Sunday, April 26, 2020

Café Soçaite


Cossta e Silva, a Rainha Elizabeth, D. Yolanda, a primeira-dama e o Príncipe Philip


Tava escutando o disco do show Rosa dos Ventos, da Maria Bethânia, gravado no Teatro da Praia, no Rio. Uma coisa curiosa é a versão dela para “Café Society”, do Miguel Gustavo, que foi um grande sucesso no final dos anos 50 na voz do Jorge Veiga.


Doutor de anedota e de champanhota
Estou acontecendo num Café Soçaite
Só digo enchanté, muito merci, all right
Troquei a luz do dia pela luz da Light...

Claro que a letra toda é uma homenagem ao Ibrahim Sued, que popularizou expressões como “champanhota”, a “dama de preto” (uma pessoa inconveniente numa soiree), ou “Jacintho que é também de Thormes” (forma como ele brincava com os sobrenomes dos grã-finos, no caso, fazendo menção ao primeiro dos grandes colunistas sociais). “Café Soçaite”, expressão hoje defunta, era como se chamava a boemia bem vestida e bem nascida que freqüentava as noites cariocas dos anos 50. Veiga até acabou ficando famoso no café por causa desse samba de breque, até ser esquecido, junto com a música, ressucitada pela Bethânia em seu pocket show.

Porém a Bethânia mudou o final da letra: “eu peço mais uísque/embora esteja pronta/como é que pode?/ Nina Chaves conta”. A Nina na época era famosa por causa do caderno Ela, do Globo, que revolucionou o colunismo social nos anos 60, com um texto de qualidade e títulos de matérias bem bolados, e uma diagramação tão arrojada que destoava do puído e avoengo projeto gráfico caturra do velho Globo (até a mudança, em meados dos 70), sempre aos sábados. 

O Ela era a grande novidade na imprensa carioca da época e ainda hoje é incrível reler os suplementos e se deparar um algo tão a frente de seu tempo. E tendo à frente Nina que, no final dos anos 60, rivalizava com o próprio e já consagrado Ibrahim Sued que, em 1968, voltava a O Globo. Nos anos 70, ela editava o caderno, mesmo morando em Paris, mandando suas matérias e crônicas (para o Ela ou para o caderno de Cultura, sempre com pautas exclusivas, como, em 1972, uma das primeiras reportagens publicadas no Brasil sobre o fenômeno do Pink Floyd com o Dark Side of the Moon) “via Varig”, como em sua famosa assinatura.

Falei da Nina porque lembrei que o último dia 21 foi “niver” da Rainha Elizabeth eu lembrei de uma história que a Hildegard Angel contou há algum tempo na ocasião do dia dos anos da Rainha, em 2018. Na época, comemorava-se os 50 anos da sua visita ao Brasil. Muita gente não sabe ou lembra, mas ela esteve em turnê em terras brasileiras em novembro de 1968. Foi a sua única visita aqui.

No Recife, com o Príncipe Philip a tiracolo, ela foi recebida pelo então presidente, Costa e Silva. Deslocando-se de iate pelo litoral do nordeste, depois estiveram na Bahia, onde foram recepcionados por Viana Filho. Dia 5, o casal chegou à Brasília, participando de uma sessão solene no Supremo, e com direito a uma sucessão de gafes e beija-mãos com luva (conde Chiquinho Matarazzo beijou e cavalheiros apenas devem acenas com a cabeça no cumprimento –  e ele ainda usou a faixa da Grã-Cruz da Ordem da Coroa da Itália por dentro do colete na presença de um chefe de estado) e tudo. Bola preta. Depois, seguiram para São Paulo (com parada em Campinas para equitação), com direito a recepção no Museu Paulista e a inauguração do MASP, no dia seguinte. Não houve Buffet, mas os garçons serviam salgadinhos e uísque “escocês importado”.

Mas o ápice da viagem dos Windsor na brazuca foi a passagem pelo Rio, onde desfilaram de corso pela cidade, com pessoas nas calçadas abanando e aplaudindo. Na Belacap, eles lançaram a pedra fundamental da futura ponte Rio-Niterói (que estava muitíssimo longe de começar a ser construída) e, na tribuna de honra do recém nomeado Estádio Mário Filho, junto com a grã-fina das narinas de cadáver (“quem é a bola?”,dizia a personagem de Nelson Rodrigues em sua coluna do Globo Esportivo) assistiram a um disputado match entre as seleções carioca e paulista num Maracanã lotado, com gente até dependurado no lustre. Bola branca.

O almoço foi no MAM, com recepção do governador Negrão de Lima e a primeira-dama, Dona Emma. O convescote reuniu cerca de duzentas pessoas – entre elas Austreslégilo de Atahíde, o Ministro das Relações Exteriores, Magalhães Pinto e o cantor Sílvio Caldas. O prato principal foi faisão, preparado pelo maitre René. Para beber, só (e muita) champanhota.

Ao fim do repasto, deu-se a troca de presentes: Elizabeth ganhou uma pulseira do governador da Guanabara, admirou-a sem, no entanto, conseguir abrir o fecho. O Príncipe Philip ganhou por sua vez uma taça de vermeil com pedras brasileiras incrustradas. Dona Emma ganhou da Rainha uma poudrière de ouro e o governador Negrão de Lima, por último, um belo retrato do casal real, encaixilhado numa moldura de prata. Não perdendo a chance de ser ligeiramente bairrista e, quem sabe, em parte, coberto de razão, Swann diz que o faisão assado do MAM e o passeio no Rio salvou a visita de Elizabeth II no Brasil. 

A agenda de sábado passava por uma recepção ao staff da embaixada britânica a bordo do iate Britannica e, mais à noite, um encontro na própria embaixada, em São Clemente. O evento juntou mais de quinhentas pessoas incluindo os embaixadores da Comunidade Britânica das Nações, o embaixador dos Estados Unidos e, completando a paisagem, o crème do café soçaite da Belacap.

Dessa vez a coisa não ficou nos acepipes e a casa ofereceu um buffetzinho aos convidados: o pessoal estava com a barriga roncando. Porém, todavia, não aconteceu no Rio o corre-corre de gente esfomeada que ocorreu em Brasília. Entre os convivas, era possível vislumbrar o embaixador e a senhora Moreira Salles, Glorinha e Ibrahim Sued,  Maria Ortemblad, Paulo Fernando Marcondes Ferraz, Baby Bocaiúva e Antonio Callado com sua filha, Tesse.

Alguém falou em Ibrahim? Em 1968, ele estava de volta ao Globo. Sua coluna, na época e nas décadas seguintes, além de marcar época e lançar várias expressões típicas, era praticamente um feudo, um enclave na parte de geral. Ali, de posse de seus muitos contatos, muitos deles na esfera dos governos, ele fazia chover: dava informações de cocheira e, depois que toda a imprensa anunciava, ele dizia que já havia dado o páreo antes, e ria, com toda a imodéstia possível: “sorry, periferia”.   

Começou do nada, no Diário da Noite, depois chegou a um espaço de meia página na Manchete que, com a direção de Helio Fernandes, começou a se tornar uma publicação importante junto com eles. No final dos anos 50, tinha uma seção na Bloch e mais a coluna “reportagem social”, em O Globo. Mesmo que contasse com um copidesque (Henrique Pongetti), muitos a acusavam de analfabeto, e de assassinar o léxico (Nestor de Holanda, por exemplo, o chamava de “monomental”). Com o tempo, essa fama começou a jogar ao seu favor, ainda mais quando lançava estrangeirismos que não existiam, como “kar” ou “ademã”.  

E como acontecia com todo grande colunista (que tinha que mantê-la, inclusive, aos domingos (quando o Globo passou a ter uma edição dominical, nos anos 70), tinha vários ‘subs’ trabalhando com ele que, de resto, acabava sendo ele mesmo o copidesque, vetando textos grandes. Afinal de contas, ele era um ex-fotógrafo e não um Josué Montello. O “analfabetismo” de Sued passava pelos seus garranchos indecifráveis e riscos e mais riscos sobre linhas de laudas datilografadas. Foi nesse estilo, contra tudo e contra todos, e dizendo “Gigi, eu chego lá”, que ele chegou lá.

Um pouco diferente de hoje, colunas sociais representavam uma janela ao infinito para os leitores. Nos anos 50, elas eram um ganha pão para a imprensa: toda publicação tinha que ter a sua Hedda Hooper. 

Alguns jornais tinham mais de uma (caso do Globo, principalmente a partir dos anos 60, com o suplemento Ela e Ibrahim cerrando justas no segundo caderno. E havia as revistas especializadas na cobertura do soçaite, como lembra Ruy Castro: desde a Rio, do próprio Grupo Globo de Roberto Marinho até a Rio-Magazine, de Alfredo Thomé, e a Sombra, de Walter Quadros. “Todos esses veículos descreviam uma realidade que, considerando-se o Brasil em que vivia a esmagadora maioria da população, apaixonava milhões de leitoras”, diz Castro.

Ibrahim tinha esse lado “frágil”, de ser um colunista ligeiramente tosco com seus “ademâs”, “toca, telefone, toca”,  e “ela passou e deu aquele alooo-óoo”. Mas pelo que ele soltava de primeira mão e com o esperto expediente do “depois eu conto”, ele sempre causava a impressão que sabia muito mais do que dizia, e isso é, de fato, arma do colunista. E ele devia realmente saber, assim como havia muita coisa, nos anos 70, que se sabia e que não podia descer para a gráfica. 

Ou, se descesse, teria que ser da forma mais enviesada possível – como no episódio da Revolução dos Cravos onde as palavras “golpe” ou “revolução” não apareceram nas manchetes brasileiras no dia 26 de abril de 1974. Ruy salienta que, no caso de Ibrahim, quando este publicava alguma informação exclusiva ou foto de determinada fonte, seria um pequeno favor que, num segundo momento, podia ter a sua retribuição, um segredo revelado à guisa de dívida saldada. Algo para lá de óbvio hoje, mas na bolsa de valores do colunismo, nada mais comum do que o embaixador cuja filha ou esposa aparece em foto ou em nota ter antes dado alguma informação de cocheira. O circuito de consagração social, no colunismo, então poderia ter sempre essa mão dupla. 

A fonte e a informação são os capitais do colunista. E desde informações políticas até notas amenas do soçaite, tudo mexia com a imaginação dos leitores e leitoras, que sonhavam acordados com recepções, jantares, descrições de vestidos até listas de celebridades em determinado convescote ou soirée.

Em pouco tempo, o pai dos colunistas sociais no Brasil, Maneco Muller (Jacinto de Thormes) era o mais famoso mas, já nos anos 60, Sued era, de longe, o mais lido. Maneco foi o grande atualizador do colunismo social aqui, pelo fato de que ele amalgamava fatos políticos com os sociais, algo que Ibrahim levaria ao paroxismo, a tal ponto que, nos anos 70, em O Globo, passando a vista no primeiro caderno do jornal, por causa da censura, quase todo fadado a chapa-branquismos transcritos quase que ípsis literis e muita informação de agências internacionais, parecia que era nas colunas (esportivas, culturais e sociais) que os jornais realmente respiravam um ar mais leve. Maneco desceu (depois voltaria como Jacinto, em 1973) e Ibrahim subiu, e Muller mesmo explicava sua diferença com seu colega. Se, para ele, o colunismo era ganha-pão, para Sued era uma questão de sobrevivência.

E o que o alimentava era o caderninho de contatos. Com o tempo, eram tantas as caçapas que dava que era óbvio que ele tinha contatos dentro das salas do poder, tanto do Guanabara quanto o Itamaraty (grandes fontes dele eram D. Yolanda Costa e Silva e Guimarães Rosa, além de escritor, diplomata de carreira longa, sendo também embaixador do Brasil em Bogotá e em Paris).  E mesmo gravitando nos altos escalões, Ibrahim era sucesso popular. Os leitores se divertiam com suas expressões, sempre repetidas diariamente, como outro obsessivo e colega de jornal, Nelson Rodrigues – este, também popular e responsável pelas mudanças de hábito do leitor de jornal, que quase sempre começava pelas colunas, e não pelo primeiro caderno.
Ibrahim virou figura popular a ponto de então ser citado no samba de Miguel Gustavo: “Eu sou até citado na coluna do Ibrahim/ E quando alguém pergunta, ‘Como é que pode?’/ Papai de black-tie jantando com Didu/ Eu peço outro uísque, embora esteja pronto/ Como é que pode?/ Depois eu conto...” Por causa disso, Jorge Veiga, insuperável cantor de sambas de breque, acabou entrando no universo da grafinagem por algum tempo, e a música pegou.

O dado curioso envolvendo tanta gente é que Bethânia, que desencavou a música em Rosa dos Ventos, fora uma das comensais no famoso almoço real no MAM, em novembro de 1968. E ela cita justamente Nina Chaves (ou “Chavs”, como ela assinava) que, naquele momento, quebrava lanças na redação do Globo contra Ibrahim, numa história curiosa e que só foi revelada décadas depois.

Pois durante três dias o Rio acordou e dormiu com a Rainha e sua comitiva. Não era uma visita protocolar e o povo participou do passeio real com pompa e circunstância. Lotaram Copacabana no domingo de manhã, durante o corso pelas principais avenidas, provocando um rush que acabou atrasando o convescote do Museu. Sua Majestade não fugiu da multidão e todos acenavam para ela, acenando de volta, na carona de um Rolls-Royce descapotado. Segundo Carlos Swann (Carlos Leonam), na coluna do Globo, aquela manhã de sábado foi uma pitoresca apoteose: em plena avenida Atlântica, sendo aplaudida e saudada por banhistas em flor.

A tal história curiosa de bastidores sobre a passagem da Rainha pelo Brasil a Hildegard Angel contou no JB em 2018. Na época, a primeira-dama, Yolanda Costa e Silva quis dar um presente à Rainha. E encomendou à Zuzu Angel o regalo, que concebeu uma capa com uma jóia, feita com ouro e pwdras preciosas, em parceria com a H. Stern, tendo como modelo a própria esposa do presidente. A capa ficou pronta na véspera da chegada de Elizabeth II.

No esquenta para a chegada, Ibrahim e Nina repercutiam a expectativa. Enquanto ela fazia uma grande reportagem seriada sobre a história da Inglaterra até contextualizar a Rainha, no século 20, ele dizia que Elizabeth era uma pessoa sóbria e que modernizou a noblesse em Buckingham. Tanto que sua entourage para a digressão à America do Sul era de pouca gente. E, se morasse no Brasil, seria fã de seu programa noturno na Globo, canal 4.

Ou seja, no fim das contas, a primeira-dama, que foi quem deu linha na pipa para a elaboração do presente, depois saltou da raia, da forma mais pusilânime possível, com direito a Ibrahim servindo de garoto de recados em sua coluna. A Hildegard conta que a esposa do presidente foi quem deu linha na pipa para a jóia. A Nina, que sabia da feitura do regalo, deu em sua coluna que a primeira-dama ia dar o presente. 

O Ibrahim, que se dava com a mulher do Costa e Silva, ficou bravo e publicou no jornal que uma repórter estava espalhando que a Rainha ia ganhar uns balangandãs no dia 5 de novembro, na véspera da chegada da Rainha, e publicou uma nota de D. Yolanda, relativizando o boato do presente. Sued dizia que o protocolo impedia que Elizabeth ganhasse um presente. No fim, quem deu linha na pipa depois ficou do lado do Ibrahim e deixou Nina e Zuzu dependuradas no pincel. “basta qualquer jornalista ligar para o Palácio para obter a informação certa”, diz o colunista, citando Yolanda. E ficou o dito pelo não dito. E a nota com o furo foi tirada do jornal.

Na recepção do MAM, Ibrahim trazia a condecoração da Ordem do Cedro do Líbano. Quebrou o protocolo e beijou a mão de Sua Majestade...

Na ocasião do descerramento da pedra fundamental das obras da Rio-Niterói, Elizabeth perguntou ao ministro Mário Andreazza em quanto tempo a ponte ficaria pronta. Ele respondeu: “em três anos, majestade”. Ela ajuntou: “então eu voltarei para a inauguração”. A obra só seria inaugurada seis anos mais tarde, em março de 1974.  

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