Monday, February 08, 2021

O Homero do Futebol

 

Mário Filho durante a construção do Maracanã, em 1949

Instigado pela polêmica em torno da virtual mudança do nome do Maracanã, nosso repórter foi pesquisar a história em torno daquele que dá o nome ao antigo Estádio Municipal, inaugurado em 1949, às vésperas da Copa do Brasil de 1950: Mário Rodrigues Filho. Quem foi ele, afinal? Quando o editor jogou a pauta no seu colo, ele ficou espantado. Não sabia nada de quem era Mário Filho.

 No acervo de jornais, descobriu que quem teve a idéia de homenagear o jornalista foi de Waldir Amaral. Ele achava que, mais do que um busto, ele merecia ser nome do estádio. Afinal de contas, leu o repórter num artigo de fundo, escrito anos após sua morte: “Mário foi o idealizador não apenas do Maracanã como de todo um contexto esportivo e cultural e de toda uma economia do desporto brasileiro que permitiu que a primeira Copa depois da Segunda Guerra Mundial viesse para o Brasil. Sem ele, não haveria estádio, nem copa, nem nada. Nem imprensa esportiva nos moldes que conhecemos hoje”.

Foi procurar algo a respeito de quando houve a mudança do nome do estádio. Descobriu nas páginas de O Globo: viu que, mesmo separado de Mário há anos, Roberto Marinho, patrão de Amaral na Rádio Globo, apoiou a campanha. O radialista contatou também o Marechal Mendes de Morais, então prefeito do Rio na época da construção do estádio, e os então líderes da Arena e do MDB, os partidos da época na Câmara. Raul Brunini e Jamil Haddad, líderes respectivamente das duas agremiações partidárias na Câmara do distrito federal nos anos 1960. Ambos propuseram a moção e a Assembléia a aprovou por unanimidade. Em menos de um mês após a morte de Mário Filho, em setembro de 1966, o Maracanã passava a ser denominado Estádio Mário Filho – nome que Nelson Rodrigues orgulhosamente ostentava sempre em suas crônicas, chamando o Municipal de “ex-Maracanã”.  

  Ao pesquisar, nosso repórter descobriu vários detalhes.

Descobriu que Mário Filho começou no jornalismo na redação de A Manhã, em 1926. O rapaz assinava uma página, intitulada Espírito Moderno, que abria espaço para suas divagações literárias, embora contasse com colaboradores, como Ronald de Carvalho e Orestes Barbosa. Porém, do nada, ele desistiu de qualquer arroubo de jornalismo cultural e resolveu abraçar a editoria de esportes no ano seguinte. Até então, a editoria não existia na imprensa: quem eventualmente cobria o setor, o fazia por sua conta e risco – muitas vezes quase pagando para trabalhar ou dependendo de terceiros, até auxílio dos próprios clubes.

Com Guevara em A Manhã, até 1928 e. depois, em Crítica (de seu pai), Mário Filho iria transformar a seção de esportes numa editoria que puxasse as vendas de um jornal. Além de qualquer formalismo, ele diminuiu a distância entre os clubes e o torcedor. Ao invés de dizer solenemente Clube de Regatas Flamengo, dizia “Flamengo”; ao invés de uma foto posada de um escrete da Capital Federal, ele publicava o joelho estourado de um jogador. Também acabou com as palavras em inglês. O jogo não era mais “match” e a lateral também deixava por decreto de ser “offside”, e por aí vai.

Desempregado com o empastelamento de Crítica, com conseqüência ao apoio do jornal de seu pai à Washington Luís e ao seu candidato em 1929, o paulista Júlio Prestes, Mário Filho encontraria esteio na redação do recém fundado O Globo, jornal de Roberto Marinho. Para poder empregar seus irmãos, Nelson, Joffre e Mílton, fundou o efêmero Mundo Esportivo. Ele duraria menos de um ano, mas seria responsável pela divulgação do primeiro concurso de escolas de samba no Rio de Janeiro. O futebol ainda não conseguia arrebatar mentes e corações numa publicação diária.

 No entanto, como se sabe, o Carnaval é uma obsessão diária do carioca. Mas, naquela época, ainda não era. Com o tempo, o samba seria a matéria-prima de O Mundo Esportivo e iria divulgar as nascentes escolas, como Mangueira, Estácio e Portela, que desciam o morro e iam desfilar na Praça Onze. Promovido pelo jornal, a Mangueira seria campeã do certame, com um tema do jovem e desconhecido Cartola. O sucesso da iniciativa fez com que o concurso fosse posteriormente encampado pela Prefeitura. No ano seguinte o Mundo... não mais existia (durou apenas oito meses). Mesmo assim, Mário Filho levou a promoção das Escolas de Samba para O Globo. E o resto é história.

No jornal de Roberto Marinho, Mário Filho empenhou-se numa campanha sem quartel em favor do profissionalismo no futebol. Até então, havia uma cisão bizantina entre os que postulavam a profissionalização ampla, total e irrestrita. E aqueles que defendiam que tudo ficasse como dantes no quartel de Abrantes. Uma entrevista com Russinho, do Vasco, provocou o debate. O jogador reclamava que, a despeito de receber dinheiro, era pouco para a subsistência dos atletas. A polêmica dividiu os clubes: os que eram a favor, criaram uma liga específica. Logo, surgiriam duas, a em favor dos “profissionais” e outra, encabeçada pelo Botafogo, defendendo o amadorismo. Para o ranger dos dentes dos ludistas, a marcha do tempo provou que o único caminho era a profissionalização.

Defendendo a primeira liga, Mário Filho logo se transformaria em celebridade. Participava de todos os eventos esportivos da cidade, entrevistando atletas e dirigentes. Montou seu quartel general no Café Nice, no centro, ao lado de O Globo. Mário pagava a bebida e levava no bolso as entrevistas para a redação. Na mesma época, meados dos anos 30, ele passaria a promover a rivalidade Fla-Flu. Através da imprensa, fustigava os torcedores de Flamengo e Fluminense a se auto-promoverem num campeonato, promovido por O Globo. O melhor torcedor ou a melhor torcida concorreriam a prêmios. Logo, cartazes, flâmulas e bandeiras, charangas, bumbos e camisetas coloridas iriam ganhar ruas e avenidas.

Quando o tema futebol minguava, Mário Filho partia para outros esportes, do boxe até o então incipiente automobilismo. O Circuito da Gávea, então totalmente subestimado (e perdido na Lagoa ainda desabitada), foi agendado nas páginas de O Globo. Em 1934, depois da primeira prova, o jornal cozinhava o assunto aos poucos. Na data da corrida, o resto da imprensa se via obrigada a cobri-la. Mário soube planejar a pauta e cobrir o evento em todos os detalhes, tirando várias edições especiais. O sucesso foi grande o suficiente para que a prova de 1935 levasse mais de 200 mil almas empolgadíssimas para a Gávea.

Em 1936 surgiu a oportunidade de comprar o Jornal dos Sports. Argemiro Bucão queria vendê-lo. Confiando no taco de Mário Filho, tão bom na imprensa quanto na mesa verde, Arnaldo Guinle e José Bastos Padilha sabiam que ele saberia fazer a publicação deslanchar. Cada um entrava com uma parte no negócio – o resto ficaria por conta de Roberto Marinho que, além de acionista, encamparia o projeto, rodando o jornal nas mesmas oficinas de O Globo.

No fim dos anos 1940, com as campanhas e o Jornal dos Sports, Mário Filho era o maior cronista de futebol no Brasil. Mais do que isso, ele era o seu sociólogo, o seu historiador. Em suas colunas, amiúde Nelson Rodrigues chamava seu irmão de “Homero do futebol”. Mais do que homem de imprensa, ele era um agitador cultural: se não houvesse notícia, ele “inventava” a notícia. Criava campeonatos, conclamava multidões aos eventos que promovia, sempre com gente “dependurada até no lustre”, como diria o autor de Vestido de Noiva.

Nosso repórter descobriu, pálido de espanto, como no soneto de Bilac, que Mário Filho era maior do que a vida. Como diz Ruy Castro, sua presença não sabia mais nos estádios, nas redações. Era um mandarim – um ministro sem pasta. Todos iam pedir a sua opinião, de cartolas até a própria direção da CBD (antiga Confederação Brasileira de Desportos). Muito antes de Juca Chaves dizer que o futebol era o ganha-pão de imprensa, o irmão de Nelson fora aquele que pôs o ovo de Colombo de pé. Para cobrir a Copa de 1938, na França, Mário praticamente encampou a Radiobrás. Entrevistava por telefone jogadores e treinador. Com farto material, sempre anotado estenograficamente à lápis, ele tinha material de sobra para edições e mais edições de seus espaços tanto no Jornal dos Sports quanto em O Globo, que agora também contava com um suplemento, o Globo Sportivo. Exemplares vendiam mais que Chica-Bon na arquibancada do Maracanã.

O suplemento, mais do que inspirado nos tablóides portenhos, tinha em suas hostes o caricaturista argentino Lorenzo Molas. Ele seria o criador dos símbolos dos clubes cariocas: o Popeye rubro-negro, o Pato Donald botafoguense e o diabo do América, entre outros. Na coluna Da Primeira Fila, Mário Filho destilava sociologia: compunha desde perfis de grandes craques até histórias, como a do futebol brasileiro ou a do Flamengo – seu clube do coração entre quatro paredes. Foi  a partir destes ensaios que, em 1947, ele publicaria a sua Casa Grande e Senzala em chuteiras – O Negro no Futebol Brasileiro.

Em 1949, às vésperas da Copa do Brasil, se separaria definitivamente de Roberto Marinho, sendo agora o meneur du jeu do Jornal dos Sports. Nessa época, concebeu os Jogos da Primavera. O evento, que duraria até 1972, foi uma espécie de olimpíada carioca que envolvia desde escolas até clubes, atraindo toda a população para o esporte. Todo setembro era dedicado ao evento, dedicado a todos os esportes excto os profissionais – e que ocorria sempre no Estádio São Januário. Por incrível que pareça, os Jogos eram bancados inteiramente por Mário Filho. Ele pensava que, se dependesse de um presidente, iria depender de todos. E se algum deles se recusasse a ajudar?

Segundo a política de pautar o calendário de esportes, Mário propôs a criação de um interestadual entre Rio de Janeiro e São Paulo. A idéia era a de ocupar espaço na entressafra dos estaduais. Em 1950, foi criado, por sua iniciativa, o Torneio Rio-São Paulo, depois incorporando clubes do Sul e de Minas, chamado de Roberto Gomes Pedrosa – embrião do Brasileiro. A homenagem ao ex-dirigente do São Paulo foi, de certa forma, um meio de açodar os clubes paulistas a topar a parada. Estes, por sua vez, gostaram tanto da idéia que praticamente amealharam todas as taças até 1957, quando o Fluminense quebrou finalmente o jejum dos cariocas. Outra glosa de sua cepa foi a Copa Rio – um campeonato que atrairia também clubes do exterior, como  Juve, o nacional do Uruguai e o Estrela Vermelha.

Dessa forma, Mário Filho preenchia o ano com desportos. No começo, em fevereiro, acontecia a Rio-São Paulo; em julho, a Copa Rio. A partir da segunda metade do ano, havia os Jogos da Primavera e o Campeonato Carioca. Como resumiu Ruy Castro, criar competições era uma maneira inteligente de vender jornal. Mesmo que Mário se pautasse por seus próprios interesses, por tabela, suas idéias acabavam ajudando o resto da imprensa que, no fim das contas, também lucrava com a respectiva cobertura desses eventos.  A Copa Rio, mesmo que tenha durado pouco (dois anos), foi um choque cultural: até então, os clubes brasileiros não tinham pensado em numerar as camisetas. Foi em 1949, na partida entre Arsenal e Fluminense, que um time daqui se fardou com número às costas.

Mas o grande legado de Mário Filho ao desporto foi o Maracanã. Era preciso um estádio para mandar os jogos da Copa de 1950. Na Câmara do Rio, a proposta de erguer o campo no Maracanã enfrentava resistência da bancada da UDN, na figura do vereador Carlos Lacerda. Para ele, o estádio devia ser construído em Jacarepaguá, área que, de acordo com a visão do polêmico edil, então ainda um jovem político em ascensão, a cidade iria caminhar no futuro. Lacerda ganhava adeptos à medida que afirmava que seria irônico construir uma obra faraônica ao lado de um hospital não terminado na região. Mário Filho respondeu pela imprensa: “quanto mais estádios de futebol, menos precisaremos de hospitais”. Contudo, ele ia fazer o chope da oposição virar água quanto trouxe para suas tropas frescas o também udenista e flamenguista fanático Ary Barroso e Luis Galotti, ministro do Supremo. A tese do Municipal no bairro do Maracanã venceu: enquanto isso, Mário iniciou campanha para vender cadeiras perpétuas do estádio. A Prefeitura quis dar uma cadeira para ele; Mário fez questão de pagar a sua com dinheiro do próprio bolso. Para o resto da vida, ele seria chamado de “O namorado do Maracanã”.  

Mário era figura constante na tribuna de honra do Municipal – sempre de terno e gravata, com um charuto, suas sobrancelhas de “vilão de cinema mudo” e um exemplar do Jornal dos Spots no bolso do casaco – sempre comprado na banca, como fazia questão de fazer. Flamengo entre quatro paredes, publicamente ele era um homem ecumênico: transitava com dirigentes, torcedores e gente de todos os clubes – muito embora, consciente ou inconscientemente sempre deixava rastros ou atos falhos de seu ‘rubro-negrismo’ no seu cotidiano. Isso ia desde panegíricos ao clube de Gávea em sua coluna até sua confraria permanente de amigos notoriamente rubro-negros, como Ary, Fadel Fadel, Gilberto Cardoso e José Lins do Rego.

Em 1955, conseguiu dois sonhos inusitados. O primeiro foi convencer Adolfo Bloch a lançar a Manchete Esportiva. O segundo foi trazer para a redação seus irmãos, Paulinho, Augusto e, é claro, o tricolor Nelson Rodrigues. Ainda colocou na publicação Ney Bianchi e outro pó-de-arroz, Ronaldo Bôscoli. Manchete Esportiva não foi um tremendo sucesso – era difícil atrair anunciantes: era vencedor embora apenas dentro das suas quatro linhas. Mas serviu para que Nelson, que até então limitava-se ao teatro e o folhetim à crônica policial com A Vida como ela É... passasse a militar nas hostes da crônica esportiva, e para sempre (e hoje sendo mais lembrado que seu irmão). Profético, nas páginas da manchete Nelson Rodrigues seria – ele sim, o arauto, ou melhor, o Homero da vitória maiúscula do escrete brasileiro na Suécia. Para ele, o teórico do “complexo de vira-latas” que se instaurou no ethos brasileiro após o Maracanaço, 1958 enterraria de vez o sapo psicológico da Copa do Brasil. “Somos heróis de esporas e penacho”, bradava, com o olho rútilo e o lábio trêmulo enquanto a Seleção voltava com a flamejante Jules Rimet para o Brasil.

Nesse ritmo, com muito engenho e arte, Mário Filho moveu mundos e fundos para a Copa de 1966. Pôs o coração na ponta de chuteira: importou toneladas de papel, investiu em novas máquinas para o jornal, montou uma grande equipa para testemunhar o tri. Não fora nas conquistas anteriores, em 58 e 62. Agora, apostou todas as fichas, toda sua vida e sua reputação.  

Foi, viu e não acreditou. Irreconhecível, mesmo com Pelé e Garrincha, o escrete não passou da fase de classificação A crônica acusava o time de velho e medroso e o que era pior, desentrosado. No último jogo, havia jogadores que sequer haviam jogado um único e escasso rachão juntos. A campanha do tri foi adiada para dali a três anos. E Mário Filho, como um Moisés que não pôde entrar na terra prometida, morreu bem antes do México e dois meses após a débâcle nas terras inglesas. Seu coração o deixou na mão: fora o primeiro e fulminante infarto, na madrugada do dia 17 de setembro.

Além de O Negro no Futebol Brasileiro, História do Flamengo e Viagem em Torno de Pelé, Mário Filho tem ainda toda uma produção jornalística ao longo de mais de trinta anos de carreira ainda por ser descoberta. Mais: quando se fala que o jornalismo de comunicação ou o jornalismo comercial encontrou seu caminho além do gênero político, a partir do século 20, é importante salientar a importância da própria popularização do futebol nesse processo, principalmente a partir dos anos 1940 e das formas pelas quais a imprensa soube agendar essa pauta a seu favor. Se no caso brasileiro, isso teve um começo, esse começo foi a partir da atuação de Mário Filho no campo jornalístico, a partir dos anos 1930.

Depois da pesquisa, nosso repórter começou a redigir o texto, catando milho pacientemente em sua Remington, sob a luz de archotes. Lembrou que foi interpelado pelo responsável pela seção do arquivo de jornais. O homem, como olho rútilo e lábio trêmulo, disse: “meu amigo, a falta de memória do brasileiro – que, como dizia Millôr, a cada vinte anos esquece o que aconteceu nesses vinte anos, certamente ajudou a enterrar de vez a imagem de Mário Filho como o Homero do futebol, do desporto e da imprensa esportiva brasileira. Aliás, seria injusto dizer que aqui não existe memória: ela só é reativada a partir de interesses de ocasião ou por revisionismo puro e irresponsável”.

 

Referências:

CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.      


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