Tuesday, April 28, 2020

O Op. 67 e seus desdobramentos

Beethoven em 1803




Beethoven é lembrado no mundo na ocasião do tricentenário do seu nascimento. O que é importante frisar às pessoas em geral é o porquê de sua relevância e de sua permanência. O discurso musical em Beethoven apontou para um outro rumo. 

Até então, como salienta Bruno Kiefer, apesar das mudanças ocorridas antes dele, havia um pensamento de que a substância desse discurso era imutável. Como ele diz, comparado com o Mozart das sonatas, se eu discurso era eivado de idéias complexas, esse complexo permanecia como tal. Beethoven mudaria isso. Ao mesmo tempo, se formos cotejar a produção do classicismo do século XVIII, vemos que, em Haydn e o citado Mozart, ela era prolífica e fundeada nesse caráter imutável do discurso. 

O que é dito no começo é desdobrado, desenvolvido, mas sempre de forma a que o discurso não se percae possa voltar ao princípio. Beethoven muda isso em dois aspectos. Um deles é o fato de que a massa sonora, a forma de reelaboração do discurso musical e a produção ganha mais complexidade, onde nada é impossível. Ah, não dá? Vamos tentar.  

Outro que poderia-se lembrar, segundo Kiefer, é um método dialético. Em Bach, diz ele, não existe motivo, mas, sim, fragmentos melódicos que são usados como elementos de construção. Ele salienta o sol-sol si bemol da sinfonia em dó menor, que é tão conhecida, mas que, acredito, se perdeu em parte na repetição e audição popular. O tcham-tcham-tcham-tcham tem muito de rítmico em comparação ao melódico e, como diz Kiefer, Beethoven faz uso de ambigüidades do ponto de vista harmônico. 

Ele abre caminho para toda a sorte de potencialidades em sua música, algo que não havia antes dessa forma. Por isso que poderíamos pensar em termos de audição comum por que Vivaldi é chamado de compositor que escreveu 600 vezes o mesmo concerto. Tudo é lógico no ilógico do “barroco” (uso a expressão a contragosto, porque é difícil pensar em termos de barroco luterano, mas isso é assunto para outro post), enquanto, na aurora do romantismo musical (Beethoven é, a despeito da sua revolução, um compositor de transição), ele coloca outra mobília, muito mais arrojada, no quarto-e-sala da música clássica. 

Para tanto, também, basta ouvir diversas vezes as famosas sinfonias nº 40 e 41de Mozart, depois, se possível, as mais de cem de Haydn, para ver que há alguma coisa a mais ali. Beethoven é mais rude, mais imperioso, mais espaçoso. Não existem leis imutáveis, como diz Bruno Kiefer:”as figuras [no barroco] já encerravam em si toda a obra (...) o motivo [beethoviniano] não permite fazer prever a obra”, diz ele. Não existe nada mais lógico e afirmativo das leis eternas do discurso como nas fugas de Bach: “o tema já é a fuga”, salienta. A elaboração consistia apenas num alargamento ou o desenvolvimento de algo posto.

Na Quinta (op. 67) temos, diz ele, uma profissão de fé do discurso do compositor de Bonn. O primeiro motivo, a tese, o segundo, o contrário, exigido pelo primeiro tema. Da sua tensão, nasce a síntese. Claro que essa “simplicidade” não é constituída nessa tensão, nem totalmente nessa dialética, diz ele. Mas é indicativo do que o autor da Sonata so Luar fez, do caminho que ele concebeu e trilhou, e do legado que ele deixou: toda a música do romantismo em diante é tributária dessas mudanças empreendidas por Beethoven, por exemplo. Não poderíamos pensar na Sinfonia Fantástica (composta por Berlioz em 1830) sem Beethoven. Nem em Liszt, nem em Korsakov, nem em Wagner, nem em Bruckner, muito menos em Brahms. 

Nem todo o desenvolvimento da música alemã, tanto para o sentido da conservação desses valores musicais quanto da sua superação, até o completo  esvanecimento com Mahler e o Modernismo. Era como se, antes, os compositores estivessem sempre cientes das regras da arte, das réguas e lentes para se escrever música. Beethoven bagunça o coreto. Desde a sua primeira sinfonia, ele acaba com o princípio do encadeamento começo, desenvolvimento (tensão)  e fim. Aqui, ele bota a tensão no começo. Se você para de escutar depois do primeiro minuto, parece que ficou algo parado no ar.

Quando ele liga o segundo acorde no primeiro, ele tenta afrouxar essa tensão mas o movimento ainda parece não ter começado. Só no allegro com brio é que sentimos os pés no chão, o que seria, a rigor, o começo de uma sinfonia “nas regras da arte”.

Beethoven provoca o ouvinte, como se ele fosse um terceiro narrador que ri da reação de quem ouve e presta atenção no que seria o discurso musical. Ele se diverte o tempo todo com essas gags. O começo é uma exitação com a platéia, onde ele enche o discurso de tensão e relaxamentos,  não é começo-e-fim, é tática de guerrilha e de provocação.

A Quinta, como diz Kiefer, ele joga no ouvinte as quatro notas, notas do destino. O primeiro movimento é tensão contínua. “Toda a primeira parte desse movimento é construída sobre o motivo inicial que gera ali blocos, unidades maiores, de caráter ora misterioso, ora afirmador ou afirmativo”.

Acho que é importante observar como o autor tenta explicar a música, ou o discurso musical, que e abstrato, de forma como seja possível cheirá-la, apalpá-la, farejá-la aos ouvidos do senso comum. É, ao mesmo tempo, um exercício de puro raciocínio, ao tentar entender a seqüência de motivos e, ao mesmo tempo, há a possibilidade abstrair dentro do que Beethoven queria dizer. 

A música é palpável: ela sai do rigor da partitura e parece falar mais dele e mais de nós mesmos. Nesse sentido, na Quinta, Beethoven parece pôr um bode na sala, o destino bate a porta e não se sabe o que vai acontecer. Nada vai ser como antes, o jeito é pegar o destino, olhá-lo face a face é levá-lo a cabresto até a última nota do último movimento, movimento de superação, movimento de júbilo, movimento de vitória.

É nesse não saber o que vai acontecer que reside a novidade de Beethoven, principalmente nas sinfonias. Se antes o material temático era estática, com idéias contrastantes e não antagônicas em sentido dialético; no op. 67,  a Quinta, ele joga o ouvinte de um lado para outro: “não sabemos ainda o que vai acontecer”. No segundo movimento, Haydn iria desenvolver o material temático; Beethoven bate a carteira e sai correndo porta afora. 

Outro exemplo é o último movimento da 2º sinfonia, que é uma verdadeira festa que passa ao largo da etiqueta da sinfonia clássica. Aliás, fica essa sugestão de ouvir as principais sinfonias do Mozart e do Haydn para ver o quanto Beethoven avançou, não em matéria de produção mas, sim, em matéria de ímpeto, mesmo em peças que bafejam o clássico, como as sinfonias nº2 e nº7, elas não são mais como o classicismo. Em alguns momentos, ele foi radical, como na Eroica; em outros, foi além, mas nos ditames do classicismo, embora tenha sido o mentor da mudança do terceiro movimento, de uma dança tão associada à estética anterior, o minueto, para o scherzo. Se formos pensar no terceiro movimento da Júpiter (Mozart) para o absolutamente delirante Vivace da Op. 125 de Beethoven, você viajou anos-luz em quase quatro décadas de distãncia.  


Como diz Kiefer, na sinfonia clássica, os motivos sempre retornavam como atores, sempre os mesmos mas com figurino novo. A partir de Beethoven, eles jorram em catadupa. Era, pois, agora, impossível prever o caráter de síntese resultante da tensão entre os dois primeiros motivos.
Mas o mais fascinante em Beethoven do que esse impasse. Ele é um homem do século XIX, mas tem raízes fincadas no anterior. Quando Berlioz surge, três anos depois da morte do músico de Bonn, é como se o bastão tivesse passado para a nova geração. Como na música de Beethoven, ninguém saberia o que, a partir daquele momento, iria acontecer no campo da música.

Beethoven injetou vitalidade a música ao mesmo tempo que nos fez olhar para trás, nos fez olhar para a frente em matéria de música. Ele mostrou que, em todas as artes, sempre coube ousar, seja como for. E ele chegou aos 200 anos sem sequer cogitar que chegaria tão longe, sendo hoje tão popular quanto um rótulo de sabão em pó, substrado da indústria cultural que arrasta a tudo e a todos. E certamente porque ele contou a sua história em música e, por tabela, contou a história de todos nós. 

Referências:

KIEFER, Bruno. Música Alemã. Movimento: Porto Alegre 1985.

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