Ma” eram canções do Bob Dylan. Foi quando eu resolvi comprar aquela coletânea comum. Qual foi a surpresa: uma coisa é você ouvir uma canção no rádio, por tabela. A outra é você comprar o disco (como se fazia antigamente), sentar na frente da eletrola, tirar os sapatos e ouvir o disco porque você quer ouvi-lo. E aquilo fazer a sua cabeça. Eu lembro de passar a vista nas faixas do elepê. Parei em “Subterranean Homesick Blues”, parecia um discurso, eu ouvia e pensava, cara, essa música é um chamado, é o meu chamado, eu preciso saber tudo o que está acontecendo, preciso saber o que ele está dizendo em todas essas músicas, preciso escrever poesia assim, preciso estar ligado. Quando eu li poesia e literatura beat, anos depois, eu já estava preparado, já tinha passado por aqueles discos do Bob Dylan. Dylan, como outros tantos, pegaram aquela tocha dos beatniks. Meu segundo objetivo era o de arrumar a coleção dos discos dele dos anos 60. O desafio era achá-los. A gravadora no Brasil tinha poucos títulos em catálogo. Nos sebos era mais fácil encontrar os álbuns lançados nos anos 80. Sempre lembrando que nos anos 90 não havia mp3 nem streaming. O jeito era rarimpar discos usados. A sorte é que naquela mesma época estavam chegando os CDs americanos. Afinal de contas, lá os discos dele nunca estavam esgotados. E aconteceu nessa mesma época no país um fenômeno interessante: muitos colecionadores de vinil estavam bancando suas incursões pelo novo mundo digital torrando boa parte de sua coleção de discos nos sebos. Ao mesmo tempo que via os títulos em AAD nas paredes das lojas, apareciam para valer material antigo raro do Bob Dylan, inclusive discos nacionais. Nessa época eu catei boa parte da coleção sessentista dele. O que eu não achei ou não tive paciência para garimpar acabei comprando em CD importado mesmo. Porque a gente sabia que no Brasil da era do CD, as gravadoras precisavam conciliar a produção com a demanda. Então, sabendo que o compact disc era um bem caro, grandes prensagns. Ou seja, eu sabia e todos sabiam que a discografia completa do Dylan não ia sair em CD no Brasil. E a gente só foi realmente ter condições de conhecer de fato (eu) a obra dele com o mp3. Quer dizer, no começo, era o vinil. Depois do Grestest Hits, eu procurei outros discos. O que foi o meu evangelho, na verdade, foram dois: o Biograph e o Before the Flood. Depois daquela coletânea banal e de pouca música, eu entrei de fato na obra dele pela caixa que, por sinal, havia saído em 1985 aqui (e estava esgotada desde então). O Biograph eu catei no Brique, e paguei barato porque eram os discos com o encarte num invólucro de plástico, já que não havia a caixa. Eu relevei, porque o que me importava eram as músicas. A caixa é uma bagunça mas é certamente a melhor coisa – ainda hoje para quem quiser ouvi-lo pela primeira vez, é para quem nunca ouviu nada do Dylan e quer ouvir. Hoje é difícil pensar dessa maneira, já que toda a discografia dele está a um clique de qualquer pessoa que tenha conexão com a internet. Hoje é fácil ouvir tudo e coletâneas não servem mais de parâmetro para seleção musical de um artista. Coletâneas hoje fazem parte de um tempo heróico da história do disco, e temos até mesmo uma relação afetiva que a cultura material explica com esses elepês. Eu adorava e ainda amo essa caixa. Apenas lamentava na época que havia espaço para material que ele fez no final dos anos 70 e começo dos anos 80. Naquele tempo, quando eu comecei a ouvir Dylan, eu gostava mesmo era dos álbuns entre 62 e 69. Até hoje posso dizer que conheço bem o Dylan dos anos 60 e pouco o do final dos 70 e quase nada dos anos 80. Acho que um dia eu irei me debruçar nesse material que eu ouvi, ouvi, mas sempre voltei para os Bringing All Back Home da vida. Esse momento meio que está chegando, porque eu confesso que estava reouvindo os velhos álbuns do começo da carreira dele e confesso que, com exceção de uma ou outra faixa, ou, no fim, depois que eu me desfiz de toda minha coleção de discos, fiquei meio que afetivamente restrito apenas ao Biograph, não tenho ouvindo mais os Highway 61 da vida. Algumas coisas me deixam nostálgico, como “Bob Dylan’s Dream”. Aliás, estava reescutando o Biograph domingo de noite e lembrando daquelas primeiras audições, da vontade de traduzir todas aquelas letras e procurando loucamente conhecer as músicas que eu ainda não conhecia. Lembro de imprimir as letras e tentava traduzi-las com meu inglês da época. Eu curtia com afinco aquela fase folk dele, essa eu entrei de cabeça. Então, quando ouço de faixas como “Corrina, Corrina, “Restless Farewell” ou “Percy’s Song” (que eu não ouvia há muito tempo, foi reouvir ontem) eu lembro daquele meu tempo, do começo de ouvir Dylan. E querer entrar naquele mundo de poesia automática. Lia a contracapa do Highway 61 e queria escrever algo parecido com aquilo.  Claro que quando li o On the Road pela primeira vez, parecia que eu já estava iniciado com aquele tipo de linguagem, estávamos imersos no mesmo imaginário comum. Aliás, não só no caso do Dylan mas, em geral, na época do disco, com a grana contada, a gente tinha que escolher o que ouvir, não dava para comprar tudo. Então posso dizer que eu só fui realmente ouvir grandes clássicos do rock depois do mp3. O meu ócio criativo e internet a cabo me permitiram conhecer a discografia completa de muita gente. Graças ao mediafire, rapidshare e outros, ouvi todo o Hendrix, Who, Cream, Zappa, Led, Sabbath, todo prog possível, todo o Elvis (até os discos chatos de filmes) Yes, tudo o que o vinil ou não possibilitava e o preço do CD proibia. Foi bom ser internauta nos anos 2000 para pegar o 1001 Albuns do Robert Dimery e ouvir tudo – e o que eu não pude achar do Dylan. Aí que eu pude ter contato com o resto da obra dele e essa fase Jack Frost pós Time Out of the Mind que eu confesso que também acho que é algo que eu vou ouvir melhor futuramente. Porém, confesso que gosto muito do Togheter Through Life (2009), disco que eu tenho uma queda porque me lembra daquela época, lembro do dia que eu ganhei de presente o CD (pirateado) de um amigo. Lembro que havia chegado de um concurso em Santa Maria na segunda de manhã, totalmente molhado da chuva, meu quarto estava todo mudado, eu ainda estava com a viagem na cabeça, de ressaca da cerveja que eu havia consumido em escala industrial e triste de voltar para esta cidade chamada Porto Alegre, eis que chegou esse meu amigo para consertar o computador do meu irmão e ele me deu o álbum gravado em CDA de primeira mão num CD TDK. Domingo eu estava ouvindo ele e achando engraçado os pickpockets que ele faz copiando coisas do Willie Dixon ou aquela primeira faixa do disco, que é totalmente inspirada em “All Your Love” do Otis Rush. O que demonstra que o Dylan, mais do que folkie, é um cara que tinha enormes raízes no blues e na canção americana do Tim Pan Alley, que ele era acusado de ter sido a nêmesis da grande canção norte-americana. Há ainda um parêntese na fase Frost do Dylan – que já não tem lá muito a ver com aquela imagem que se tem dele dos anos 60, o eterno trovador com um violão folk no colo ou o cabeludo de óculos escuros, terno, camisa polkadot e Fender sunburst, ele de caoubói kitsch cantando Sinatra, não deixa de ser engraçado como ele conseguiu com isso irritar desde os fãs roxos dele quanto os do Sinatra. O que é sintomático porque mais que um folk singer, Dylan foi o cara que entronizou a figura do singer-songwriter. Com ele e outros de sua geração, o intérprete não dependia de editoras musicais como a da Broadway dos anos 20 e 30. Ele pertence à geração que cantava as próprias músicas e o fato de ter ou não ter voz era um detalhe. Em outros tempos, ele seria apenas um compositor. Mas naquele momento, ele era cantor – e cantor competindo com intérpretes como Johnny Mathis, seu colega de gravadora. Claro que ele não conquistou esse espaço sem muita negociação. Primeiro, cantar sem ser cantor, depois provar que era possível vender discos cantando folk; depois, provar que era possível fazer um improvável crossover para o rock e abandonar o circuito folk que até hoje em parte não o perdoou por isso. Mas talvez essa inconstância seja a sua virtude; de forma diversa, Dylan estaria até hoje, como muitos, gravando pela centésima vez o mesmo disco. Eu há tempos não ouvia nada dele. Depois da debacle da minha coleção de discos, hoje lembrei do primeiro disco, depois do Biograph, depois de ouvir todos os discos dele e tê-los em CD e vinil e depois me desfazer de tudo. E hoje ouço o Biograph como lá no começo. A gente sempre tem esses afetos com relação à discos antigos e coletâneas. Elas eram o que formavam nosso caracteres como ouvintes de disco. Feliz 80, caro Bob, que venham outros 80.

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