Tuesday, December 21, 2021

Get Back

 


A vez primeira em que eu ouvi falar desse documentário Get Back, produzido pelos Beatles e remodelado por Peter Jackson a partir do copião original do filme do Michael Lindsay Hogg, achei que seria um grande embuste.

Para começar, achava estranho o fato da produção de 1970 nunca ter sido relançada oficialmente em DVD ou o que for que o valha. É mais do que notória a história da controvérsia em torno do resultado do documentário – assim como a do álbum Let It Be, certamente um dos discos mais controversos da história do rock por razões que não pretendo elencar aqui, pois todos sabem.

Get Back surprendeendeu não só a mim mas a todo mundo. Se jogarmos com o filme – parto do princípio que, bom o mal, o trabalho de Lindsay Hogg deve ser considerado e contraposto, algo que muitos não são hoje talvez capazes de discernir, porquanto a produção original não é conhecida do grande público e não teve a visibilidade da de Peter Jackson. 

Os Beatles usaram o tempo ao seu favor. De fato, foi uma boa idéia ter deixado Let it Be na geladeira por todos esses anos. Restaurada, a nova versão ganhou uma nova cara. Mas mais do que isso, comparado ao produto final de Lindsay Hogg, Get Back curiosamente faz jus ao nome. O que deve ser passado pela cabeça de todos é: como esse material foi negligenciado dessa maneira por tanto tempo? Perfazer as filmagens de forma cronológica a contextualizada, além de mostrar uma outra (verdadeira?) cara para o que acontecem naquelas sessões de gravação, vai obrigar muita gente a reeescrever o que disse sobre as filmagens.

A nova produção parece um documentário sobre o filme original. Também consegue mostrar todo o work in progress de uma banda sob pressão de gravar um disco em um mês do nada. Isso sem contar que, de junho a novembro os Beatles estavam gravando o Álbum Branco. Hoje isso parece inconcebível – fazer música quase em escala fordista. Os artistas em geral eram muito mais exigidos naquela época. O quarteto lançou em novembro um trabalho e, no começo de janeiro do ano seguinte, estavam na obrigação de soltar mais um disco no mercado. Isso explica o habitus de um artista como Paul McCartney, que tirou “Get Back” do nada, escovando o baixo à guisa de violão diante dos bocejantes Ringo e George, enquanto esperavam John aparecer. Essa cena, que é um dos grandes momentos do novo documentário, incrivelmente passou despercebida de lindsey Hogg, que foi o diretor original, diga-se de passagem.

Jackson também não passou longe da famosa discussão entre Paul e George, do filme original. Aliás, ele redimensionou a cena.

A rusga era antiga e chegou ao paroxismo quando Harrison decide levar sua cólera para longe das gélidas sessões do Twickenham. Como Aquiles na Ilíada, ele deixou o campo de batalha para não voltar mais. Porém, ao contrário da epopéia homérica, a embaixada para demovê-lo de sua ira acabou dando certo.  Enfim, quem vê os bastidores das sessões do Get Back está vendo o que acontece em qualquer banda de rock, brigas, batalha de egos, todo mundo querendo deixar o amplificador mais alto que o outro, etc. Talvez essa seja a fascinação de Get Back: nunca os Beatles foram tão demasiadamente humanos sendo eles mesmos. Não são eles lembrando do passado, mas eles sendo eles mesmos, uma grande família às turras mas que, no fim das contas, sempre era salva pela magia da música e da arte.

Os Rolling Stones voltaram à estrada mês passado mas tudo o que se falava no mundo da música no final de 2021 eram os Beatles. Mesmo defuntos desde 1970, como o Cid Campereador eles continuam vencendo batalhas e voltando às paradas de sucesso.

Tuesday, June 22, 2021

À Media Luz

Capa da partitura do tango Griseta

A gente, que é brasileiro, e mesmo em outros países, acaba assimilando o tango como uma dança. Assim, não entende todo o ethos, a linguagem – muitas vezes cifrada pela gíria do lunfardo, e todo o imaginário em torno desse gênero, que nasceu no bas-fond de Buenos Aires há mais de um século e que se transformou numa síntese da música argentina.

Por exemplo, o tango “A Media Luz” tem lá as suas histórias. Muitos não sabem, mas os tangos naquele tempo, como o maxixe no Brasil dos anos 1920, estreava nas burletas e revistas de teatro das grandes metrópoles. Depois de caíram na boca do povo, eram gravadas numa época em que a fonografia ainda engatinhava embora já produzisse seus artistas do disco.  

Tem um trecho dela que diz: “pisito que puso Maple”. Você não deve ter entendido nada.  Maple era uma fábrica de móveis em Buenos Aires, e de origem inglesa. E além de móveis eles faziam pisos de madeira. O “pisito” seria o nosso famoso parquê. Então o que rolou aqui foi um marshandising maroto, proposital ou por pura zoeira.

Ainda em “À Media Luz”, a letra descreve, com muita sutileza, uma pessoa em busca de alguma aventura amorosa. Ele chega com o endereço anotado, pede o andar ao ascensorista e, lá dentro, coquetel e amor”. Pode ser uma casa de lenocínio ou uma garçoniere. Como naqueles tempos não existia o famoso motel, era comum alugar um apartamento – em geral dividido entre amigos (que o usavam alternadamente) para esses encontros à média luz.

Essa letra, de Carlos Manzi (de 1926) possui uma segunda parte, que foi posteriormente suprimida. Como se sabe, lá pelos anos 1940, com a ascensão dos militares, especialmente Perón, ocorreu uma espécie de revolução cultural na Argentina cujo objetivo era o de acabar com o tango e o lunfardo, taxados de imorais.  Talvez por conta disso, a letra tenha sido alterada. A segunda parte é essa: 

Juncal 12, 24
Telefoneá sin temor.
De tarde, té con masitas;
de noche, tango y cantar.
Los domingos, tés danzantes;
los lunes, desolación,
Hay de todo en la casita:
almohadones y divanes;
alfombras que no hacen ruido
y mesa puesta al amor.

 Detalhe para o verso: “come en botica, cocó”. Cocó no lunfardo (a gíria do tango) era como era chamada cocaína. Essa expressão aparece em vários outros tangos, como “Maldito Tango” e Griseta”.

Naquele tempo, drogas como a morfina, o ópio ou a cocaína chegavam da França via Marselha para Buenos Aires. No começo, até podia ser comprada em farmácias. Em geral, usava-se de algum código para adquirila no balcão. Fazia-se algum pedido qualquer, como “cafiaspirina” ou “ácido bórico” ou qualquer coisa inocente.

Era aspirada ao extrair o pó do vidrinho e passar nas narinas. Depois veio a idéia do canudos – feitos em geral com o papel da embalagem de cigarros.  Depois da Primeira Guerra o uso se intensificaria  quando as rotas entre Europa e América do Sul foram retomadas e espalharia-se com o tráfico de mulheres, cujo destino era Buenos Aires. E, em segundo lugar, o Rio. Ruy Castro cita Lima Barreto para dizer que, com a chegada das “polacas” ao Mangue, praticamente mais da metade das prostitutas da Capital Federal eram traficantes de cocaína. Do bas-fond, a droga facilmente adentraria salões e teatros em toda a parte e cheirava-se nas mesas como se fosse uma rodada de chá da índia.

Quando se fala em música em drogas, sempre se pensa em rock ou outros gêneros mais contemporâneos e associados à cultura jovem pós-guerra. Mas é interessante também pensar que sexo e drogas eram tópicos centrais na lírica do tango. O caso da supressão da segunda parte de “A Média Luz” e a perseguição do lunfardo por Perón demonstra a força que o tango possuía, e como é possível vislumbrar em temas como esse toda a força do imaginário do tango. É possível contar uma história social do gênero apenas revisitando e contextualizando suas letras.

Na letra de “Maldito Tango”, de 1916, a palavra “tango” serve como referência cifrada para falar da droga, bastando trocar uma por outra:

Maldito tango que envenena
con su dulzura cuando suena,
maldito tango que me llena
de tan acerba hiel.
El fue la causa de mi ruina,
maldito tango que fascina...
¡Oh tango que mata y domina!
¡Maldito sea el tango aquel!

De maneira cifrada, ele culpa a dança e não a droga como salvação a um coração partido e a crença que sua vida está ligada eternamente ao bas-fond. No começo, ainda fazia-se esse expediente. Mais adiente, em temas como a supracitada “A Media Luz” e outras, como “Grisetta”, a referência é explícita – embora se usa mormente a gíria lunfarda: 

 Mezcla rara de Museta y de Mimí

con caricias de Rodolfo y de Schaunard,
era la flor de París
que un sueño de novela trajo al arrabal...
Y en el loco divagar del cabaret,
al arrullo de algún tango compadrón,
alentaba una ilusión:
soñaba con Des Grieux,
quería ser Manon.

Francesita,
que trajiste, pizpireta,
sentimental y coqueta
la poesía del quartier,
¿quién diría
que tu poema de griseta
sólo una estrofa tendría:
la silenciosa agonía
de Margarita Gauthier?

Mas la fría sordidez del arrabal.
agostando la pureza de su fe,
sin hallar a su Duval,
secó su corazón lo mismo que un muguet.
Y una noche de champán y de cocó,
al arrullo funeral de un bandoneón,
pobrecita, se durmió,
lo mismo que Mimí,
lo mismo que Manón.

 Esse tango, letra de José Castillo, é um clássico, com várias gravações. E a letra é sublime em fazer referência à Manon Lascaut e a Dama das Camélias (cujas obras possuem, como se sabe, enorme duplicidade) para contar a – depois batida – história da moça que, sonhando com as flores de antanho, quis viver na vida real a dos romances. Porém, como ocorre às protagonistas das obras de Dumas Filho e Prévost, ambas tem um final trágico.

 Francesinha, que num sonho num romance queria ser Manon ou Mimi (outra referência à heroína de La Bohème, ambas as obras depois adaptadas à ópera por Puccini), vai de Paris até o “arrabal” (Buenos Aires?), e consome sua vida no universo mundano dos cabarés, regada a champagne e “cocó”.  Por fim, pobre, morre de tuberculose – como Margarida Gauthier, a heroína de Dumas Filho.

 A referência à drogas (e sexo) no tango são muito fortes no seu período áureo, de 1916 (quando Gardel lança o tango-canção) até 1940 (quando os militares tomam o poder). Por conta dessas variantes, a forma como esses temas eram abordados podiam variar com o tempo. E a forma como a cocaína era mencionada (“cocó”) mostra como – este como um exemplo de algo maior, que é o próprio lunfardo que, como gíria cifrada, era capaz de realizar esse sutil comentário como um divertido contrabando linguístico. Quem entendia a sutileza, entendia.


Monday, May 24, 2021

80

Dylan em 1966

A primeira vez que eu ouvi Bob Dylan foi no rádio, em alguma FM, tocando “Lay, Lady, Lay”. Como era comum naquela época, a gente escutava determinado artista mas não tinha idéia de quem era ou qual era a sua cara. Então, quando eu ouvi Bob Dylan pela primeira vez, ele era apenas música, um cara cantando uma música. Com o tempo que eu associei aquela música com o cantor que ia se apresentar pela primeira vez no Brasil. A gravadora dele lançou uma coletânea que, na verdade, era aquela greatest hits de sempre, porém com outra capa, com uma imagem recente dele, provavelmente com fins comerciais. O problema daquele disco era que ele falava de um repertório muito antigo dele. Mas aquela coletânea era como a do Simon & Garfunkel, praticamente todo mundo tinha aquele disco. Em geral, eram discos que as pessoas compravam por causa de uma ou outra canção. Lembro de vasculhar as caixas de discos em sebos. Sempre na letra B quando eu procurava pelos discos dos Beatles, eu me deparava com a cara do Bob Dylan me olhando na foto da capa do Highway 61 Revisited. Não sei por que, não me interessava nada nele nem naquele disco mas alguma coisa no fundo da minha mente me dizia que eu iria um dia comprar aquele disco. Eu só fui ouvir Bob Dylan quando eu ganhei – de uma forma inusitada – uma cópia da trilha do filme Easy Rider. Até então, rock para mim era aquele iê iê iê do começo dos anos 1960. Quando eu escutei aquele disco, eu desbundei. Já estava na faculdade e aquele era o momento certo para desbundar. Eu ouvia aquelas canções tipo “The Pusher”, “If Six Was Nine” mas a interpretação do McGuinn para “Its Allright Ma” me deixou ligado. Então eu descobri que desde aquele libelo da liberdade em “Ballad of Easy Rider” e o desesperado grito niilista de “Its Allright Ma” eram canções do Bob Dylan. Foi quando eu resolvi comprar aquela coletânea comum. Qual foi a surpresa: uma coisa é você ouvir uma canção no rádio, por tabela. A outra é você comprar o disco (como se fazia antigamente), sentar na frente da eletrola, tirar os sapatos e ouvir o disco porque você quer ouvi-lo. E aquilo fazer a sua cabeça. Eu lembro de passar a vista nas faixas do elepê. Parei em “Subterranean Homesick Blues”, parecia um discurso, eu ouvia e pensava, cara, essa música é um chamado, é o meu chamado, eu preciso saber tudo o que está acontecendo, preciso saber o que ele está dizendo em todas essas músicas, preciso escrever poesia assim, preciso estar ligado. Quando eu li poesia e literatura beat, anos depois, eu já estava preparado, já tinha passado por aqueles discos do Bob Dylan. Dylan, como outros tantos, pegaram aquela tocha dos beatniks. Meu segundo objetivo era o de arrumar a coleção dos discos dele dos anos 60. O desafio era achá-los. A gravadora no Brasil tinha poucos títulos em catálogo. Nos sebos era mais fácil encontrar os álbuns lançados nos anos 80. Sempre lembrando que nos anos 90 não havia mp3 nem streaming. O jeito era rarimpar discos usados. A sorte é que naquela mesma época estavam chegando os CDs americanos. Afinal de contas, lá os discos dele nunca estavam esgotados. E aconteceu nessa mesma época no país um fenômeno interessante: muitos colecionadores de vinil estavam bancando suas incursões pelo novo mundo digital torrando boa parte de sua coleção de discos nos sebos. Ao mesmo tempo que via os títulos em AAD nas paredes das lojas, apareciam para valer material antigo raro do Bob Dylan, inclusive discos nacionais. Nessa época eu catei boa parte da coleção sessentista dele. O que eu não achei ou não tive paciência para garimpar acabei comprando em CD importado mesmo. Porque a gente sabia que no Brasil da era do CD, as gravadoras precisavam conciliar a produção com a demanda. Então, sabendo que o compact disc era um bem caro, grandes prensagns. Ou seja, eu sabia e todos sabiam que a discografia completa do Dylan não ia sair em CD no Brasil. E a gente só foi realmente ter condições de conhecer de fato (eu) a obra dele com o mp3. Quer dizer, no começo, era o vinil. Depois do Grestest Hits, eu procurei outros discos. O que foi o meu evangelho, na verdade, foram dois: o Biograph e o Before the Flood. Depois daquela coletânea banal e de pouca música, eu entrei de fato na obra dele pela caixa que, por sinal, havia saído em 1985 aqui (e estava esgotada desde então). O Biograph eu catei no Brique, e paguei barato porque eram os discos com o encarte num invólucro de plástico, já que não havia a caixa. Eu relevei, porque o que me importava eram as músicas. A caixa é uma bagunça mas é certamente a melhor coisa – ainda hoje para quem quiser ouvi-lo pela primeira vez, é para quem nunca ouviu nada do Dylan e quer ouvir. Hoje é difícil pensar dessa maneira, já que toda a discografia dele está a um clique de qualquer pessoa que tenha conexão com a internet. Hoje é fácil ouvir tudo e coletâneas não servem mais de parâmetro para seleção musical de um artista. Coletâneas hoje fazem parte de um tempo heróico da história do disco, e temos até mesmo uma relação afetiva que a cultura material explica com esses elepês. Eu adorava e ainda amo essa caixa. Apenas lamentava na época que havia espaço para material que ele fez no final dos anos 70 e começo dos anos 80. Naquele tempo, quando eu comecei a ouvir Dylan, eu gostava mesmo era dos álbuns entre 62 e 69. Até hoje posso dizer que conheço bem o Dylan dos anos 60 e pouco o do final dos 70 e quase nada dos anos 80. Acho que um dia eu irei me debruçar nesse material que eu ouvi, ouvi, mas sempre voltei para os Bringing All Back Home da vida. Esse momento meio que está chegando, porque eu confesso que estava reouvindo os velhos álbuns do começo da carreira dele e confesso que, com exceção de uma ou outra faixa, ou, no fim, depois que eu me desfiz de toda minha coleção de discos, fiquei meio que afetivamente restrito apenas ao Biograph, não tenho ouvindo mais os Highway 61 da vida. Algumas coisas me deixam nostálgico, como “Bob Dylan’s Dream”. Aliás, estava reescutando o Biograph domingo de noite e lembrando daquelas primeiras audições, da vontade de traduzir todas aquelas letras e procurando loucamente conhecer as músicas que eu ainda não conhecia. Lembro de imprimir as letras e tentava traduzi-las com meu inglês da época. Eu curtia com afinco aquela fase folk dele, essa eu entrei de cabeça. Então, quando ouço de faixas como “Corrina, Corrina, “Restless Farewell” ou “Percy’s Song” (que eu não ouvia há muito tempo, foi reouvir ontem) eu lembro daquele meu tempo, do começo de ouvir Dylan. E querer entrar naquele mundo de poesia automática. Lia a contracapa do Highway 61 e queria escrever algo parecido com aquilo.  Claro que quando li o On the Road pela primeira vez, parecia que eu já estava iniciado com aquele tipo de linguagem, estávamos imersos no mesmo imaginário comum. Aliás, não só no caso do Dylan mas, em geral, na época do disco, com a grana contada, a gente tinha que escolher o que ouvir, não dava para comprar tudo. Então posso dizer que eu só fui realmente ouvir grandes clássicos do rock depois do mp3. O meu ócio criativo e internet a cabo me permitiram conhecer a discografia completa de muita gente. Graças ao mediafire, rapidshare e outros, ouvi todo o Hendrix, Who, Cream, Zappa, Led, Sabbath, todo prog possível, todo o Elvis (até os discos chatos de filmes) Yes, tudo o que o vinil ou não possibilitava e o preço do CD proibia. Foi bom ser internauta nos anos 2000 para pegar o 1001 Albuns do Robert Dimery e ouvir tudo – e o que eu não pude achar do Dylan. Aí que eu pude ter contato com o resto da obra dele e essa fase Jack Frost pós Time Out of the Mind que eu confesso que também acho que é algo que eu vou ouvir melhor futuramente. Porém, confesso que gosto muito do Togheter Through Life (2009), disco que eu tenho uma queda porque me lembra daquela época, lembro do dia que eu ganhei de presente o CD (pirateado) de um amigo. Lembro que havia chegado de um concurso em Santa Maria na segunda de manhã, totalmente molhado da chuva, meu quarto estava todo mudado, eu ainda estava com a viagem na cabeça, de ressaca da cerveja que eu havia consumido em escala industrial e triste de voltar para esta cidade chamada Porto Alegre, eis que chegou esse meu amigo para consertar o computador do meu irmão e ele me deu o álbum gravado em CDA de primeira mão num CD TDK. Domingo eu estava ouvindo ele e achando engraçado os pickpockets que ele faz copiando coisas do Willie Dixon ou aquela primeira faixa do disco, que é totalmente inspirada em “All Your Love” do Otis Rush. O que demonstra que o Dylan, mais do que folkie, é um cara que tinha enormes raízes no blues e na canção americana do Tim Pan Alley, que ele era acusado de ter sido a nêmesis da grande canção norte-americana. Há ainda um parêntese na fase Frost do Dylan – que já não tem lá muito a ver com aquela imagem que se tem dele dos anos 60, o eterno trovador com um violão folk no colo ou o cabeludo de óculos escuros, terno, camisa polkadot e Fender sunburst, ele de caoubói kitsch cantando Sinatra, não deixa de ser engraçado como ele conseguiu com isso irritar desde os fãs roxos dele quanto os do Sinatra. O que é sintomático porque mais que um folk singer, Dylan foi o cara que entronizou a figura do singer-songwriter. Com ele e outros de sua geração, o intérprete não dependia de editoras musicais como a da Broadway dos anos 20 e 30. Ele pertence à geração que cantava as próprias músicas e o fato de ter ou não ter voz era um detalhe. Em outros tempos, ele seria apenas um compositor. Mas naquele momento, ele era cantor – e cantor competindo com intérpretes como Johnny Mathis, seu colega de gravadora. Claro que ele não conquistou esse espaço sem muita negociação. Primeiro, cantar sem ser cantor, depois provar que era possível vender discos cantando folk; depois, provar que era possível fazer um improvável crossover para o rock e abandonar o circuito folk que até hoje em parte não o perdoou por isso. Mas talvez essa inconstância seja a sua virtude; de forma diversa, Dylan estaria até hoje, como muitos, gravando pela centésima vez o mesmo disco. Eu há tempos não ouvia nada dele. Depois da debacle da minha coleção de discos, hoje lembrei do primeiro disco, depois do Biograph, depois de ouvir todos os discos dele e tê-los em CD e vinil e depois me desfazer de tudo. E hoje ouço o Biograph como lá no começo. A gente sempre tem esses afetos com relação à discos antigos e coletâneas. Elas eram o que formavam nosso caracteres como ouvintes de disco. Feliz 80, caro Bob, que venham outros 80.

Sunday, May 23, 2021

O Leopardo e a unificação: uma parábola

 

Cena do filme Il Gatopardo

Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) escreveu o Leopardo - livro lançado postumamente, em 1958. Partindo de sua própria experiência, ele conta a história do começo da unificação italiana a partir da ótica de um nobre da Sicília, região da península ainda associada ao antigo regime num momento histórico de mudanças que ainda não haviam chegado ao reino que ainda vivia sob a égide dos Bourbon. Ao contar a história de Dom fabrízio, ele conta a sua história, de um ponto-de-vista singular. Lampedusa também era um nobre da Sicília (já unificada), ou seja, ele é quase um alter do protagonista do livro, Dom Fabrízio. O livro pensa o momento da unificação, o ocaso da figura e dos valores da aristocracia e o surgimento da burguesia comercial italiana. Ele conta o fim da sua história e de sua estirpe que se fica para trás no processo histórico.  A Sicília era um reino que era eterna para a aristocracia, e o príncipe de Salinas conta o fim daquela eternidade. O tema do livro, sobre mudar não mudando e a visão privilegiada de um proitagonista que vê tudo mudar sob seus olhos de certa forma era recorrente em alguns cineastas italianos na segunda fase do neo-realismo. O Leopardo, que foi rejeitado por várias editoras, virou sucesso literário, sucesso reforçado pela adaptação ao cinema. 

Tancredi é o representante da nova Itália. Fabrízio vive o desencanto do fim daquele cenário. Calógero é o oposto de Salinas, é pragmático e representa o futuro. A união de Tancredi e de Angélica é a união da nova Itália. Os jovens e belos são a nemesis da nobreza. O estranhamento de Fabrízio com Calógero é o estranhamento das duas estirpes. A aristocracia, na figura de Salinas, não acredita que um reino como o das duas Sicílias pudesse se nivelar com outras partes plasmadas em Calógero, que pelo seu sangue azul. Mas tudo iria mudar a partir dali. Na verdade, tudo começou a mudar pelo menos três décadas antes da história contada pelo livro e levado às telas de cinema em 1962, por Luchino Visconti.


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Um espectro rondava a Europa – o espectro de uma onda anti-liberal. Quando Felix Orsini fora executado, em março de 1858, ele morreu como um mártir. O carbonário foi o responsável pelo atentado a bomba que quase matou Napoleão III. Ele acreditava que a única via para a libertação da Itália era a eliminação física do imperador francês, que era o responsável pela permanência de uma onda anti-liberal na Europa. O que motivou o atentado foi a intervenção francesa em Roma, em 1849. No cadafalso, Orsini escreveu uma carta – depois publicada na imprensa – onde suplicava ao imperador uma Itália livre como “condição primeira para a França e para a Europa”.

O responsável pela publicação da tal carta nos jornais fora um certo Camilo Cavour, então o plenipotenciário primeiro-ministro do reino do Piemonte-Sardenha. O impacto da morte do carbonário e a repercussão da missiva na imprensa fez o seu papel: manteve acesa a chama da revolução.

Mazzini, o arauto da Jovem Itália, fora derrotado em 1830, mas seguia articulando uma resistência no exterior. No rescaldo das revoltas de 1848, enquanro a Sicília adotava um sistema parlamentar, Veneza e Milão insuflavam uma atitude de Piemonte-Sardenha contra a Áustria. Mazzini forçou uma república romana mas a burguesia comercial, temerosa dessa postura revolucionária, resolveu pôr freios à empreitada, e não louvou o movimento da Jovem Itália. A contra-revolução chegou à galope, derrubando Carlos Alberto em favor de Vítor Emmanuel no Piemonte, no ano seguinte. Roma foi devolvida ao Papa por Napoleão III (sobrinho do famoso Corso) e, por fim, os Bourbon dissolvem o parlamento siciliano.   

Apesar do saldo negativo da contra-revolução, Piemonte-Sardenha, como estado moderno e centralizado, ainda objetivava dar as cartas no destino da península itálica. O Conde Cavour, originário da burguesia piemontesa, era um exemplo dessa extração social que despontava. No poder como premier, ele pôde pôr várias idéias em prática: subjulgar regiões próximas, ao mesmo tempo que implantava uma política liberal (reforçando o exército, a Justiça e incentivando a economia).

Meses após a execução de Orsini, Cavour viajou  a Plombières com passaporte falso. O objetivo era uma embaixada secreta à Napoleão: nada era oficial. Ambos concordavam que os austríacos, que ocupavam o nordeste da península, deviam ser expulsos com vista à encaminharem a questão italiana. Contudo, eles entendiam que essa Itália livre não deveria se conformar sob a égide de um estado unitário. A condição primordial era a criação de uma federação colocada sob a chancela do Vaticano. A Santa Sé, por sua vez, seria uma espécie de títere cujo poder recaía finalmente nas mãos da França.

 Eles concordavam que a estratégia para que isso desse certo era atrair os austríacos para uma guerra – cuja disposição caberia indiretamente  a Cavour, deixando Napoleão atrás do biombo. Este, por sua vez, iria impedir a intervenção das demais potências diante do conflito. Pelo acordo, com a virtória, Sabóia e Nice voltaram para os franceses enquanto os territórios do Piemonte seriam aumentados.

Inescrupuloso e diplomata temido, Cavour seria o homem que iria urdir a unificação da península itálica. Para alcançar seu objetivo, resolveu arrastar a Europa para uma guerra sem qualquer justificativa aparente. Filho do Piemonte, largou as armas para dedicar-se à causa liberal. Foi importante no desenrolar da Revolução de 1946. Dois anos depois, ingressava na política. Quatro anos depois, chegava à presidência, no mesmo momento em que Luís Napoleão tomava o poder na França. O conde desempenharia papel importante como mandarim de Vítor Emmanuel, o chefe da Casa de Sabóia. O rei era tido de visão política restrita, agindo quase sempre de forma castiça. Cavour, ciente de sua missão, procurou respaldar as aspirações reais, emprestando-lhe apoio incondicional.

Piemonte e Sardenha seria seu laboratório: em pouco tempo, transformou o reino em potência, com fortificações, portos, rede ferroviária e expansão de atividades comerciais e industriais. Cavour desejava transformar sua terra no país da liberdade e numa peça importante no teatro europeu. Assim, chamaria a atenção de toda a Europa, além de apresentar-se dos grupos políticos comprometidos com a resistência italiana como alternativa. Entrou em contato com a União Nacional Italiana (UNI). Com engenho e arte, tratou de convencer os jovens republicanos a aceitarem uma possível realidade de uma Itália unificada sob uma coroa e um parlamento. Com o aceno positivo deles, pode então contar com a atividade da UNI a partir de então no papel de insuflar a revolução.

Porém, palavras e promessas não bastavam: era preciso apoio estrangeiro. O projeto de unificação italiana era uma questão geopolítica e de interferir no jogo de xadrez das potências européias. Por exemplo, em 1855, com tropas frescas, entrou na Guerra da Criméia ao lado de Inglaterra e França. Depois do apoio secreto com Napoleão em Plombiéres, a guerra era o momento para fustigar a inimiga Áustria. O ultimato chegou quatro anos depois, quando os austríacos exigiram o desarmamento do Piemonte. Cavour fez questão de azedar as relações diplomáticas para tal.

Veio a guerra: de um lado, Napoleão e, de outro, Francisco José. A guerra foi curta e sangrenta.

O objetivo do Piemonte com a França era a libertação do norte da Itália – a Lombardia e, especialmente, Veneza. A Áustria partiu em fuga, principalmente após a mais funesta das batlahas, em Solferino. Um armistício foi planejado em Villefranche, naquele mesmo ano. Veneza permanecia sob a égide de Francisco, enquantoos estados rebeldes de Módena e Toscana permaneceriam fiéis à Santa Sé, para o bem de Napoleão III.

Embora a conclusão da guerra fosse ligeiramente favorável aos lados, Veneza ontinuava nas mãos inimigas. Apesar do acordo secreto com Cavour, o imperador francês temia a possibilidade de uma Itália unificada com o Piemonte à sua frente. Vítor Emmanuel acusou o golpe: o monarca  da França assinou uma paz separada, não cumpriu o que havia prometido, mas nada poderia fazer. A altercação entre o diplomata e o rei piemontês provocou a demissão do primeiro, que viu seu sonho de ver a península sob a égide do Piemonte esfumarem-se.

 Mas os dados ainda estavam sendo jogados. Em março de 1860, Napoleão exigiu Nice e Sabóia, como havia combinado. Cavour quis uma indenização em contrapartida. Assim, em troca de Nice e Sabóia, Módena (região historicamente rebelde onde nascera o movimento da Jovem Itália, de Mazzini, em 1931) e Toscana seriam agora do Piemonte-Sardenha. Napoleão conquistou o que queria, mas a vitória foi de Pirro. O país estava financeiramente arruinado com a guerra. Além disso, a imagem do imperador ficou abalada diante da diplomacia internacional pelo fato de que os fins franceses eram apenas e tão somente o de uma anexação prevista mediante algum acordo apócrifo.

Um dos críticos da posição francesa foi o primeiro-ministro vitoriano, Lord Palmerston. Defensor da causa piemontesa, ele postulava a Itália para os italianos. A Rainha, que defendia a Áustria e acreditava que o movimento revolucionário na península não passava de um delírio, entrou em guerra contra Palmerston, que apoiava Cavour em seus respectivos objetivos de liderar a unificação. Nesse cabo de guerra silencioso, no fim era a Inglaterra dividida pela cimeira que se tornaria um problema incontornável no xadrez diplomático piemontês.  

Porém, como se fosse num romance de capa e espada, aconteceu algo inesperado. Após longo exílio de dez anos, Garibaldi retorna à Nice, sua cidade natal. Numa embaixada à Vítor Emmanuel, o condottiere italiano aceitou o projeto de unificação urdido por Cavour. Afinal, tinha por alta conta o imperador do Piemonte-Sardenha. Já a relação entre cavou e Garibaldi era péssima: já o velho carbonário Giuseppe não tolerava o diplomata piemontês –  achava foi o canalha responsável pela barganha da venda de Nice.

E Cavour detestava o condottiere; para o nobre diplomata, Garibaldi não passava de um pobretão metido a caudilho, um bandido chefete de uma guerrilha de bandidos e que só acreditava na revolução pela revolução. Ao contrário, o diplomata queria que o debate em torno da unificação se desse longe daquele rés do chão. Isso explicaria em parte seu apelo à autoridade do rei francês –ainda que Cavour também o achasse um vigarista, um político narcisista que gravitava em torno do próprio umbigo, um escroque cujo horizonte mental não passava do céu da boca. Mas a verdade é que, entre quatro paredes, os dois sabiam que, tirando suas opiniões pessoais um com relação ao outro, Garibaldi precisava de Cavour no campo diplomático. E Cavour necessitava do carismático Giuseppe para ter a devida aceitação popular. Como diria Maquiavel: um agradava ao povo; outro, aos grandes.

 Porém, as diferenças do diplomata de Emmanuel e o condotiere poderia ser minoradas em favor da uma causa comum, a unificação. Enquanto o Conde lutava para colocar o Piemonte-Sardenha na altura das demais potências européias, Garibaldi, com seus iracundos camisas vermelhas, começava a sua caminhada pelo rés do chão. Em primeiro lugar, derrubou os bourbons na Sicília (cena recriada no começo do filme, talvez o único momento "épico" da adaptação de Visconti). Em pouco tempo, conquista Messina e Palermo. Seu segundo objetivo era agora o de chegar à Roma.

Claro que a possibilidade da derrubada do Papa alertou os gansos de Napoleão III. Garibaldi deveria ser parado. Cavour, de mãos amarradas, pensava o mesmo. O movimento revolucionário poderia isolar o Piemonte-Sardenha depois de todo o trabalho do conde-diplomata. Roma era o calcanhar-de-aquiles. Afinal, a Santa Sé era o santo-antoninho-onde-te-porei da França. A aposta de Cavour era partir para Roma também, visando Nápoles, sob os auspícios de Napoleão. Ao apoiá-lo, porém, o rei francês abdicava de suas pretensões territoriais na península. Assim, Cavour pôde submeter finalmente os Estados Pontifícios, as Sicílias e Nápoles às ordens do Piemonte – quase metade da futura Itália. Na mesma penada, conseguiu diminuir a importância de Garibaldi. Em nome de Vitor Emmanuel, ele cedeu suas pretensões políticas e recolheu-se para Caprera. Em março de 1861, o rei do Piemonte-Sardenha era proclamado Rei da Itália.

Região economicamente atrasada com relação ao norte, as lutas nas sicílias misturavam nacionalismo com reivindicações de camponeses que queriam o fim da servidão e da aristocracia rural. Esse foi o fermento da fronda, capiteneada pelos Mil de Garibaldi, e que pôs fim à dinastia dos Bourbon na região. Mediante plebiscito, a Casa de Sabóia anexaria as duas sicílias, restando apenas a anexação dos Estados Pontifícios e de Veneza.

O que possibilitou de fato a unificação da península foi a Guerra Austro´Prussiana (1866) e a Franco-Prussiana (1870). Com a derrota austríaca, o Reino da Itália, que lutou nas hostes prussianas, anexaria Veneza. Na guerra entre França e Prússia, Napoleão III capitulou perdendo a capacidade de controlar as terras da Santa Sé. Aproveitando o interregno e o vazio de poder, os italianos finalmente invadem o Roma e submetem a região finalmente à Sabóia. Destituído de sua realeza temporal, o Papa não aceitaria a anexação, abrindo a Questão Romana e os arrufos de Sua Santidade com o Estado italiano, que seria resolvida só em 1929, com o Tratado de Latrão. Com o acordo, surgia o Estado do Vaticano – estado que, segundo Luciano Gruppi, não era um estado já que não tinha povo algum.

 Olhando no retrovisor, é possível ver que a unificação ocorreu numa aproximação de avessos. A política polida de Cavour aliou-se  à ação revolucionária e de apelo popular de Garibaldi se completariam. Mesmo avessos, um dependia e sabia que dependia do outro. Como um Moisés que não pôde entrar na terra prometida, o primeiro ministro piemontês não viu sua obra acabada: morreu dez anos antes, em 186.

 Confirmada em plebiscitos, a unificação italiana foi capaz de colocar o país em melhor posição diante das demais potências. Porém, como seria de se esperar, ela beneficiou apenas a porção desenvolvida da Itália. A unificação de impostos e mercados iria favorecer as áreas industrializadas, como o norte.

 O sul, como a região das duas sicílias, o sul de Lampedusa, que era agrário e subdesenvolvido, pagou o preço da mudança: obrigações fiscais lograram levar pequenos proprietários de terras à ruína. A rara disponibilidade de capitais e a padronização de impostos restringiram a sustentação do antigo sistema. À medida que esses proprietários foram perdendo suas terras, elas foram sendo adquiridas pela classe rica, o que pavimentou o caminho para a formação de uma nova aristocracia rural, associada com a burguesia comercial do norte da península. Como observam Pazzinato e Senise (1994), o projeto político-econômico da classe burguesa setentrional se impôs como regra geral para todo o Reino da Itália (p.189). No fim das contas, como diz o personagem do livro, é preciso tudo mudar para que tudo fique como está.

Referências

GRIMBERG, Carl. História universal: da restauração ao liberalismo. Editora Azul, 1989. 

PAZZINATO, Alceu Luiz, SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Ática, 1994. 



Thursday, May 20, 2021

O eterno retorno dos Doors

Cartaz do filme

Esse ano completam trinta anos do filme Doors, do Oliver Stone. Lembro que eu cogitei ir até a sessão de estréia, à meia-noite, no Vitória, ali na esquina da Andrade Neves com a Borges. Eu cheguei a me postar na frente, mas amarelei e não fui. Achei que ia ser barra pesada e não fui. Acabei assistindo ele muito tempo depois. Porém, na época, 1991, era uma época interessante. Depois de uma década onde o rock era uma coisa meio outliner na paisagem musical, e a maioria do pessoal dos anos 1960 estava bancando o artista da fome para sobreviver naqueles tempos bicudos prá quem era roqueiro, no final da década, o Paul McCartney resolveu sair do armário com os covers dos Beatles (que ele se negava a tocar no Wings) e aquilo meio que foi um retorno à nostalgia do rock. Da mesma maneira, depois de dez anos dispersos e tentando adaptar-se à geração MTV, os Stones saíram numa gigantesca turnê pelo mundo (Urban Jungle). Eles também, à sua maneira, meio que desistiram que inspirarem-se no que estava acontecendo no cenário do pop para voltar ao rock. Seu mais recente disco, o Steel Wheels, era aquilo que os jornalistas americanos, sempre na onda do clichê boboca, chamavam de “return to form”. 

Depois daquela invernal década de 1980, não parecia ser marcação de touca tocar uma bateria que não fosse eletrônica, um piano ao invés daqueles recladinhos Casio ou um violão, violão mesmo. O filme dos Doors, por coincidência ou não, meio que estava dentro daquele contexto. Mesmo quem não assistiu à película naquele ano de 1991, pelo menos lembra que as canções da trilha sonora conquistaram o rádio. Mais precisamente as rádios alternativas, como a Ipanema. Eu recordo que as faixas do disco tocavam o dia todo, como se eles tivessem descoberto aquele tesouro musical que era aquele rock sônico e cênico dos Doors, com o teclado espacial do Ray Manzarek e o vocal de crooner do Jim Morrison. Já devo ter falado aqui diversas  vezes isso que eu vou falar agora mas, naquele tempo (1991), a nossa cultura musical era a cultura musical do rádio. Sem a internet ainda, éramos induzidos a ouvir e apreciar o que havia no rádio e só. A Ipanema tocava tantas vezes a música dos Doors que era incrível para não dizer bizarro. Bizarro porque eu lembrava de ver alguns álbuns deles na parede da Free discos usados, no Viaduto da Borges. A loja era engraçada porque nunca havia ninguém olhando os discos, os álbuns eram vendidos sem capa de plástico e havia aqueles discos dos Doors na parede. Eu tinha as capas de memória, o L. A Woman e o Morrison Hotel. Mas só pude ter acesso à música deles por causa da moda que surgiu em torno do filme do Oliver Stone.

 O filme, que eu vi depois, e acho que quem está me lendo já viu, deve ter descoberto não apenas a música deles quanto a filosofia de Nietzsche, cujo diálogo contínuo vale uma tese de literatura comparada. Muitos criticaram o roteiro (como o Manzarek), afirmando que muita coisa ali não havia acontecido e que havia uma certa forçada de barra na construção da imagem de Morrison, como um incontrolável beberrão. A verdade é que, depois de ver o filme, é possível vislumbrar uma subleitura do roteiro que justamente quer estabelecer a figura do líder da banda californiana como um duplo de Dionísio e mostrar, com a trajetória do cantor e compositor do quarteto lembra a figura alegórica de Dionisio, o deus grego que é a aurora do que seria a tragédia ática. Dionísio em Nietzsche é uma figura recorrente em sua filosofia, ele é a divindade da pulsão de vida. Contra ele, existe um movimento contrário, reacionário, que o filósofo de A Genealogia da Moral vai dizer que é uma onda repressiva, reacionária. E, na fábula do filme, desde o começo, temos Morrison-Dionísio em seu percurso de herói enfrentando um sindicato de bunda moles que querem frustrá-lo. Para Nietzsche, o mundo é regido pelos fracos, por forças ativas e reativas.  O reativo age apenas para anular o desejo do outro, o ativo. O mundo é regido por um complô de ressentidos - quem leu o filósofo alemão sabe onde encontrar onde ele se refere sobre resserntimento em seus livros, mas ele quer dizer, em outras palavras, que é esse sindicato de bunda moles que é capaz de se reunir, se aglutinar e formar um grupo que é capaz de determinar leis, interdições, regras de controle mental, coerção social. Eles são muitos. E o artista, o artista com vontade de potência, o artista que é ele em sua arte, ele é um solitário, é ele contra a turba inconsútil, ele contra o sindicato dos bundões. O argumento é muito interessante. E eles são muitos e implacáveis, desde o dono do Whisky a Go Go até Ed Sulivan e, por fim, o julgamento final contra ele. Banido da sociedade, ele parte para o exílio e para a morte. No final, quando Stone mostra Jim de barbas, gordo e de chapéu, conduzindo a platéia como o flautista de Hamelin, mais do que a verdade das biografias, de forma original o diretor do filme representou ali um verdadeiro festim dionisíaco. Morrison é o exemplo de força ative é Morrison, morrendo no palco; um exemplo de força reativa é o Ed Sullivan mandando os Doors auto-censurarem a própria letra sob condição de poder aparecer na televisão. O reativo é o que anota todos os baixos do artista e o coloca no cadafalso, e depois morre por não ter mais a quem reprimir, pois essa é a sua razão de viver, a sua razão de viver é interditar, reprimir, priobir, coibir. Esses são muitos. regra é coisa de reativo, porque quem é o ativo para Nietxsche não tem tempo para fazer regra. A força reativa permite associação, alianças. A força ativa requer a contade de quem age, e isso não requer associação. Ele é o artista dionoisíaco. Para Nietzsche, dionisíaco é Arquíloco, na fábula de Oliver Stone é Jim Morrison. A tragédia do filme The Doors é o triunfo da reatividade sobre o espírito ativo do artista. A vitória da reatividade contra a atividade. Mas para o autor de O Nascimento da Tragédia, o valhacouto da atividade é a arte. É o artista quem age em funçãode sua energia vital e não em função de uma técnica a ser repetida. A arte está na manifestação irrepetível, primal, ali está a arte. Morrison era o avesso de Elvis Presley. Em seu começo, Elvis era o dionisíaco por excelência - selvagem, com sua forma de vestir, com seu repertório decalcado do R&B e sua dança. Porém, logo ele se enquadraria ao estabulishment, o mesmo que exigiu que o rock fosse edulcorado pelas grandes gravadoras e editoras musicais depois do expurgo da CPI da payola. Morrison, por sua vez, era o contrário: foi selvagem até o fim. Como ele é representado no filme, não se dobrava a a produtores, empresários, policiais, imprensa, a nada e a ninguém. Era o pathos do artista nietzscheano. Claro que enquanto Elvis seria depois entronizado, Jim foi condenado ao ostracismo. Sua morte em Paris, em 1971, aliás, é simbólica. Morrison não apenas morreu exilado como foi enterrado fora do país que o rejeitou.  

Quase no fim, quando Robbie Krieger se despede de Morrison e fala: “eu fiz música com Dionísio”, o diálogo certamente é fictício, mas serve ao mito do filme, o diálogo da estrela de rock que foi representado, no seu caracter fílmico, como uma versão repaginada do deus grego, deus do vinho, deus da noite, deus do desmedido, como Morrison em The Doors. Esse foi o grande wit de Oliver Stone, articular o mito com outro mito, atualizando-o. E, de quebra, é interessante ver que o diretor teve a astúcia de representar os Doors miticamente como um contraponto à toda aquela cultura pop que existia quando eles surgiram. Diferente do pop solar do rock californiano dos Beach Boys, o rock experimental, cênico, trágico e noturno dos Doors. No papo entre Jim e Ray, em Venice Beach, quando eles começam a discutir sobre a possibilidade de montar uma banda de rock, Oliver Stone faz magicamente o dia virar noite quando Morrison canta “Moonlight Drive” (“Let's swim to the moon, let's climb through the tide, penetrate the evening that the city sleeps to hide”). 

Essa é a chave para a contextualização do mito de Dionísio-Jim. Por isso, é importante entender o projeto da adaptação biópica do líder dos Doors como uma tragédia, e compreender as sutiliezas do mito e das formas como Stone trabalha com esses motivos ajudam a enriquecer as possíveis interpretações do filme.  Mas, mais do que isso, o filme serviu, num momento singular, de veículo para que o rock dos anos 1960 fosse, digamos assim, recuperado e reagendado no circuito do pop a partir dos anos 1990. De repente, o mundo descobriu que a música dos 1960 eram interessantes, prá não dizer melhores e mais duradouras do que tudo aquilo que tentaram massificar nos anos 80, vendendo aquelas novidades e sucessos como se fosse a melhor coisa do mundo, numa estratégia (consciente?) de apagar ou de jogar para o passado todo o passado em favor do presente acima de tudo. 

O cinema foi pródigo nos anos 80 em furar esse bloqueio e reavivar esses apagamentos. Vários filmes no final da década trouxeram o pop dos anos 1960 de volta. Dirty Dancing, La Bamba, Stand By Me, Ferris Bueller's Day Off, Jumpin' Jack Flash, Full Metal Jacket, Good Morning Vietnam. Quem promoveu o levante foram essas trilhas. Foi o cinema o responsável por descongelar essa cultura apagada. Hoje nós temos a disposição, no streaming, a um século de gravações em catálogo em processo de digitalização. Naquele tempo, isso era impensável. Logo, movimentos como o da difusão cultura de música antiga a partir da sétima arte foi um momento importante no sentido de redimensionar a produção musical através do tempo. Os Doors – via Oliver Stone, tomou conta do rádio a partir de 1991. Em pleno auge da implantação massiva do CD, os discos da banda foram disponibilizados em catálogo. E a partir de então, nunca mais saíram das estantes das lojas (apenas quando o CD morreu). Enfim, se houve um momento em que esse processo de redescoberta do rock dos anos 1960 para um a nova geração se deu no final dos anos 1980 e o paroxismo foi justamente o filme do Oliver Stone. Afinal de contas, não era apenas um filme com uma trilha sonora do passado. Era a própria cinebiografia de uma banda dos anos 1960, falando daquela época para o presente. E o filme foi The Doors, que completa três décadas esse ano.


Thursday, May 13, 2021

As vidas de La Bamba

 

Lou Diamond Philips como Ritchie Valens


 Dia 6 o Estadão traduziu uma matéria que eu havia lido no dia anterior, no New York Times (online, via Twitter) sobre os 80 anos do Ritchie Valens. Na matéria, o diretor do filme La Bamba, Carlos Valdez, considerado o precursor do cinema chicano em Hollywood embora não tenha seguido uma carreira prolífica nesse nicho, e o protagonista, Lou Diamond Philips. Sob a forma de diálogo, eles fazem um balanço tanto da carreira do guitarrista e pioneiro do rock nos anos 1950 quanto do próprio projeto da película, com um roteiro centrado numa imagem não etnocêntrica das comunidades latinas nos Estados Unidos, mais especificamente na Califórnia. Enquanto Valdez entende que o enredo serviu para que ele construísse esse novo olhar para tais comunidades, apontando uma forma nova de abordá-las pelo cinema comercial estadunidense, Philips conclui que, na trajetória de Valens cifrada no filme de forma bastante singular, tentando forçar barreiras étnicas com sua música, deixando um legado na própria história do rock, o filme mostra que Ritchie era um sonhador que queria, como todo jovem como ele, conquistar o sonho americano e vencer. Lou também entende que o impacto do personagem, espelhando-se na figura do verdadeiro Valens, fez com que ele mesmo se entendesse como um duplo do músico chicano.

Valdez fala que o corolário de La Bamba o impressionara: ele revela que Hollywood parecia não acreditar que um filme “chicano” fosse capaz de render um grande box office – ainda mais dirigido e interpretado por figuras não hegemônicas no campo cinematográfico. O filme, que custou pouco mais de seis milhões de dólares superou todas as expectativas, rendendo quase dez vezes mais. Philips acredita que o longa é, ao mesmo tempo, único por encapsular muitas significações como referência e modelo a ser seguido enquanto não foi capaz de gerar uma moda latina, embora, como destaca Valdez, a perspectiva de um filme além dos estereótipos chicanos - como mostrá-los filmicamente como bêbados e violentos ou associados a gangues -  é um grande legado da trajetória de La Bamba.

Como anota Philips, após a experiência de Valdez, o que se viu nas últimas décadas é um movimento descolonizador do “cinema étnico”, O que temos visto nos últimos 20 anos é uma comunidade afro-americana se expressando abertamente e produtores, diretores e roteiristas muito motivados e determinados”, diz.

Já a matéria de hoje da Rolling Stone norte-americana, citando os 80 anos de Valens, traz entrevista com os integrantes dos Los Lobos. O texto mostra que, assim como o filme mudou tantas vidas a partir do seu lançamento, em 1987, a carreira do grupo, iniciada em 1973, está cifrada no legado musical de Valens. Mesmo depois da prematura morte do guitarrista, em 1959, sua música nuca deixou de ser ouvida e cultuada na região onde ele viveu. 

Os membros da banda lembram que, nos anos 70, tanto o rock dos anos 50 quanto os singles dos raros sucessos de Valens circulavam pela região, desde através de cópias piratas de discos e fitas cassete quanto por conta de rádios chicanas, como as borderblasters, na fronteira de Ciudad Juarez e que, com sua potência característica, fazia ressoar aquelas canções antigas no imaginário daquelas comunidades latinas. David Hidalgo revela que o contato com a música de Valens não apenas formou o conjunto quanto fez com que a família de Ritchie travasse contato com eles. Hidalgo conta que passou a conviver de forma cotidiana com os parentes do músico, passando a conhecer detalhes da vida do autor de “Donna”. O corolário dessa relação veio com a colaboração dos Los Lobos para interpretar as canções do músico no filme de 1987.

Falando em “Donna”, eu lembro de estar ouvindo rádio lá por 1988, lembro perfeitamente que morava com minha avó e, enquanto estudava, uma emissora começou a tocar “Donna”. Lembro de ouvir aquela balada sentimental sem entender qual era a origem daquilo. Naquele tempo, não era o tipo de música que se ouvia em rádio, ainda mais as de segmento jovem da época. Não só aquela, como “La Bamba” seria uma das mais tocadas. Foi quando eu descobri que o filme em questão iria estrelar no Scala – embora a tevê externa do Cacique anunciasse o filme, como era novidade aqueles telões de calçada. Eu sempre parava para ver o vídeo de “Lonely Teardrops” e, naturalmente, fiquei louco para ver. Enfim, eu assisti ao filme e corri atrás dos discos com a trilha sonora.

Eu lembro que, naquele tempo, eu estava descobrindo o FM e meu gosto musical anterior ainda era o que eu ouvia no AM e alguns tentativas como músicas de cinema clássicas ou big bands. Ao mesmo tempo, eu não gostava lá muito do tipo de música jovem que se fazia, então eu me sentia totalmente marginal no tocante à música. Acho que foi o impacto do filme e da trilha sonora que fez com que eu quisesse um walkman e depois passasse a ouvir, quase que diariamente, rock dos anos 50. Em suma, o filme foi o meu batismo no rock.    


Referências:

Ritchie Valens' birthday legacy

https://www.rollingstone.com/music/music-latin/ritchie-valens-birthday-legacy-1168221/

La Bamba, the lifes it changed

https://www.nytimes.com/2021/05/03/movies/la-bamba-lou-diamond-phillips-luis-valdez.html


Friday, May 07, 2021

Adoráveis Malditos

 

A capa do disco

Esse ano faz meio século de um disco que ainda hoje é meio desconhecido e que certamente só foi redescoberto mesmo depois da morte do Raul Seixas. È o Sessão das Dez, da Sociedade da Grã-Ordem Cavernista.

Quando Raul morreu, em 1989, o disco reapareceu na onda de relançamentos de sua discografia. Esse, ao contrário da sua fase Philips, mais associada à onda da MPB dos anos 70, e os demais, lançados em diversas gravadoras, como a Copacabana, são os que comporiam o cânone da sua obra.

No entanto, esse disco, que foi relançado em vinil em meados dos anos 90, numa edição limitada, já saiu como raridade. O disco depois naturalmente sumiu, para reaparecer com a Internet. Isso também na onda da redescoberta de toda uma produção musical brasileira cujo espectro ainda unia MPB e rock.

Sessão das 10 já era lenda antes que as pessoas tomassem conhecimento dele. Existe um documentário onde Edy Star, um dos Cavernistas (ou Kavernistas) sobreviventes, como detalhes interessantes sobre os bastidores da gravação do álbum e desfaz alguns mitos.

O mais interessante deles era o de que o disco fora gravado às escondidas. Edy rebate, e diz que não só o disco fora produzido com o consentimento de gente da gravadora como fez largo uso de músicos de estúdio do próprio selo. Na verdade, o grande problema do disco era a proposta com relação à própria CBS, a gravadora onde Raul trabalhava e, junto com Sérgio Sampaio, teve a idéia de lançar o disco underground.

(um parêntese: essa aura undeground iria seguir com os quatro pelo resto da vida. A despeito do enorme sucesso, Raul sempre fora um marginal, da mesma forma como Sérgio, que era considerado um dos "malditos" e Míriam Batucada, que foi uma excelente cantora e performer cuja carreira nunca deslanchou).

Existe um trecho de entrevista de Raul, onde ele critica o pensamento da CBS. De fato, se formos pensar, em 1971, a gravadora de Roberto Carlos e outros luminares da Jovem Guarda ainda pensava esteticamente daquela forma. Não seria errado pensar que, de certa forma, ela foi responsável pela transformação da Jovem Guarda no brega dos anos 1970 – uma espécia de maneirismo estendido onde todas os artistas pareciam o mesmo, mesmos arranjos, mesmas versões estrangeiras para um público docilizado por essa estética. Numa gravadora como a CBS, seria impensável um disco nos moldes do Mothers of Invention, ainda mais capitaneado por artistas praticamente desconhecidos.Ainda atuando nos bastidores da indústria do disco, Raul descobre Sérgio como compositor e cantor - ambos produziriam o compacto sinples "Coco Verde", que Dóris Monteiro regravaria a canção no álbum Doris, de 1971.

Gravar rock nos moldes do rock “underground” internacional era impossível naqueles tempos. Alguma exceção pode-se encontrar no disco do Gilberto Gil de 1969, que foi uma das últimas incursões de Gil e Rogério Duprat no terreno da tropicália e na avant-garde (sem falar dos Mutantes, também da Polydor). Na época, outros tentaram estabelecer carreira fazendo rock psicodélico: Som Imaginário, Módulo 1000 ou Equipe Mercado. Todos em geral foram barrados pela falta de promoção e de interesse desse mesmo público docilizado.

Fazer rock (não a Jovem Guarda) no Brasil era mais underground que o próprio underground, era pregar no deserto. Só para citar exemplos, o Não Fale Com Paredes, do Módulo 1000 (produzido por Ademir Lemos pela Top Tape) foi rechaçado pela gravadora. A coletânea pau de sebo Posições (Odeon, 1970), teve título e capa vetadas pela Censura Federal e ninguém viu ou ouviu o álbum, hoje uma raridade e clássico entre colecionadores e pesquisadores. Por fim o Geração Bendita, projeto que naufragou por conta da censura junto com o filme, que só seria lançado em 1974, já devidamente cortado.

Nesse contexto que Sérgio Sampaio e Raul escalaram Míriam Batucada e Edy Star para o Sessão das 10. O disco é interessante pela ousadia, originalidade e como comentário social da época. Em 1971, viva-se a época do Milagre, onde o sonho do brasileiro médio – em especial, o carioca, era ter uma televisão na sala, pode ter acesso à crédito para compra de eletrodomésticos, automóveis até apartamentos. As letras do disco, em geral, fazem contraponto à esse clima de euforia protagonizado por uma classe média em ascensão, e que se orgulhava de ver-se na tevê e, de repente, subir de classe, tento pleno acesso a bens de consumo duráveis. 

A própria bolha econômica da época, no Rio, provocou um aumento na construção civil, principalmente em bairros nobres da Belacap (como diria Ibrahim), Lagoa, Jardim Botânico, Ipanema, Leblon. Ao passar os olhos em coleções de jornais da época, é comum anúncios – alguns de página inteira, anunciando apartamentos que acenavam para a possibilidade de pagamento em suaves prestações. Ao mesmo tempo, com o recrudescimento do regime militar com o AI-5, o que restou para a classe cultural foi desbundar, gíria da época para aqueles que declinavam da militância política em troca de sexo, drogas e rock’n roll. Como fenômeno temporão, o hippie vira um personagem da fauna carioca.

Era a época da Gal no Tereza Raquel e as dunas do barato no Píer de Ipanema.  É esse Rio de uma classe média “joie de vivere” que serve de moldura para as canções do Sessão das 10. O contraponto a isso, e que seria recorrente na produção posterior de Raul é o deboche e o ceticismo a esse estado de coisas. Como visão de época, o Sessão das 10 seria um ótimo exemplo para estudar texto e contexto a partir das canções que, em geral, à moda da banda experimental de Frank Zappa, transitam por vários estilos, do baião e o samba ao rock e a seresta. Mal comparando, na mesma linha da contracultura fora de época, os Cavernistas eram uma espécie de Mothers of Invention brazuca.

Porém, como ressaltou Edy Star, se o álbum não teve nenhum problema para a produção, depois de lançado, ele seria censurado pela própria CBS. Como ele observa, não foi a censura da ditadura a responsável pela interdição do álbum: foi a própria gravadora. A CBS já dava mostras que era um ambiente musicalmente fechado – até no exemplo do episódio da gravação de um compacto simples com Tim Maia. O cantor depois viu-se frustrado pelo fato de que eles simplesmente não sabiam gravar soul. Se eles aprenderam a produzir Jovem Guarda e alhures, eram castiços com relação a outros gêneros e muito provavelmente alheios a qualquer mudança.

Logo, falar do Sessão das 10 é, ao mesmo tempo, falar do contexto do contexto social e político em que ele foi gravado e, também, do musical. Se formos pensar além, só mais tarde, em 1973, com o inesperado sucesso do Secos e Molhados – numa gravadora brasileira e que não fazia parte das majors multinacionais do disco, que seria possível dizer que houve uma abertura para esse tipo de produção parecida com o Sessão das 10. Mesmo assim, projetos audaciosos como o álbum conceitual dos Cavernistas seria ousado demais até para uma gravadora mais “aberta” como a Philips. Importante lembrar que André Midani também vetou projetos mais heterodoxos, como o disco do dou Cilibrinas do Éden e o progressivo A e o Z, dos Mutantes. Ou seja, o rock tinha apenas dois caminhos naquele momento: ou seguia as regras da arte das grandes gravadoras em favor de uma produção radiofônica ou então apelar para a produção independente. Raul, que fora produtor da CBS e conhecia o mercado fonográfico, quando lançou-se, no estertor da Era dos Festivais, sabia exatamente onde a corda esticava. Por isso que, depois do sucesso de “Let Me Sing”, ele seguiu o primeiro caminho. Mesmo assim, acabou se transformando como baluarte do rock numa época tão adversa como os anos 70.

Numa coluna Som de O Globo, de 27 de janeiro de 1974, Nelson Motta fala do sucesso de Raul e das razões dele: "O sucesso de "Ouro de Tolo" se baseou em dois fatores diametralmente opostos: a coisa nova e a coisa velha. Raul usou como melodia um tema muito próximo do estilo da música de Roberto Carlos, como "Detalhes" e outros. Só que usou a música de uma forma causticamente crítica, como pano de fundo para uma letra autobiográfica em que desmoralizava com humor ácido alguns dos sonhos e ilusões da classe média: o cidadão respeitável, o Corcel 73, jardim zoológico, tobogã*, a vida tranquila, a certeza do sucesso, a casa própria, etc". Como se vê, esses elementos já estavam geneticamente dispostos no projeto do Sessão das 10. 


* Na época, havia a moda do tobogã, como o do Tivoli Park, na Lagoa, perto de onde Rasul Seixas morava. E o famoso Ford Corcel, quando foi lançado, se transformou numa espécie de sucedâneo do DKW, marca que não vingou no Brasil de todo.