Wednesday, November 27, 2019

Mais pesado que o céu


Kurt Cobain

Esses dias eu estava vendo o clipe de Sliver, do Nirvana, no Youtube. Me lembrei daqueles velhos tempos da MTV no Brasil, lá por 1992, 1993, quando sempre passava esse vídeo. Na época eu não havia me tocado, mas essa letra é extremamente triste. Fala de uma criança que é deixada na casa da avó porque os pais vão para um show. Ele implora para que eles não o deixem só. Depois que eles saem, o menino, desesperado, implora para que ela o leve para casa. Vovó me leva pra casa, vovó, me leva pra casa, vovó me leva pra casa, vovó me leva pra casa. Ela manda ele parar de encher o saco, depois dá de comer e bota ele na rua para ele se distrair com a bicicleta. Ele volta machucado. Depois chora, dorme e, no fim, acorda nos braços da mãe.

Li o Heavier than Heaven, aquela biografia do Kurt Cobain, que é bem antiga já, tem quase duas décadas. Diz-se que ia virar filme mas, até agora, não se tem notícia do que vai acontecer. Mas a verdade é que o livro é um prato cheio para quem é da linha da psicologia sistêmica. Mais adiante eu tento explicar.

Existem biografias e biografias. Às vezes o biógrafo pode estragar o biografado; ou quando é uma autobiografia escrita por um ghost writer, como a da Billie Holliday. Algumas vezes o escritor é um biógrafo nato, como o Ruy Castro. Ou biografados terem centenas de biografias e quase nenhuma acrescenta nada. É o caso, por exemplo, do Frank Sinatra. Li certa vez a que Anthony Summers e Robbyn Swan escreveram e achei tão chata que, quando eu terminei o livro, doei à biblioteca. Acho que aquele perfil que o Gay Talese escreveu do Sinatra (Frank Sinatra has a cold) é melhor que qualquer biografia dele. Aliás, o Talese dá uma aula de como se escreve um perfil. Uma grande reportagem que contém tanta informação, e é tributária de tantas fontes que ele foi capaz de dar a impressão ao leitor que o tempo todo ele é uma mosca na parede na cola do cantor. Li autobiografias de cantores, não vou citá-los mas, no fim, o que pareceria uma experiência de conhecer a vida de um artista contado por ele mesmo me deixou a impressão de que tudo não passava de exibicionismo e bravatas. Não ia contar, mas vou contar: a do Neil Young. Não gosto de deixar livros pela metade, mas tive que deixá-lo pela metade. A do Keith Richards tem muita bravata, e muita coisa que ele deixa passar, mas tenho que dar o braço a torcer. O que me impressiona é a forma como ele conta do passado junkie como se fosse um joie de vivre. E vale pela vida de  exilado na riviera francesa. Essa é, sem sombra de dúvidas, a melhor parte do livro. Tem outras, mas essa, na minha humilde opinião, é a melhor.

A autobiografia do Eric Clapton por exemplo me tocou pelo fato de que a gente pega o livro para ler histórias heróicas da vida dele. Passagens pelos Yardbirds, com o Mayall, o Cream, o Blind Faith. Enfim a história não só de um cara que esteve naquela cena musical mas que também foi protagonista daquilo tudo, esteve com Lennon no Festival de Toronto, dentro de Abbey Road.

Mas o livro é uma psicologia de um torturado. Ele era filho de pai ausente e isso era um tabu enorme na época. Sua mãe o abandonou e o rejeitou. Ele foi criado pelos avós. Essa relação conturbada certamente foi influenciar em sua conduta no futuro. Clapton sempre dá a entender que ele tinha um pé atrás não queria se expor se recolhia se sentia pequeno quando era considerado pelas Deus pelas pichações de Londres. Ele largava trabalhos nas bandas. Ficou chocado quando a Rolling Stone o chamou de burocrático e matou o Cream. Entrou quase saindo do Blinf Faith. Passou a ser um usuário compulsivo de álcool pelos anos 70. Antes, depois de relatar a experiência frustada de sua paixão irreversível por Patti Boyd, afundou-se um período sabático usando heroína. Escondeu-se atrás da persona do guitarrista de fundo. Quando fez os Dominos não colocou o seu nome. Alguém o disse que se ele não tomasse as rédeas da vida dele, Deus iria tirar a sua virtude. Então ele virou solo. Conquistou Boyd mas, com medo de ter a sombra de seu amigo Harrison, passou a chamá-la de Nell, que evoca sua mãe. Ao mesmo tempo, sustenta essa relação com álcool e isso quase o leva à morte.  Quando larga a bebida, perde o desejo por Pattie. A troca por outras, tem um filho e o perde de forma trágica. Até que num delirium tremens ele faz um pacto com Deus para largar todos os vícios. E, de fato a sua vida, dali em diante começa de fato a partir dali. Ou seja, paradoxalmente os melhores anos de sua vida foram os "piores". No fim, diz que só não morreu porque a música o salvou.

Fiz esse longo parágrafo para chegar no livro do Charles Cross sobre Cobain. Da mesma forma como Clapton, a sua infância e juventude, assim como na maioria delas, pode parecer desinteressante ou sempre a mesma. Porém, a de Kurt foi diferente. Ela definiu todo o resto da vida. Sua mãe disse que, quando ele se matou, em 1994, havia entrado para o clube dos idiotas que se matam com 27 anos. Contudo, é incrível como a relação dele com os pais o traumatizou de forma progressiva. Primeiro, ele sofreu muito com a separação de ambos; depois, teve que viver com cada um deles respectivamente e a relação deles era sempre turbulenta. Ele tinha que recorrer a amigos ou a moradias improvisadas. "Something in the Way" é sobre isso, embora Cross explique que ele nunca morou debaixo de pontes. Mas morou em carros caminhões, vans, bancos. Sempre foi um outsider.

Outro lado que chama a atenção é o seu lado artista plástico. Se Cobain não fosse virar guitarrista, ele seria pintor, embora creio que fosse rebelde demais para seguir carreira a sério. Mas a verdade é que ele desenhava bastante, e sua arte era cheia de imagens patológicas, hospitalares, mórbidas. Se você for assistir o clipe de Heart Shaped Box, vai notar camas de hospital, uma menina com uma roupa da Klan, um Cristo velho, uma mulher descarnada à guisa daqueles modelos da Revell - e que inspira a capa do In Utero. Na verdade, o que podia parecer mera provocação e, além do mais, de mau gosto para um clipe para a MTV, tudo aquilo plasma o imaginário de Kurt e que está em suas pinturas e desenhos.

Cross também fala das suas dores de estômago. Em dado momento do texto, alguém fala que aquela dor não era explicada pela medicina. Disseram a ele que ele era de ordem somática. Era uma dor da alma que falava no corpo, em suma. Era como se fosse, pegando a metáfora do Kafka, aquela maçã que apodrece nas costas do inseto e que foi arremessada pelo pai de Gregor. Cobain viveu desde então uma vida errática, descobriu as drogas, em especial a heroína.

E não conseguiu se livrar dela. Além disso, a biografia revela fatos sobre  consequências de sua drogadição abusiva. Quando ele estava prestes a conquistar o mundo com o Nevermind, ele teve uma overdose. Aliás, teve várias durante os anos seguintes. Desenvolveu uma vida de viciado, com o cotidiano dos viciados e as consequências dos viciados. Em parte, a droga minorava os efeitos das dores estomacais. Mas a doença somada ao vício foram determinantes. É como disse um amigo de Tim Buckley, outro usuário de heroína, quando ele morreu: "Tim teve a overdose fatal com uma dose menor do que ele estava acostumado a tomar. Porém, nós sabíamos que quem tinha uma vida assim iria morrer mais cedo ou mais tarde".

A doença e a droga definiram o resto da vida de Cobain. Aquele internamento em Roma foi uma overdose de pílulas. Ele foi salvo por Courtney Love. Ele foi pressionado a internar-se para reabilitação duas vezes: na última traçou o caminho para a morte. Essa é a parte mais terrivel de Heavier than Heaven. E mais polêmica, porque ele romanceou a cena fatal de Kurt só em casa antes de meter uma bala de espingarda na boca. Eu achei passável. Lembrei do final de A Sangue Frio, do Capote, que também foi bastante romanceado, de forma a que o livro, um clássico do Novo Jornalismo, tivesse um fim interessante.

Lembro do episódio da internação em Roma. Na época eu ouvia bastante o Inseticide e Sliver tocava bastante na MTV. Achava que aquele seria a tônica dos próximos discos. E me frustrei bastante com o In Utero, achei uma sub produção, sem músicas fortes, e que só ressaltava aquela imagem de desespero que suas canções mostravam. Contudo, sem aquela nota ligeiramente engraçada, como Sliver. Como eu disse lá no começo desse já longo texto, achava ela sempre engraçada, ainda mais por causa do clipe. Só que ao ler o livro do Cross eu percebi que havia muito de autobiográfico dele ali, porém tratado de uma forma cômica: o jeito do refrão, o fato dele, num momento raro, escrever uma letra que de fato conta uma história. Enfim, eu tinha aquela imagem que vinha da imprensa, e que o mostrava mais como uma pessoa excêntrica, o que não é incomum no mundo do rock. Mas não como uma pessoa torturada. Ao ver ele com Frances no colo, achava que ele agora era uma pessoa feliz, que tinha um lar. O livro fala que o estilo de vida de Cobain e de Courtney eram tão incompatíveis com a criação de um bebê que eles entraram num grosso litigo com o resto da família pela possa da criança. Essa histórias de bastidores não chegavam tanto. Pelo menos, numa época pré-internet, não havia como ficar sabendo de tudo o tempo todo, como hoje. E você, de repente, tem tudo aquilo diante de você. A vida do Kurt agora parece um anticlimax e depois uma longa e silenciosa decadência. Mas o fato dele estar no panteão das pessoas que morreram com 27 não implica no fato de que ele tenha a mesma trajetória de Hendrix, ou Morrison. A vida dele é algo bem diferente e singular. E a história de uma tragédia ou,  usando o lugar comum, a crônica de uma morte anunciada.

Lembro da Zero Hora dando na capa, um olho, uma nota no canto direito superior, a morte. Antes, minha mãe havia me dito. Isso foi bem na época que eu estava me preparando para o vestibular de jornalismo da PUCRS. E lembro quando o Unplugged saiu, em novembro. Lembro de ouvir no sistema de som do saguão da Famecos o About a Girl. E parece que uma época desapareceu com eles. Depois eu me desinteressei completamente pelo Nirvana, e anos se passaram.

Eu ouvia muito o Nirvana na época. Não achava graça no pop que o rádio tocava ali por 91. E foi surpreendente ver uma banda alternativa desbancar um bando de figurões das paradas. Basta lembrar que, naqueles tempos, não havia internet. Então a única fonte de informação sobre música era o rádio. Era incontornável. De repente, você ouvia algo disparatadamente engraçado como Lithium tocando na rádio Cidade! Ao mesmo tempo que o Nirvana desbancou aquele hairy rock que ainda vinha dos anos 80, uma banda de guitarras com um visual despojado e sem muita pose ou mais irreverência do que pose, mudar a face da música quase que sem querer. Quando eles estavam lançando o Nevermind, Kurt morava num carro. Ele fora despejado, vendeu duas tartarugas que ele tinha como mascote para ter grana. Ou seja, ele sempre teve essa vida de cachorro, chapliniana, e foi assim que ele partiu, sozinho, como numa última cena de filme de Carlitos.

Após ler a biografia do Cobain, eu tive um surto de reouvi-los. E ao contrário daquele tempo (eu tinha os discos em fitas daquelas compradas em loja) hoje é possível ter acesso a tudo deles, até o que eu não conhecia, como bootlegs. O livro do Cross, na verdade, é de 2000 e eu fui ler tudo só hoje. Alguns livros parecem que chegam até nós no momento certo.

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