Friday, April 02, 2021

Conto de Outono


Aquele parecia ser mais um dia normal para o motorista de táxi Wanderlei Gaudino, prefixo 83-88. Ele estava no ponto da Sete quando apareceu três pessoas para uma corrida. Uma mulher ligeiramente jovem e de vestido florido, com uma criança vestida como um adulto, de terninho. Os acompanhava um homem espadaúdo e bonachão, que ele achou que fosse parecido com um soviético, com a cara do Yuri Gagárin. O detalhe é que ele estava vestido (fantasiado?) como um escafandrista.

O taxista do 83-88 percebeu também que eles pareciam falar línguas diferentes. Quando se dirigiam a ele, falavam com um sotaque estranho. O motorista de praça, que só entendia o Português, não soube identificar a origem de nenhum deles. Mas achou curioso que a moça, a única que se dirigia a ele, falava com um sotaque meio germânico, algo como o Professor Ludovico.

Eles tinham bastante dinheiro, e pediram para que ele tirasse o dia para conduzi-los a conhecer Porto Alegre. Eles subiram a Bento, e o taxista explicou que a praça era um dos lugares mais antigos da cidade. Apontou para a Catedral, e falou: “essa é a Catedral”. Apontou o Palácio do Governo: “esse é o Palácio do Governo”, falou. Eles perguntaram o que era aquele solar cor-de-rosa ao lado. O taxista coçou a cabeça e arriscou: “É a continuação do Palácio do Governo. Eles se admiraram do monumento no meio da praça. Quiseram saber do que se tratava. “Foi um governador daqui de muito tempo atrás. Ele morava naquele solar lá (apontou com o dedo) do outro lado da praça. “É habitado?”, quis saber a moça. “Não, hoje é um museu, mas eu me lembro que visitei ele quando eu era muito jovem, no tempo do colégio. Tem uns canhões e umas estátuas e não sei o que mais, não lembro bem...Mas acho que ele ainda está funcionando...Entraram no Museu Júlio de Castilhos, e conheceram a motoca e a bota do gigante. Depois desceram a Duque, e o homem do táxi explicou que aquele viaduto foi construído no meio do morro de pedra do centro, e que ele passou a ligar a zona sul da cidade com o centro, diminuindo o tempo do trajeto entre as regiões mais distantes com a região do Mercado, que depois eles conheceram.

Como um vaqueano do asfalto, o taxista mostrou o Mercado para eles. Os três viram os peixes, os vinhos da banca 46, o bacalhau com azeite na banca 26, tomaram um sundae na banca 40, viram os artigos de umbanda, a de sorvete caseiro, o bar da Parobé, que vende peixe frito mas não deixa beber sem pedir lanche,  a banca de revistas, a do café moido na hora, a feirinha de discos usados, o restaurante que tinha uma cadeira dependurada no teto mas que o senhor do prefixo 83-88 não sabia ou lembrava muito bem a história daquela cadeira. Na saída, apontou para a marca onde o rio da cidade chegou quando houve uma enchente, há muito tempo atrás, quando ele nem era nascido mas sempre ouviu essa história de seu avô.

Foram até o Chalé da Praça XV ao lado. Entraram, tomaram várias canecas de chope enquanto o motorista dizia que aquele chalé era antigo mas ele não sabia quando ele foi construído. Eles repararam que havia um pequeno palco escondido quase no teto, à guisa de mezanino. O taxista explicou que há muito tempo atrás bandinhas alemãs se apresentavam ali. De volta ao táxi, eles foram até o Shopping do bairro Praia de Belas. Entraram em livrarias, lojas de roupas, de eletrodomésticos, tomaram sorvete no fast food. Pessoas que os viam ficavam espantados com o homem do escafandro, principalmente as crianças, que paravam para tirar foto com ele. Depois que dispensaram aquele povo, ainda assistiram a uma sessão de cinema, depois deram mais uma caminhada aproveitando o ar-condicionado (era um daqueles dias insuportáveis de fim de maio em Porto Alegre) do lugar. Saíram do shopping felizes e carregados de compras.

 Ao cair da tarde, eles falaram que queriam ir à um lugar chamado Tramandaí. “Avenida Tramandaí, vocês querem dizer? Fica na zona sul, é bem longe daqui, mas eu conheço um caminho bem rápido, e...”. “Não”, disse a moça. “É uma cidade, que fica ao lado de um rio que dá para o mar. Não é isso? Não é perto daqui? O senhor já foi lá. Ele coçou a cabeça. “Bem, na verdade, é uma viagem. Vocês não querem que eu os deixa na rodoviária, vocês podem pegar o próximo ônibus para lá”.  “Não”, atalhou a moça. “Nós simpatizamos com o senhor e com a sua cortesia. Sempre disseram que as pessoas daqui eram bastante cordiais, e eu vejo que é verdade”. Sem esboçar reação, o perplexo taxista tentava responder algo. Estava meio espantado, nunca tinha visto ninguém como eles, isso o assustava mas, ao mesmo tempo, estava gostando dos três.

 “Olha, moço”, continuou a moça, com sotaque do Professor Ludovico. “Não se preocupe com dinheiro, se é isso o que lhe preocupa. Nós temos dinheiro. Pago para o senhor agora todo o passeio e o senhor pode calcular o preço, a gente paga agora o valor, quanto foi preciso para o trajeto da sua volta e então partimos para lá”. Entraram no carro e rumaram para Tramandaí. Já era noite alta quando eles passaram por Osório, ficaram admirados com os morros contra o céu. O taxista estava meio perplexo: sentia um certo alívio porque sua missão como vaqueano do asfalto estava terminando. Ao mesmo tempo, sentia uma pequena tristeza por deixá-los. Já tinha feito corridas meio exóticas mas nunca tinha visto nada igual, nunca tinha vivenciado uma situação tão surrealista.

Quando chegaram à Tramandaí, eles o orientaram a seguir até a orla. Numa área bem retirada da beira do mar (já era madrugada), o motorista parou no local indicado pela moça. O homem com roupa de escafandro então desceu, pulou um pequeno cômoro e caminhou, sob a luz dos faróis, até a franja das ondas. Parado, ele puxou do bolso uma grande lanterna. Olhou para as estrelas e mirou a lanterna para o céu. Numa progressão fulminante, o motorista percebeu uma grande claridade vinda do alto.  Desce um enorme disco voador, que pousa numa tremenda velocidade. O sr. Wanderlei Gaudino gelou. Achava que era o seu fim. Da espaçonave, apareceram dois astronautas, com uma farda semelhante ao homem do escafandro. Então o casal finalmente se despediu do perplexo taxista, pagou o que devia, entraram no disco voador e foram embora. Sua última lembrança era a dos três, abanando para ele enquanto a porta fechava.



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