Sunday, May 23, 2021

O Leopardo e a unificação: uma parábola

 

Cena do filme Il Gatopardo

Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) escreveu o Leopardo - livro lançado postumamente, em 1958. Partindo de sua própria experiência, ele conta a história do começo da unificação italiana a partir da ótica de um nobre da Sicília, região da península ainda associada ao antigo regime num momento histórico de mudanças que ainda não haviam chegado ao reino que ainda vivia sob a égide dos Bourbon. Ao contar a história de Dom fabrízio, ele conta a sua história, de um ponto-de-vista singular. Lampedusa também era um nobre da Sicília (já unificada), ou seja, ele é quase um alter do protagonista do livro, Dom Fabrízio. O livro pensa o momento da unificação, o ocaso da figura e dos valores da aristocracia e o surgimento da burguesia comercial italiana. Ele conta o fim da sua história e de sua estirpe que se fica para trás no processo histórico.  A Sicília era um reino que era eterna para a aristocracia, e o príncipe de Salinas conta o fim daquela eternidade. O tema do livro, sobre mudar não mudando e a visão privilegiada de um proitagonista que vê tudo mudar sob seus olhos de certa forma era recorrente em alguns cineastas italianos na segunda fase do neo-realismo. O Leopardo, que foi rejeitado por várias editoras, virou sucesso literário, sucesso reforçado pela adaptação ao cinema. 

Tancredi é o representante da nova Itália. Fabrízio vive o desencanto do fim daquele cenário. Calógero é o oposto de Salinas, é pragmático e representa o futuro. A união de Tancredi e de Angélica é a união da nova Itália. Os jovens e belos são a nemesis da nobreza. O estranhamento de Fabrízio com Calógero é o estranhamento das duas estirpes. A aristocracia, na figura de Salinas, não acredita que um reino como o das duas Sicílias pudesse se nivelar com outras partes plasmadas em Calógero, que pelo seu sangue azul. Mas tudo iria mudar a partir dali. Na verdade, tudo começou a mudar pelo menos três décadas antes da história contada pelo livro e levado às telas de cinema em 1962, por Luchino Visconti.


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Um espectro rondava a Europa – o espectro de uma onda anti-liberal. Quando Felix Orsini fora executado, em março de 1858, ele morreu como um mártir. O carbonário foi o responsável pelo atentado a bomba que quase matou Napoleão III. Ele acreditava que a única via para a libertação da Itália era a eliminação física do imperador francês, que era o responsável pela permanência de uma onda anti-liberal na Europa. O que motivou o atentado foi a intervenção francesa em Roma, em 1849. No cadafalso, Orsini escreveu uma carta – depois publicada na imprensa – onde suplicava ao imperador uma Itália livre como “condição primeira para a França e para a Europa”.

O responsável pela publicação da tal carta nos jornais fora um certo Camilo Cavour, então o plenipotenciário primeiro-ministro do reino do Piemonte-Sardenha. O impacto da morte do carbonário e a repercussão da missiva na imprensa fez o seu papel: manteve acesa a chama da revolução.

Mazzini, o arauto da Jovem Itália, fora derrotado em 1830, mas seguia articulando uma resistência no exterior. No rescaldo das revoltas de 1848, enquanro a Sicília adotava um sistema parlamentar, Veneza e Milão insuflavam uma atitude de Piemonte-Sardenha contra a Áustria. Mazzini forçou uma república romana mas a burguesia comercial, temerosa dessa postura revolucionária, resolveu pôr freios à empreitada, e não louvou o movimento da Jovem Itália. A contra-revolução chegou à galope, derrubando Carlos Alberto em favor de Vítor Emmanuel no Piemonte, no ano seguinte. Roma foi devolvida ao Papa por Napoleão III (sobrinho do famoso Corso) e, por fim, os Bourbon dissolvem o parlamento siciliano.   

Apesar do saldo negativo da contra-revolução, Piemonte-Sardenha, como estado moderno e centralizado, ainda objetivava dar as cartas no destino da península itálica. O Conde Cavour, originário da burguesia piemontesa, era um exemplo dessa extração social que despontava. No poder como premier, ele pôde pôr várias idéias em prática: subjulgar regiões próximas, ao mesmo tempo que implantava uma política liberal (reforçando o exército, a Justiça e incentivando a economia).

Meses após a execução de Orsini, Cavour viajou  a Plombières com passaporte falso. O objetivo era uma embaixada secreta à Napoleão: nada era oficial. Ambos concordavam que os austríacos, que ocupavam o nordeste da península, deviam ser expulsos com vista à encaminharem a questão italiana. Contudo, eles entendiam que essa Itália livre não deveria se conformar sob a égide de um estado unitário. A condição primordial era a criação de uma federação colocada sob a chancela do Vaticano. A Santa Sé, por sua vez, seria uma espécie de títere cujo poder recaía finalmente nas mãos da França.

 Eles concordavam que a estratégia para que isso desse certo era atrair os austríacos para uma guerra – cuja disposição caberia indiretamente  a Cavour, deixando Napoleão atrás do biombo. Este, por sua vez, iria impedir a intervenção das demais potências diante do conflito. Pelo acordo, com a virtória, Sabóia e Nice voltaram para os franceses enquanto os territórios do Piemonte seriam aumentados.

Inescrupuloso e diplomata temido, Cavour seria o homem que iria urdir a unificação da península itálica. Para alcançar seu objetivo, resolveu arrastar a Europa para uma guerra sem qualquer justificativa aparente. Filho do Piemonte, largou as armas para dedicar-se à causa liberal. Foi importante no desenrolar da Revolução de 1946. Dois anos depois, ingressava na política. Quatro anos depois, chegava à presidência, no mesmo momento em que Luís Napoleão tomava o poder na França. O conde desempenharia papel importante como mandarim de Vítor Emmanuel, o chefe da Casa de Sabóia. O rei era tido de visão política restrita, agindo quase sempre de forma castiça. Cavour, ciente de sua missão, procurou respaldar as aspirações reais, emprestando-lhe apoio incondicional.

Piemonte e Sardenha seria seu laboratório: em pouco tempo, transformou o reino em potência, com fortificações, portos, rede ferroviária e expansão de atividades comerciais e industriais. Cavour desejava transformar sua terra no país da liberdade e numa peça importante no teatro europeu. Assim, chamaria a atenção de toda a Europa, além de apresentar-se dos grupos políticos comprometidos com a resistência italiana como alternativa. Entrou em contato com a União Nacional Italiana (UNI). Com engenho e arte, tratou de convencer os jovens republicanos a aceitarem uma possível realidade de uma Itália unificada sob uma coroa e um parlamento. Com o aceno positivo deles, pode então contar com a atividade da UNI a partir de então no papel de insuflar a revolução.

Porém, palavras e promessas não bastavam: era preciso apoio estrangeiro. O projeto de unificação italiana era uma questão geopolítica e de interferir no jogo de xadrez das potências européias. Por exemplo, em 1855, com tropas frescas, entrou na Guerra da Criméia ao lado de Inglaterra e França. Depois do apoio secreto com Napoleão em Plombiéres, a guerra era o momento para fustigar a inimiga Áustria. O ultimato chegou quatro anos depois, quando os austríacos exigiram o desarmamento do Piemonte. Cavour fez questão de azedar as relações diplomáticas para tal.

Veio a guerra: de um lado, Napoleão e, de outro, Francisco José. A guerra foi curta e sangrenta.

O objetivo do Piemonte com a França era a libertação do norte da Itália – a Lombardia e, especialmente, Veneza. A Áustria partiu em fuga, principalmente após a mais funesta das batlahas, em Solferino. Um armistício foi planejado em Villefranche, naquele mesmo ano. Veneza permanecia sob a égide de Francisco, enquantoos estados rebeldes de Módena e Toscana permaneceriam fiéis à Santa Sé, para o bem de Napoleão III.

Embora a conclusão da guerra fosse ligeiramente favorável aos lados, Veneza ontinuava nas mãos inimigas. Apesar do acordo secreto com Cavour, o imperador francês temia a possibilidade de uma Itália unificada com o Piemonte à sua frente. Vítor Emmanuel acusou o golpe: o monarca  da França assinou uma paz separada, não cumpriu o que havia prometido, mas nada poderia fazer. A altercação entre o diplomata e o rei piemontês provocou a demissão do primeiro, que viu seu sonho de ver a península sob a égide do Piemonte esfumarem-se.

 Mas os dados ainda estavam sendo jogados. Em março de 1860, Napoleão exigiu Nice e Sabóia, como havia combinado. Cavour quis uma indenização em contrapartida. Assim, em troca de Nice e Sabóia, Módena (região historicamente rebelde onde nascera o movimento da Jovem Itália, de Mazzini, em 1931) e Toscana seriam agora do Piemonte-Sardenha. Napoleão conquistou o que queria, mas a vitória foi de Pirro. O país estava financeiramente arruinado com a guerra. Além disso, a imagem do imperador ficou abalada diante da diplomacia internacional pelo fato de que os fins franceses eram apenas e tão somente o de uma anexação prevista mediante algum acordo apócrifo.

Um dos críticos da posição francesa foi o primeiro-ministro vitoriano, Lord Palmerston. Defensor da causa piemontesa, ele postulava a Itália para os italianos. A Rainha, que defendia a Áustria e acreditava que o movimento revolucionário na península não passava de um delírio, entrou em guerra contra Palmerston, que apoiava Cavour em seus respectivos objetivos de liderar a unificação. Nesse cabo de guerra silencioso, no fim era a Inglaterra dividida pela cimeira que se tornaria um problema incontornável no xadrez diplomático piemontês.  

Porém, como se fosse num romance de capa e espada, aconteceu algo inesperado. Após longo exílio de dez anos, Garibaldi retorna à Nice, sua cidade natal. Numa embaixada à Vítor Emmanuel, o condottiere italiano aceitou o projeto de unificação urdido por Cavour. Afinal, tinha por alta conta o imperador do Piemonte-Sardenha. Já a relação entre cavou e Garibaldi era péssima: já o velho carbonário Giuseppe não tolerava o diplomata piemontês –  achava foi o canalha responsável pela barganha da venda de Nice.

E Cavour detestava o condottiere; para o nobre diplomata, Garibaldi não passava de um pobretão metido a caudilho, um bandido chefete de uma guerrilha de bandidos e que só acreditava na revolução pela revolução. Ao contrário, o diplomata queria que o debate em torno da unificação se desse longe daquele rés do chão. Isso explicaria em parte seu apelo à autoridade do rei francês –ainda que Cavour também o achasse um vigarista, um político narcisista que gravitava em torno do próprio umbigo, um escroque cujo horizonte mental não passava do céu da boca. Mas a verdade é que, entre quatro paredes, os dois sabiam que, tirando suas opiniões pessoais um com relação ao outro, Garibaldi precisava de Cavour no campo diplomático. E Cavour necessitava do carismático Giuseppe para ter a devida aceitação popular. Como diria Maquiavel: um agradava ao povo; outro, aos grandes.

 Porém, as diferenças do diplomata de Emmanuel e o condotiere poderia ser minoradas em favor da uma causa comum, a unificação. Enquanto o Conde lutava para colocar o Piemonte-Sardenha na altura das demais potências européias, Garibaldi, com seus iracundos camisas vermelhas, começava a sua caminhada pelo rés do chão. Em primeiro lugar, derrubou os bourbons na Sicília (cena recriada no começo do filme, talvez o único momento "épico" da adaptação de Visconti). Em pouco tempo, conquista Messina e Palermo. Seu segundo objetivo era agora o de chegar à Roma.

Claro que a possibilidade da derrubada do Papa alertou os gansos de Napoleão III. Garibaldi deveria ser parado. Cavour, de mãos amarradas, pensava o mesmo. O movimento revolucionário poderia isolar o Piemonte-Sardenha depois de todo o trabalho do conde-diplomata. Roma era o calcanhar-de-aquiles. Afinal, a Santa Sé era o santo-antoninho-onde-te-porei da França. A aposta de Cavour era partir para Roma também, visando Nápoles, sob os auspícios de Napoleão. Ao apoiá-lo, porém, o rei francês abdicava de suas pretensões territoriais na península. Assim, Cavour pôde submeter finalmente os Estados Pontifícios, as Sicílias e Nápoles às ordens do Piemonte – quase metade da futura Itália. Na mesma penada, conseguiu diminuir a importância de Garibaldi. Em nome de Vitor Emmanuel, ele cedeu suas pretensões políticas e recolheu-se para Caprera. Em março de 1861, o rei do Piemonte-Sardenha era proclamado Rei da Itália.

Região economicamente atrasada com relação ao norte, as lutas nas sicílias misturavam nacionalismo com reivindicações de camponeses que queriam o fim da servidão e da aristocracia rural. Esse foi o fermento da fronda, capiteneada pelos Mil de Garibaldi, e que pôs fim à dinastia dos Bourbon na região. Mediante plebiscito, a Casa de Sabóia anexaria as duas sicílias, restando apenas a anexação dos Estados Pontifícios e de Veneza.

O que possibilitou de fato a unificação da península foi a Guerra Austro´Prussiana (1866) e a Franco-Prussiana (1870). Com a derrota austríaca, o Reino da Itália, que lutou nas hostes prussianas, anexaria Veneza. Na guerra entre França e Prússia, Napoleão III capitulou perdendo a capacidade de controlar as terras da Santa Sé. Aproveitando o interregno e o vazio de poder, os italianos finalmente invadem o Roma e submetem a região finalmente à Sabóia. Destituído de sua realeza temporal, o Papa não aceitaria a anexação, abrindo a Questão Romana e os arrufos de Sua Santidade com o Estado italiano, que seria resolvida só em 1929, com o Tratado de Latrão. Com o acordo, surgia o Estado do Vaticano – estado que, segundo Luciano Gruppi, não era um estado já que não tinha povo algum.

 Olhando no retrovisor, é possível ver que a unificação ocorreu numa aproximação de avessos. A política polida de Cavour aliou-se  à ação revolucionária e de apelo popular de Garibaldi se completariam. Mesmo avessos, um dependia e sabia que dependia do outro. Como um Moisés que não pôde entrar na terra prometida, o primeiro ministro piemontês não viu sua obra acabada: morreu dez anos antes, em 186.

 Confirmada em plebiscitos, a unificação italiana foi capaz de colocar o país em melhor posição diante das demais potências. Porém, como seria de se esperar, ela beneficiou apenas a porção desenvolvida da Itália. A unificação de impostos e mercados iria favorecer as áreas industrializadas, como o norte.

 O sul, como a região das duas sicílias, o sul de Lampedusa, que era agrário e subdesenvolvido, pagou o preço da mudança: obrigações fiscais lograram levar pequenos proprietários de terras à ruína. A rara disponibilidade de capitais e a padronização de impostos restringiram a sustentação do antigo sistema. À medida que esses proprietários foram perdendo suas terras, elas foram sendo adquiridas pela classe rica, o que pavimentou o caminho para a formação de uma nova aristocracia rural, associada com a burguesia comercial do norte da península. Como observam Pazzinato e Senise (1994), o projeto político-econômico da classe burguesa setentrional se impôs como regra geral para todo o Reino da Itália (p.189). No fim das contas, como diz o personagem do livro, é preciso tudo mudar para que tudo fique como está.

Referências

GRIMBERG, Carl. História universal: da restauração ao liberalismo. Editora Azul, 1989. 

PAZZINATO, Alceu Luiz, SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Ática, 1994. 



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