Tuesday, December 11, 2018

A Eneida e a outra Lavínia

Enéias e Iulo com Vênus ao fundo



Acho que a Eneida foi o primeiro épico que eu li na vida.  Eu devia ter uns doze anos. Eu explico.

Eu estudava nas Dores e eu tinha uma crush; ela se chamava Lavínia. Um dia eu devo ter pesquisado em alguma enciclopédia a origem do nome dela e descobri que ela era a noiva prometida do herói troiano. Isto é, descobri que tratava-se de um nome de origem literária. Naquele tempo, era comum achar na biblioteca aqueles exemplares da coleção calouro, da Ediouro.

Essa coleção consistia de adaptações de clássicos da literatura para um público infanto-juvenil. Havia uma para leitores um pouco mais velhos, a Elefante e outra para quem estava no Superior, que era a Coleção Universidade. A única coisa que elas tinham em comum era que os livros da ediouro, à medida em que nós gastávamos o exemplar, as folhas iam descolando.

Dessas edições, eu li desde o Dumas pai ao Victor Hugo, Mark Twain, Julio Verne e havia os épicos traduzidos para jovens, a Eneida e a Odisseia. Por muito tempo, eu tive comigo a versão da Odisseia, reescrita pelo Orígenes Lessa. Esse foi o volume que me ligou a vida toda com a leitura de épicos. Me lembro do meu afã em adquirir toda a Calouro, mas não cheguei a ter muitos não.

Eu comprei na Aurora a Ilíada da Universidade Ediouro, mas confesso que nunca li. No entanto, orgulhava-me em ver o livro na minha estante. Era em forma de prosa. Eu, que tive a Ilíada e nunca havia lido até anos depois,  achava que o poema contava toda a guerra de Troia.

A Eneida era uma versão de um cara chamado Alfred Church feita pelo Miécio Tati. Imagine que um piá de doze anos não tinha a menor ideia de que era uma recriação de um grande épico. Para mim, era uma história de aventuras, como os Três Mosqueteiros ou os Irmãos Corsos.

Digo isso porque, mesmo hoje, depois de fechar o volume com o texto original em versão bilíngue (não sei latim taoquei?) e na verdade ficar coma lembrança daquele livrinho o tempo todo. Não sei por que, mas acho que aquela leitura me marcou mais do que essa. Diferentememente de Homero.

Na minha opinião, é sempre uma novidade a cada leitura, a cada versão, até que nós encontremos a ideal. Tinha a do Church com o Lessa mas a leitura do texto original suplantou aquela aventura anterior.

Na verdade, devo confessar que eu tenho uma bronca com a eneida, ainda mais depois de ler e relar Homero. Acho, e todo mundo sabe, que o poema do Virgílio é uma emulação sem fim da Ilíada. Os primeiros cantos, quando ele foge da destruição de Tróia, lembram a Odisseia. Os últimos, quando ele se une a Evandro para conquistar a Alba Longa, a Ilíada.

A Ilíada de Enéias é lutar com os latinos contra os rútulos, que também queriam expulsar os troianos da região. Evandro confia Palante, seu filho, ao heroi, porém ele é morto por Turno. A morte de Palante lembra totalmente a de Pátroclo, uma morte funesta e que e plenamente vingada pelo protagonista, quando Enéias vê parte da armadura do rapaz em Turno, decide matar o suplicante Turno, já desenganado como opositor ao filho de Vênus.

Esse é outro problema na Eneida. O poema termina abruptamente com essa cena. Pra mim, é como se a Odisseia acabasse com o massacre dos pretendentes. Falta em Virgílio um epílogo à Eneida. Muitos não consideram o poema incompleto, mas falta alguma coisa. Ao contrário do estranhamento que muitos sentem ao terminarem a Ilíada, esperando pelo cavalo de pau.

É fácil explicar: o proêmio de Homero já delimita o poema à ira, que é a primeira palavra. Quando Aquiles devolve o cadáver de Heitor, a ira acaba. Se Homero fosse descrever a tomada de Tróia, ele estaria extrapolando o que ficou combinado no canto às musas.

No caso de Virgílio, acredito que, como na Odisseia, seria cabível um epílogo, onde tudo ficasse rearranjado. Acho que nenhum escritor que contasse aquela história terminaria a Eneida daquela forma. O próprio Virgílio declarou que seu épico deveria ser destruído, porquanto estava incompleto. Ele sabia disso, embora muitos o considerem irretocável.

Sobre a Eneida, o crítico literário Arnold Hoog é implacável. Sabendo que o neoclassicismo fez com que sociedades modernas buscassem suas origens em Roma. Sobre isso, ele rejeita qualquer raiz romana na cultura francesa. Citando Michelet, ele entende que a França é filha de si, não de Roma, dos massacradores de gauleses. Ele afirma que os franceses nunca foram romanos, mas sua raiz é céltica, é qualquer coisa, menos romana.

E desce a Eneida na porrada. Chama-a de pseudomitologia, de palavrório.  E entende que, por muito tempo, a literatura francesa foi tributária do que ela achava ser descendente latina. Fala que a verdadeira mitologia francesa é Tristão e Isolda, o Parzifal, Lancelote, não a Eneida.  Não cita diretamente Virgílio, mas dispara: “uma impotência congênita de imaginação valeu-nos essa mitologia de pobres, sem relação com os mitos, esse material de alegorias frias e secas, em que nada mais resta que se relacione com o destino do homem”.

Hoog diz que, sempre que quiseram vincular a França com os latinos, se deram mal. Cita Voltaire, Anatole Framce. Diz que quem recuperou a alma mercurial céltica foram os românticos, os simbolistas e surrealistas.  Esse imaginário que aparece em Chrétien de Troyes, a ‘matéria da bretanha’, ele entende que é cognato não aos romanos, mas à Grécia órfica, e que chegou aos francos através de cristianismo.

Mas é claro que a Eneida tem os seus lampejos de originalidade. Tanto que Dante achava isso. Embora, como lembra o Bernard Knox, o autor da Divina Comédia nunca pôde ler Homero, e esse foi o outro exílio dele. Morreu longe de Florença e virgem de Homero, embora cite os heróis gregos em seu poema.

Virgílio pegou aquele limão, que foi a fuga de Enéias, e liga com a fundação de Roma, um herói derrotado mas que, ao contrário dos gregos, cumpre um destino, sob a égide de sua mãe, Vênus contra Juno, e a gente se lembra que as duas estavam em campos diversos em Homero. A briga continua em Virgílio, que põe Enéias em plena ação, debaixo de uma tempestade, até chegar em Cartago, a inimiga secular da Roma Republicana.

Para Dido, ele conta a sua história, aqui já vemos a lembrança de Homero, com Odisseu na terra dos feácios, quando o protagonista vira o narrador. Seu percurso até a Alba Longa é o percurso do herói, é Odisseu, resumido nos primeiros seis cantos.

No livro VI, ele chega ao templo de Apolo em Cumas, hoje Nápoles. Ali, ele pede à sacerdotisa para rever Anquises no Hades ou Orco. Aqui há também outro momento que lembra Homero. No Hades, Anquises faz algo impressionante: ele junta presente, passado e futuro, mostrando sua descendência até Otávio Augusto, o imperador mecenas de Virgílio. A partir dessa visão, Enéias tem a certeza do seu destino, exatamente no meio da epopeia que, a partir do livro VII, vira a Ilíada latina, quando ele vai lutar contra os rútulos.

Virgílio termina/deixa o poema incompleto com a morte de Turno. Muitos entendem o final como irretocável. No fim da odisseia, que é modelar para o autor romano, após a morte dos pretendentes, temos a cena do reconhecimento de Odisseu por Penélope e o pacto de não agressão entre a descendência dos pretendentes mortos e o herói, pacto franqueado por Palas Atena.

Acho que Virgílio intencionava fazer algo assim à guisa de epílogo (embora o poema esteja enfeixado perfeitamente em doze cantos, o que contestaria minha teoria) mas, depois da vingança sobre Turno, Eneias abdica o trono da Alba Longa em favor de Iulo, cujos descendentes serão reis, até a fundação propriamente dita de Roma (753 antes de Cristo), filhos de Marte com a genealogia de Enéias.

Essa versão, que aparece com Fabio Picor ainda no século III, ou seja, Virgílio tinha conhecimento desse mito, que poderia ter entrado como epílogo, embora no livro VI, o leitor já tenha tomado conhecimento do destino de Roma pela profecia de Anquises.

Uma curiosidade: há um trecho da Eneida em que o Virgílio fala de Dólon, o troiano que foi espionar os gregos e foi pego na tampinha pelo Odisseu e Diomedes, que matam ele. Ele topou ir espionar para ganhar os cavalos de Aquiles. Aí cita essa cena, que é do livro X da Ilíada.

Uma coisa que Virgílio não sabia obviamente, e virou discussão homérica a partir do século XIX, é que o livro X da Ilíada na verdade é uma adição ao poema, ou seja, não é Homero. Tanto que se tirar o X, o poema não perde nada de essencial

Também porque a cena do livro X se passa durante a noite, e Homero é um poeta do dia, toda a ação da Ilíada se passa de dia, da Odisseia também. Essa é uma das hipóteses que faz com que homerólogos achem e tenham certeza que o X é apócrifo, uma adição posterior

Mas enfim, o Virgílio cita esse trecho, para ver que essa tese é recente. Na época dele, acreditava-se que X fosse original.

E tudo isso por causa da Lavínia das Dores.


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