Sunday, December 16, 2018

Olhai os Lírios do Campo, 80 anos


Erico Verissimo

2018 marca os oitenta anos do Olhai os Lirios do Campo, do Erico Verissimo. O livro foi um sucesso em seu lançamento, e tornou-se desde então um dos mais vendidos em toda a sua carreira literária. Nas suas memórias, ele nunca soube entender muito bem a razão do sucesso do volume. Ao mesmo tempo, com o tempo, passou a ser um crítico da escritura da obra, achando-a por demais, ingênua ou até inverossímil na caracterização do protagonista, Eugênio.

Interessante observar a popularidade que esse livro teve. Erico ganhou um bom dinheirinho com a venda dos direitos para a adaptação em filme ( Mirad los Lírios del Campo, filme dirigido por Ernesto Arancibia, roteirizado por Tulio Demicheli e Mariano Perla) e pôde até saldas velhas dívidas do tempo de farmacêutico em Cruz Alta. Ele conta, em suas memórias, que uma leitora estava inconsolável ao saber que, na verdade, Olívia nunca existiu. Outro senhor, ao encontrar Verissimo em Portugal, em 59, revelou que seu filho virou médico depois de ler o livro.  

Acho que muito do sucesso e do afeto por parte dos leitores deve-se pela forma como ele abordou os personagens principais. Eugênio que era um médico que tinha um trauma da origem pobre, e que conheceu uma colega de medicina que é uma espécie de eterno feminino na história, a Olívia. Ela morre no começo e isso gera um anticlímax. A personagem principal morre na metade do livro!

Eles se amaram mas ele quis casar uma moça do café-society porto-alegrense, que vive ente saraus e  clubes de leitura. Enfim, se casa pelo dinheiro, pela fama, vira um títere nas mãos do sogro.  Mas ela permanece na vida dela como lembrança.

Ela morre mas essa ausência dela se transforma numa presença dela sob a forma de legado que faz com que ele desista daquela vida fútil, daquela busca pela fama e pelo dinheiro (clichê que depois o Erico iria criticar, no prefácio dos 30 anos da publicação do livro) e, como um franciscano, ele vira um médico popular.

Ele muda a visão de mundo dele, torna-se um médico humanitário, e essa mudança também ocorre quando ele descobre que Olívia tele uma filha com ele.  E a Olívia é uma personagem que, depois de morta, permanece sob a forma de memória.

Esse é o grande wit do Erico, esse eterno feminino de como ela, através das cartas dela que ele encontra, e das lembranças das conversas que tiveram juntos, aí ocorre esse processo de individuação do protagonista.  Olívia é um ser beatífico.

No fim, ele diz que foi ou que conheceu Fausto, Hamlet e Pigmalião. Aí a gente nota a genética do texto: Eugênio é Fausto porque vendeu-se pela glória e o dinheiro. É Hamlet porque ele ele é um ser indeciso, é uma pessoa que protela o que ele deve fazer, tomar as rédeas da própria existência. E Pigmalião porque, ao se casar com a ricaça. ele aceita ser um My Fair Lady às avessas, um pobre que vira rico ao bel prazer da esposa. Essas são as referências explícitas. Mas há as apócrifas. 

Ao mesmo tempo, eu vejo, nesse eterno feminino, o mito da Beatrice do Dante. Ele, como o poeta, teve que descer para obter a purificação, e a jornada de ambos é de purificação. Eugênio tem essa epifania quando ele cai no inferno da vida de médico dos pobres, e ele o desfile de horrores, isso é bem mostrado no livro. E como Dante tem Virgílio, Eugênio tem o Dr. Seixas.

Ele é um cara lúcido mas ele não é capaz de atingir esse estágio de individuação que Eugênio consegue.  E ele consegue por causa da Olívia morta, como Beatriz, que Dante conheceu, ele a reconheceu no Purgatório, e que lhe conduz até o último círculo do céu.

E é uma viagem de profecia, porque Dante acreditava que era preciso que os homens se convertessem, e Eugênio, a partir de Olívia, postula justamente o versículo do Novo Testamento que dá nome ao livro. Essa é a mensagem que ele quer passar agora como um homem despido daquela vaidade e orgulho que, vamos dizer assim, o afastou da 'verdade' e de Olívia.

Olívia, como Beatriz, é a transitividade absoluta para Deus. Eugênio não acredita em Deus diante de tanta desgraça. Olívia faz com que, ao olhar a vida, ele veja Deus (tema de Deus é recorrente na obra do Erico, por sinal, um agnóstico).  Olívia e Beatriz são dois caminhos para o encontro de uma compreensão superior.

Dante julgava que seria possível chegar a Deus pelo intelecto, mas só através do amor é que ele é capaz dessa ascensão. O que a razão não era capaz de atingir, o amor era, Beatriz era o caminho para atingir o inatingível. E é esse último céu o que move o sol e as estrelas. Esse signo do firmamento (no Erico como signo de contemplação) e o sol (como de renovação, do novo dia) é recorrente.

Mas em Dante, esse encontro se dá num plano divino (daí Divina Comédia) enquanto em Eugênio ele se dá pela descoberta das cartas, e pelo plano da mnemosine, da memória, a musa grega que luta contra o esquecimento.

E no livro do Erico existe esse embate constante entre esquecimento e memória, de como as coisas passam e as pessoas esquecem, como Felipe Lobo inaugura o Megatério e sequer lembra da filha morta. Ao mesmo tempo, Eugênio vê que Olívia vai ser fatalmente esquecida por todos. Tem um personagem, um médico russo que, ao morrer, diante de Eugênio, quer doar o dinheiro para um hospital para a construção de um setor para que esse setor ganhasse o nome dele como benemérito.

É um exemplo dessa luta contra o esquecimento. Ao mesmo tempo que, depois de morta, Olívia permanece em Eugênio como uma presença ausente, mas que não é motivo de remorso, mas de exemplo, de um espírito beatífico que vai estar ao seu lado nas belas lembranças e nos olhos da filha deles. Acho que é por esses motivos e tantos outros que o livro chegou aos 80 anos mais vivo do que  nunca. 

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