Wednesday, April 28, 2021

Os Deuses Malditos

Edição da Istoé sobre o BRock

Esses dias resolvi ler o livro do politicamente correto do rock, do Lobão*. Uma coisa que me chamou a atenção é que ele afirma, entre outras coisas, que a MPB pós tropicalista é, de certa forma, uma “conspiração” onde seus “aiatolás” fazem de tudo para estabeleceram-se como os luminares e guardiões da música no Brasil. Eu não entro no mérito de discorrer sobre a opinião dele. O que eu entendo é que essa opinião é corrente.

Outra teoria que me veio à mente foi a do Paulo César Araújo, no livro Eu não sou cachorro não**. O livro, na verdade uma tese universitária, abrange o período entre o fim dos anos 60 e dos anos 70 para inventariar a produção da música popular (na época chamada de cafonália). O trabalho é parte resgate dos principais cantores e compositores daquele gênero, posteriormente rotulado de brega, e a defesa (quase apaixonada) de que etnomusicólogos, musicólogos e jornalistas em geral consideram essa produção menor no reino dos céus. Araújo salienta que esses artistas também sofreram perseguição e censura durante o regime militar, foram escanteados pelo que seria aquela elite musical – constituída pela nata da MPB, e cita o exemplo do episódio da Phono 73, quando Odair José foi vaiado em meio a apresentação com Caetano Veloso. Existe enfim uma enorme distância entre MPB e a cafonália que, de certa forma, é provocada pelo público, por gostos de classe. A verdade é que nesse período, esse segmento cresceu à medida em que a própria relação de consumo e produção no circuito da indústria fonográfica mostra que esse gênero musical atendeu a uma enorme demanda por parte esse gênero musical atendeu a uma enorme demanda por parte de um novo e considerável público ouvinte. A música brega cresceu na medida em que houve uma demanda proporcional. 

O problema é quando essa discussão escorre para a questão escorre para a questão de gosto. Até certo ponto, essa questão está posta na vara do senso comum: ouvintes de MPB e cafonália constituem-se em identidades distintas. O problema, seguindo Araújo, e quando a música brega é desconsiderada como objeto de pesquisa na área da canção. E com o livro-tese, o autor quer reparar uma enorme injustiça a um grande segmento da indústria fonográfica que, como até mesmo gente como André Midani explicou***, sustenta o lucro das grandes gravadoras. A Odeon nos anos 50 pôde lançar discos como os do João Gilberto – dizia Midani, porque cantores como Orlando Dias e Anísio Silva vendiam milhares de cópias de seus discos. E os próprios compositores de sucessos que venderam outros milhões de compactos e álbuns, como Jair Amorim ou Adelino Moreira não são considerados... “cancionistas”, usando a expressão popularizada por Luiz Tatit****. A crítica de Paulo César Araújo vai, pois, no sentido de que tanto jornalismo musical quando musicólogos têm resistência e ranço em abordar qualquer coisa que não gire em torno de Arys, Caymmis, bossas novas e tropicalismos. E, até pouco tempo, não havia uma bibliografia que desse conta do samba-canção como objeto – coisa que mudou há alguns anos, com trabalhos de Ruy Castro***** e de Zuza Homem de Mello****** sobre o tema.

Ao ler o livro do Lobão, o que me veio à cabeça foi justamente essas coisas que eu escrevi acima. Existe um descaso em analisar certos gêneros musicais no Brasil ao passo que existe também desde um apagamento ou desinteresse ou preconceito mesmo. Preconceito que pode ser explicado na perspectiva do senso comum, mas não da parte de quem pesquisa. No caso do opúsculo do Lobão, ele expõe outro preconceito, que é a forma como a geração dos anos 80, ou a associada ao BRock via os anos 70. Não era algo restrito à cena musical carioca ou paulistana mas, de fato, talvez por conta da repressão e das oportunidades perdidas nos anos 70, resolveu-se colocar toda aquela MPB que floresceu na década no banco dos réus, como se aquilo houvesse se transformado num rebote paquidérmico e maneirista que devia ser expurgado. E, de fato, é possível vislumbrar, no livro do Lobão, como essa geração BRock se fez identitariamente como o avesso de tudo o que a MPB representava. E a única forma de fazer isso era atacando aqueles “medalhões” do campo musical, considerados como jurássicos. Mas é possível ir mais além. Por exemplo, no artigo Veja: a invenção do rock nos anos 80, Fernando Muratori Costa******* demonstra, ou aponta subsídios para demonstrar que esse agendamento do rock em detrimento da MPB – que, de fato, por parte de muitos dos seus intérpretes, estavam tentando se recolocar naquele novo cenário – foi capitaneado pela imprensa. No caso, ele pega o exemplo da Veja: como a revista, ao desvelar o que seria a nova geração da música, passando em desfile desde a repaginada Rita Lee até grupos como Barão Vermelho e Blitz, fez o elogio a nova geração como forma de também se recolocar dentro do campo jornalístico. Ou seja, muito além da qualidade de compositores e intérpretes ou das canções, o que importa, segundo Muratori, é que existe aqui uma homologia entre campo artístico e jornalístico onde ao incensar aquele, este faz o mesmo consigo. 

Claro que não se trata aqui de conspiração ou da descoberta de uma farsa mas, sim, de entender essa representação e o seu contexto. O que vale é ressaltar a importância que a imprensa e a mídia em geral tem no sucesso desses artistas ainda longe de serem hegemônicos nos seus respectivos campos. Em resumo, o sucesso não se faz sozinho. E, como diz Muratori, a exaltação dessa nova geração também se fez, na demanda de uma identidade nova, em contraposição à velha geração, ou seja, a “paquidérmica” MPB. A própria imprensa ou, mais especificamente, a Veja exaltou os jovens artistas do rock nacional como uma resposta ao estado das coisas da música até então, como se a MPB como estado da arte naquele começo dos anos 80 tivesse chegado a uma aporia estética. O que Muratori explica em seu artigo, também tomando por base o livro de André Barcinski******** sobre a MPB nos anos 70, é que, em seu começo, naquilo que se convencionou chamar de pós-tropicalismo, MPB e rock nacional andavam juntos. Basta lembrar das colaborações dos Brasões com Macalé, Gal Costa e a Bolha ou Clube da Esquina e Som Imaginário, Barca do Sol e Olivia Byngton, entre outros encontros ocorridos naquele tempo. O curioso é notar que, passada a década perdida em que o rock brasileiro praticamente voou um vôo de galinha, quando chega nos anos 80, parece querer renegar essa relação. A MPB então, se “ataca” numa frente, em outra ela é atacada. Ou é heróica em seu papel como resistência cultural ou então é a vilã decrépita e paquidérmica que devora os seus filhos e não deixa a jovem e nova geração nascer.

O que eu acho que esses assuntos rendem muito. Seria imprescindível ir além nessas relações entre campo jornalístico e musical na formação do rock nacional nos anos 70 e 80 ao mesmo tempo em que pesquisas sobre outros gêneros musicais – e que não se restrinjam apenas ao tropicalismo ou Ary e Caymmi são também muito bem vindos. Mas, como se pode ver, essa fração de preconceito e de gosto musical em geral têm limitado sobremaneira o horizonte desse tipo de pesquisa no Brasil. 

 

Referências

* Guia politicamente incorreto dos anos 80 pelo rock, Leya, 2017.  

** Eu não sou cachorro não, Record, 2002. 

*** Música Ídolos e Poder: do vinil ao download, Nova Fronteira, 2008.

**** O século da canção. Ateliê, 2004. 

***** A noite do meu bem, Cia das Letras, 2014. 

****** Copacabana, Editora 34, 2018.

******* Veja: a invenção do rock nacional brasileiro nos anos 80. Disponível em http://www.encontro2016.sp.anpuh.org/resources/anais/48/1462300944_ARQUIVO_Artigo-ANPUH.pdf

******** Pavões Misteriosos: 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil, Três Estrelas, 2014. 

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