Thursday, December 27, 2018

O Código de Hamurabi

Estela do Código, no Louvre


Hamurabi é lembrado por causa do seu código, famoso por causa da lei de talião. Mas além da lembrança das aulas de história do Fundamental, ele foi mais do que o legislador do “olho por olho, dente por dente”.

Mas ele foi bem mais do que isso, como lembra Emmanuel Bouzon, num excelente livro sobre o Código (1987). Além de estrategista e conquistador, 

Hamurabi foi um grande administrador: foi responsável pela reconstrução e ornamentação de cidades vencidas, estabelecendo templos para os deuses locais.

Também foi responsável pela regulagem do curso do Eufrates e construção e conservação dos canais de irrigação numa terra que, como bem lembra Edward McNall Burns (1983), as técnicas desse jaez deveriam ser muito mais complexas do que no Nilo, por exemplo.  

Aliás, por mais paradoxal que possa parecer aos detratores da lei de talião, Bouzon postula que o monarca babilônico foi o seu senso de justiça que o consignou como um dos mais importantes reis do mundo antigo.

O Código

Embora muitos livros (escolares, em sua maioria) atestem, o Código de Hamurabi não é o mais antigo: no terceiro milênio, já havia um códex de um legislador chamado Urukagina. No entanto, suas tábulas versavam mais a respeito de costumes do que propriamente de normas legais.

Em Ur, posteriormente, foi encontrado o corpus jurídico mais antigo, atribuído a Ur-Nammu, em Ur (2111-1094 a.C). O de Hamurabi, porém, em sua época, foi o mais difundido, como é possível perceber nas várias reproduções do texto em tábulas e na famosa estela do Louvre, descoberta por arqueólogos franceses.

Nessa estela, é possível vislumbrar a imagem do monarca recebendo o código de um deus, Samsa. No fim, o texto reitera a observância das leis constantes, e a maldição àqueles que as desrespeitarem.

É importantes observar, como diz o autor, que o Código deve ser entendido como um texto literário, antes de mais nada. Em segundo, apesar de ter uma conotação mítica (ter sido dada aos homens por um deus), muito do que está na lei também reside no universo e na tradição literária do Oriente Antigo.

Ou seja, se com os olhos de hoje a lei de talião nos escandaliza, também cabe ressaltar que esse tipo de legislação estava situada num determinado contexto em que havia a necessidade de controlar um contingente populacional que vivia cifrado numa cultura onde a lei de talião seria menos funesto que viver sem nenhuma lei. 

Se por um lado, em nosso imaginário, Hamurabi seja sinônimo de punição desmedida, por outro, como está plasmado no prólogo e no epílogo da estela, a finalidade do Código está em naturalmente punir quem deve ser punido e intervir, pela mediação sagrada do monarca, em favor da justiça e da ordem da comunidade (1987, p. 28).

Mas mais do que um código, a estela, como bem observa Bouzon, não deixa de transparecer um caráter propagandístico do rei. E o apelo à autoridade que o texto exalta, segundo o autor, tem um caráter mais moral do que propriamente legal. Porém, se formos esquematizar o Código numa perspectiva casuística, podemos resumir o seu corpus, sefundo o autor, da seguinte forma:

1-5: penas impostas em delitos praticados num processo judicial.
6-126: direito patrimonial.
127-195: direito de família
196-214: penas para lesões corporais (aqui entra a de talião que, segundo Bouzon, foi introduzido por atavismo de grupos nômades que estavam na aurora da dinastia de Hamurabi).
215-140: direitos e deveres de classes profissionais.
241-277: regulação de preços e salários.
278-282: leis complementares e sobre a propriedade de escravos.

A despeito do título de codex, o texto não possuía a intenção de ser uma suma, da forma como entendemos uma legislação moderna Como lembra Bouzon, muitas questões passaram ao largo do Código, ou seja, a despeito de serem julgadas pelos tribunais babilônicos, não constavam necessariamente nas tábuas.

Mas, tanto como texto literário (e fonte primária de pesquisa) quanto como lei, o Código permite, e esse é o grande legado de seu texto, vislumbrar como era a sociedade babilônica daquele tempo: o palácio convergindo todas as atividades do reino, uma burocracia centralizada, o governo detentor de grandes faixas de terra (embora não fosse um reino totalmente estatizado), uma economia essencialmente agrícola – e onde os súditos também trabalhavam nos campos reais.

As classes eram divididas em três: o awilum, o cidadão, que ia desde um sacerdote até um famélico camponês. O muskenum, um indivíduo pobre, em situação “de opressão” e os escravos propriamente ditos. Estes, geralmente oriundos de guerras ou escravizados por dívidas, podiam ser resgatados a partir de três anos (importante lembrar que o resgate também aparece no Deuteronônio).

A família era patriarcal, embora a poligamia e o concubinato fossem permitidos. O que não era diferente dos “tempos de Abraão”, como representação de uma figura patriarcal que, como no exemplo do Gênese, tinha uma concubina como escrava (Agar). No entanto, o Código de Hamurabi buscava observar uma salvaguarda de proteção à esposa original contra possíveis abusos por parte do marido ou dos filhos.

O Código também mostra que, apesar de uma economia agrícola, havia a pesca e a criação de animais. A Babilônia de Hamurabi também produzia manufaturas, como perfumes e cosméticos,cujo excedente era trocado com povos vizinhos por metais e madeira, estes muito escassos na Mesopotâmia.

Com o tempo, a figura do comerciante (tamkarum) foi tornando-se cada vez mais desenvolvida, e sua atividade passou a ser controlada pelo estado, na medida em que ele se transformava em banqueiro e financiava expedições comerciais pelo crescente fértil afora. Estas, por sua vez, podiam ser feitas por caravanas ou por barco.

Leis que vão, por exemplo, da 35 a 55 (e além), estão bastante cifradas na questão do uso e do destino de terras devolutas ou pomares, em caso de venda, arrendamento ou abandono, o que mostra a importância capital da questão do uso do campo na sociedade babilônica.  

As leis constantes nessa parte do texto com efeito nos mostram perfeitamente como era o cotidiano do uso e dos costumes na utilização da terra naquele tempo.

Outra questão: prata e cevada eram moedas de troca comuns. Negócios, comércio, compra e venda, tudo deveria ser feito com testemunhas, sempre nas portas da cidade (que era o lugar onde esse tipo de trato ocorria, podemos lembra do livro de Rute, no Velho Testamento, quando Boaz compra a terra de Elimeleque). Qual quer negócio, observa o Código, não realizado mediante testemunhas era considerado escuso e qualquer parte poderia ser condenada á pena capital.

Importante lembrar que, numa sociedade daquele tempo, utensílios de metal, como foices ou machados, eram de uso pessoal, facilmente reconhecíveis pelo seu respectivo dono. Eram valiosíssimos e frequentemente podiam ser objeto de furto. Se um awilum fosse acusado de manter utensílios de outrem, aquele que foi roubado poderia acusar o ladrão.

Contudo, a garantia da posse de determinado objeto dependia da testemunha. Naturalmente, aquele que possuísse um utensílio sem prova testemunhal era réu de juízo, e passível de pena máxima, a morte.

Uma curiosidade são os capítulos 108 e 109, que referem-se à conduta de taberneiras. O 108 refere-se à fixação do preço de venda de cerveja. O 109, mais curioso ainda, refere-se à possibilidade de “malfeitores” estarem reunidos na taverna, possivelmente tramando algo contra o rei ou o estado. 

Nesse caso, a lei exige e é imperioso que ela conte o que ouviu (isto é, como espiã, ela deve saber do que eles estariam tramando) e revele ao palácio a natureza da conversa, sob pena de morte.  

Já 195-6 demonstram a lei de talião. Filho que agride o pai terá a mão decepada (na lei bíblica, a pena é de morte). O 196 é o famoso olho por olho: “se um awilum destruiu o olho de outro awilum, destruirão o seu olho”. 

No entanto, é importante observar que esse “olho por olho” variava de classe: um homem livre que “quebrasse um osso” ou “dente” de um homem pobre (muskenum), a pena podia ser paga em dinheiro (em prata, o cálculo era por uma mina de prata, cada uma equivalente a meio quilo) ou açoite (202-205). Ou seja, pena de lesão corporal podia variar de acordo com a classe do agressor e do agredido em questão.

Hamurabi (1810-1750 a.C) tornou-se o primeiro rei babilônio ao conquistar a Acádia e a Suméria a partir de Ur. Sua cidade ficava em Al Hillah, hoje um sítio arqueológico a pouco menos de cem quilômetros de Bagdá. Quando conquistou Mari, ele fez a ligação territorial de Ur ao sul com o Levante, a oeste.


A babilônia assim nasceu de uma cidade que tornou-se um pequeno estado a partir do terceiro milênio. Com a dinastia amorita, ela eclipsou Nippur auto-proclamando-se a cidade santa sucessora da avoenga Eridu. 

O reinado de Hamurabi representaria o auge do império Paleobabilônico, que não resistiu á sua morte, quando suas terras foram conquistadas pelos assírios. A babilônia teria uma “renascença” com os neobabilônios caldeus, entre 612 e 529. A partir dali, os domínios do antigo império caíram em mãos de aquemênidas, selêucidas, romanos e por fim o império sassânida, até a conquista final, pelos sarracenos, na Idade Média. 


Referências:

BOUZON, Emmanuel. O Código de Hamurabi. Vozes, 1987.
BURNS, Mc Nall Edward. História da Civilização Ocidental. Globo, Porto Alegre, 1983. 

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