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Orestes mata Egisto, na Electra de Eurípedes |
Regina Zilberman tem um estudo na coletânea de ensaios O
Tempo e o Vento - 50 Anos que trata do livro do Erico Verissimo mas a análise que ela faz da Oresteia me fez reler a trilogia do Ésquilo e repensar uma outra forma de analisar a história.
Como diz ela o dramaturgo opera com elementos que podem
iluminar relações entre história e poesia. Num primeiro momento,
ele faz a crônica da da aurora da época heroica da Hélade e seu
fim, na democracia de Atenas.
Imaginei que, para um estudo, fosse possível tentar encontrar elementos históricos na peça, que mostrassem o mundo micênico da tragédia, de Agamemnon e Orestes, e cotejá-la com a época do século V, da isonomia, do nomos, da democracia que aparece na última parte.
Então, no seu enredo, ele espelha, de forma interessante, esses dois mundos, o ocaso do mundo do direito privado e a aurora do direito coletivo e público, celebrado como o elogio da pólis.
Mesmo encontrando elementos que marcassem bem aquela época dos heróis, a verdade é que os homens do século V não tinham noção do que foi realmente aquele tempo histórico. Houve um colapso, no fim do século XII, que marcou o desaparecimento de todo um mundo que havia naqueles costados do mediterrâneo.
Por exemplo, a invasão dos Hicsos no Egito foi, na verdade, um pequeno episódio de diásporas impressionantes seguidas de desaparecimento de culturas e de civilizações do oriente próximo naquele período, o ocaso da idade do Bronze.
Vidal
Naquet diz que, se por muito tempo acreditou-se que A Ilíada e a
Odisseia representavam um retrato fiel do que seria o mundo micênico,
a arqueologia e a escrita Linear B tornam hoje essa hipótese
insustentável.
Para
ele, os poemas podem conter elementos atávicos que os ligariam
historicamente ao que seria a tal época dos heróis, mas que, no
tempo em que o poeta compôs as duas narrativas, toda aquela
civilização estava totalmente esquecida.
Desta
forma, Vidal Naquet entende que esses poemas homéricos constituem
testemunhos de seu próprio tempo, ou seja, o século VIII. E sequer poderiam ser considerados retratos fiés daquela época. Da mesma maneira, em Ésquilo, aquela recriação do mundo micênico era, à sua maneira, a forma como aquela época via e entendia o passado, ou seja, são representações.
Claro que a arqueologia dá pistas sobre como, em parte, poderia ter sido aquele mundo. E que a vida social girava em torno do palácio, cujo
soberano exercia um papel religioso, político, militar,
administrativo e econômico.
Ao abordar a Oresteia, Regina
Zilberman diz que, ao contrário de Homero, de cuja Ilíada e
Odisseia são parte do ciclo de Tróia, é Ésquilo quem narra a
história da guerra de Tróia de forma abrangente, articulando suas
causas e consequências e a presentando-a, do começo ao final.
A Oresteia
A Oresteia é parte de uma tetralogia. Na época das tragédias gregas, o dramaturgo apresentava uma tetralogia, sendo três tragédias e uma comédia. Ou seja, a comédia que foi composta junto desapareceu.
Agamêmnon,
a primeira parte da trilogia, é quase toda dedicada à rememoração
do conflito e seus antecedentes. Nos diálogos e nos cantos corais,
diz a autora, a ação retrocede, voltando ao conflito entre os
irmãos Atreu e Tiestes, depois a mirte de Ifigênia em Áulis, que Clitemnestra acusará o marido de matar a filha, assassinando-o por traição na sua volta, perpre3tando o ciclo de mortes na família.
Nas
Coéforas,
vemos o retorno de Orestes, dirige-se ao túmulo de Agamemnon. Um
grupo de mulheres vai até o local e verte libações a mando de
Clitemnestra. Entre elas, ele reconhece Electra e vice-versa. Juntos,
decidem vingar-se do herói morto, com o beneplácito de Febo Apolo.
No fim da peça, Orestes mata a mãe, Orestes e a irmã
separam-se e o deus pede ao jovem que parta suplicar no templo de Apolo e depois ser julgado em Atenas.
Nas
Eumênides,
instigado pelo fantasma da mãe, Orestes é perseguido pelas Erínias.
Como suplicante, pela ajuda de Apolo que, sendo um deus posterior às
Fúrias, não consegue interceder perante sua vingança. O deus envia
então o filho de Agamêmnon à Atenas. A deusa declara que Orestes
será submetido a um julgamento.
Apolo
defende Orestes diante do júri que, no fim chega a um impasse. Em
caso de empate, o voto final de Palas Atena seria a favor do réu. As
Fúrias posteriormente são transformadas em eumênides (que dá nome
à última parte), entidades abençoadas da cidade. Declara que, no
futuro, em caso de empate, o voto final seja prla absolvição do
réu.
Tragédia e História Familiar
De
acordo com Regina, a “crônica de guerra” plasmada na trilogia
esquiliana é, antes de mais nada, uma crônica
familiar.
E Ésquilo soube engendrar a história dos
Atridas à história da própria Grécia: se o conflito entre Atreu e
Tiestes e seus descendentes tem causas internas, este não pode ser
dissociado de um plano mais geral, de natureza política e militar.
Afinal,
diz Zilberman, Agamêmnon vai à Tróia defender a honra de Menelau,
sendo obrigado a sacrificar sua filha para a tropa aquéia possa
receber os ventos dos favores divinos — o que, por fim, custa a sua
vida. Se esse ato, diz a autora, é de cunho político e religioso,
Clitemnestra entende como o crime que ela busca vingar, dez anos
depois (2000, p.28).
Cúmplice
da esposa de Agamêmnon, Egisto pretende vingar a morte do pai,
Tiestes, apunhalando o general aqueu enquanto se banhava. O crime e o
adultério, por sua vez, colocam o amante de Clitemnestra no comendo
de Micenas, onde se transforma em tirano até ser vingado por
Orestes.
Regina
Zilberman entende que, a um só tempo, a tragédia de Ésquilo
amalgama a saga familiar à história política de uma pólis,
quando a Oresteia é apresentada ao público ateniense pela primeira
vez (p. 29).
A
história política, diz a autora, conta a passagem da tirania
à democracia,
pois Orestes, considerado culpado pelas Erínias, é inocentado pelo
areópago reunido sob à égide de Palas Atena, a deusa protetora da
cidade, que assim comemorava coletivamente “a adoção de um
sistema que a diferenciava perante as outras pólis da Grécia
(idem).
De
acordo com ela, a outra narrativa é a da instalação da Justiça
Civil, com efeito, exercida e executada por um tribunal que ouve
o réu, em vez de eliminá-lo, julgando Orestes a partir de
argumentos favoráveis e contrários à sua ação.
Em
lugar do privado e do individual, que move as atitudes intestinas da
amaldiçoada dinastia dos Atridas, conclui Zilberman, esse é
admirável mundo novo do público e do coletivo.
Esse
novo mundo repreende a reprodução do trágico, superado pois ao
final da trilogia, quando os juízes atenienses submetem até mesmo
as próprias Erínias que, por fim, tornam-se entidades abençoadas e
protetoras da cidade.
Regina
Zilberman explica que saga familiar é feita de sangue e morte,
legando aos descendentes a tarefa de punir os culpados, vivendo á
margem da justiça. São Orestes e Electra que rompem o ciclo, porque
se particularizam ao constituirem um par diferenciado pelo sexo, por
manterem-se castos e por vingar o pai, ou seja, sua ação remete ao
passado,e não ao presente (2000, p.30)
.
Ambos
são substituídos por outra forma de governo, a democracia. Aqui, a
saga familiar se encerra com a “eliminação” da família ou da
primazia do direito privado em favor do estado, o direito
público.
Na
Orestéia, diz a autora, Ésquilo dá uma lição de poética
histórica. Ele mostra como lidar com temporalidade e cronologia.
Também mostra como, numa trajetória do passado ao presente, é
possível interpretar a atualidade para os sujeitos que fazem parte
dela.
Contudo,
mais do que isso, diz a autora, ele mostra como tratar, de forma
simultânea, de figuras míticas e entidades históricas, como nas
Eumênides. Para Zilberman, ninguém antes de Ésquilo ousara, com
tanta naturalidade passar do
mítico para o histórico e
voltar, sem desfigurar nenhum dos dois. Nesta trilogia, diz ela, o
tragediógrafo opta por dar um passo a frente, “reunindo tempos
diversos e entidades de natureza distinta” (2000, p.32).
A
respeito da Oresteia, poderíamos dizer que a trilogia trabalha com
elementos que podem iluminar também relações possíveis entre
história e poesia.Em
primeiro lugar, como diz Zilberman, o tragediógrafo faz a crônica
da Grécia, com seu começo na guerra de Tróia e o corolário na
formação da democracia ateniense.
Para
isso, ele faz uso de drama e narração que, segundo ela, estaria
plasmado no estilo adotado pelos cantos corais, que resumem e
relembram o passado, ao mesmo tempo em que os articulam com a ação
presenciada pelo público no palco.
A
dialética passado-presente se funde no âmbito do drama que, ao
mesmo tempo, manipula com o que está acontecendo. Neste amálgama,
Ésquilo explica aos atenienses sua própria história, desde o tempo
dos heróis até a consolidação da pólis (2000, p.31).
Conforme
Santos (2005), o surgimento da tragédia grega está imbricada a um
estado particular de articulação entre o mito e o pensamento
jurídico, que está em processo de gestação (p.47).
Ele
observa que são duas tendências a defrontarem-se no palco, numa
dicotomia entre o passado mitológico e o presente da pólis: a
transição de um conjunto de símbolos religiosos, valores do oikos,
o lar e a nova realidade dos valores da democracia.
Nesse
momento, estamos diante de um momento em em que os valores coletivos
da pólis recém fundada imperiosamente se sobrepõem aos valores
individuais da aristocracia (idem ibidem).
Aqui,
diz ele, o homem grego se volta ao passado mítico que, embora
passado, ainda está presente no que podemos entender no trânsito do
imaginário, quando entram em pauta as discussões a respeito dessa
nova ordem social.
Nas
Eumênides,
por exemplo, podemos entender o dilema de Orestes, para além da
justiça divina e/ou dos homens, a representação de uma personagem
de extração aristocrática onde seus valores são colocados em
questão.
O
irmão de Electra é, pois, como sintetiza Santos, um símbolo do
universo lendário, do mundo dos palácios, e se caracteriza pelos
valores decadentes dessa classe (p.48).
Com
relação entre história e tragédia, Vidal Naquet diz que, ao
cotejar o diálogo entre pensamento jurídico e a narrativa, trata-se
de um fundamento prévio que deve reconduzi-lo ao texto e ao seu
mundo, a fim de explorar "certas dimensões que, sem esse desvio
pelo terreno do direito, ficariam dissimuladas na espessura do texto”
(1999, p.9).
Santos
(op cit) coloca que além disso, mesmo que mimetizando a imagem de um
julgamento, não está em discussão um direito ancorado em
princípios, mas as discordâncias de um pensamento jurídico
inconcluído, não fixado e questionável" (p.48).
A
tragédia aqui aparece, a um só tempo, como expressão crítica de
um desequilíbrio manifestação e a estética do incerto momento de
constituição de um equilíbrio novo (p.48). A Oresteia é, de certa
forma, no pensamento filosófico de Ésquilo, como arepresentação
mais perfeita desse equilíbrio novo.
Em
Agamêmnon, por exemplo, Ésquilo recria o mundo micênico: no
começo, temos um sentinela solitário. O coro representaria o
conselho de anciões. Ao discutir com Clitemnestra sobre a sorte dos
heróis em Tróia, o coro adverte: "é perigosa a voz de uma
cidade magoada, a maldição de muita gente".
Quando
o atrida retorna, Clitemnestra ordena às criadas que coloquem um
tapete para que ele possa passar. Ainda estamos no mundo dos
palácios. Ao representar tais cenas, o tragediógrafo recria um
mundo que resistiu simbolicamente através dos mitos, já que nem
Homero, nem Ésquilo tivessem condições de reelaborá-lo
historicamente.
Na
discussão tanto entre o coro e Clitemnestra quanto entre ela e o rei
de Argos, vemos o que Santos entende como sintoma de desequilíbrio:
" o herói trágico grego apresenta-se para os espectadores
daquele momento como um ser problemático, induzindo-os a um processo
de reflexão (Santos, p.50).
Agamêmnon
é assassinado e segue-se uma altercação entre os anciãos. Ela
afirma contradizer-se em suas palavras anteriores e apresenta o seu
propósito: vingar Ifigênia. Não aceita a opinião do coro,
alegando que o rei era tão réu de juízo quanto ela. "pela
justiça feita em nome de uma filha, pelo Destino, pelas Fúrias
vingadoras a quem dedico o sacrifício deste homem", diz ela.
Segue-se
outra altercação do coro agora com Egisto. Os anciãos dizem: Que
mão será capaz de remover daqui a origem de tamanhos males? A raça
está atada á perdição!".
Contra
o ato criminoso, confrontam-lhe ameaças. Nas Eumênides,
peça que serve como um andante entre os dois allegros da sinfonia
esquiliana, Argos vive sob paz armada. Electra é marginalizada por
sua mãe e por Egisto. Clama aos deuses por vngança, que lhe aparece
na figura do irmão, após o reconhecimento.
Ésquilo
não exploraria tanto o ambiente rural do oikós como Eurípedes, que
ambienta a filha de Agamêmnon numa choupana, casado com um campônio
(elemento que será criticado por Nietzsche na Origem
da Tragédia).
à argem do palácio, ela é rebaixada por um casamento mal
consumado, que a coloca sob a posição de plebéia.
Porém
Eurípedes também evoca outro elemento simbólico do mundo mítico
(ou histórico dos palácios) quando da cena em Egisto vai sacrificar
uma rês, elemento que o mostra como o rei ancestral de Vidal Naquet,
quando o monarca micênico tmbém exercia um papel religioso. Enfim,
cenas representadas por outros tragediógrafos porém não por
Ésquilo que acreditamos, nas Coéforas, concentrar toda ação na
relação com o coro.
Nele,
esse elemento não é tão explorado nem por Sófocles), e ela serve,
junto com o coro, que tem papel preponderante ao infundir nos irmãos
o sentimento de vingança e a morte da rainha. Mas, na cena dos do
terceiro ato, vemos cenas do palácio: os escravos, o porteiro, um
aposento aos estrangeiros.
Nas
Eumênides,
chegamos ao mundo da pólis. Implacáveis, as Fúrias, "descendentes
da negra Noite", acusam apolo de defender um suplicante infame:
"És deus, e nos roubas um matricida! Quem pode ver justiça em
tudo isto?". Ao corifeu, Atena diz: "Estão aqui neste
momento duas partes e ouvi apenas a metade dessa história".
A
deusa apela ao Areópago, depois de escolher os melhores entre todos
os cidadãos de Atenas. Dada a apresentação das Erínias
acusatórias e do corifeu e as palavras de defesa de Fabo Apolo e
Orestes, as Fúrias decidem esperar pelo veredicto.
Dada
a absolvição ao jovem Atrida, o coro enfurece-se reiterando a
validade da "ordem antiga" ou a "ancestralidade do
poder das Erínias como lei antiga".
Atena
apela ao coro que julgue pelo bem da terra: "Que vossas bocas
furiosas nunca mais lancem sobre este solo fértil maldições
capazes de matar tudo que existe aqui".
Em
seguida, prevê um bolo futuro à pólis. E reitera: "se não
concordardes, sereis certamente iníquas, deixando cair sobre a
cidade ódio, rancor e males contra os habitantes", conclamando
as Erínias a unirem-se ao futuro da pólis como deusas benéficas,
jurando: "Jamais possa a discórdia insaciável vociferar
possessa na cidade".
As
Eumênides narra, a um só tempo, crítica racional a insistência na
figura de uma ordem antiga, a do olho por olho, vinculada ao signo
das parcas, de um réu cujas ações passadas necessitam de um
defecho numa nova ordem, a da pólis.
Nesse
mundo, diz Santos, do direito, da ordem plenamente aceita, o herói
mítico, na verdade, já representa o mundo anterior, aristocrático,
em que crimes deviam ser vingado pela parte de quem sofrera,
obrigatoriamente mediante a ação de consangüíneos ou de
descendentes (op. cit, p.54).
Por fim
Analisando a trilogia de Ésquilo, dá para ver que, na
democracia, o 'herói mítico' representado na Oresteia (cabe notar
que Ésquilo soube passar do tempo mítico, atemporal, para o tempo
'histórico' do presente da escritura da peça de forma diegética,
sem perder o ritmo dinâmico da narração) passa a ser representado
pelos seus atos.
Como
anota Santos (sem no entanto referir-se explicitamente à Oresteia)o
seu sacrifício representa a "anulação do velho direito do
mundo titânico e o prevalecimento de uma nova
ordem".
Dessa forma, diz ele, o papel representado em cena pelo herói
trágico é o de bode expiatório a ser imolado diante de uma
comunidade, a fim de que esta ordem possa dominar de forma segura
(Santos, op. cit, p.55).
Nesse
sentido, Regina Zilberman (2000) pontifica que o estabelecimento do
Estado como entidade responsável pelo funcionamento da sociedade
corresponde ao enfraquecimento do poder e influência da família,
que abre mão da faculdade de arbitrar sobre os problemas tanto
internos como externos ao alcance da sua órbita de atuação.
Essa
passagem vai corresponder, diz autora, na obra de Ésquilo, à
transferência do mundo mítico para o mundo
histórico:
o atrida Orestes, o herdeiro que descendia dos deuses dá lugar aos
juízes anônimos, e Palas Atena gerencia a mudança (p.38).
Já
Wunenburger (2005), ao falar do imaginário como instância capaz de
dotar os homens de memória, fornecendo-lhe relatos que reconstroem o
passado e justificam o presente, entende que a fundação das cidades
(no caso de Ésquilo, de uma nova cidade, isto é, a pólis
democrática) é inseparável dos mitos de origem. Eles, diz o autor,
de alguma forma fixam seu destino e legitimam sua história e suas
instituições.
Dentro
dessas constantes, o autor enumera elementos mitogenéticos, como a
filiação do espaço urbano com o mundo dos deuses. A fundação é,
quase sempre atribuída a um herói (como Teseu e Rômulo), que
cumprem uma promessa sobrenatual (fundação de Roma por Enéias).
Em
segundo lugar, a fundação torna-se um rito sagrado, mediante a
instauração de um mundo que testemunha que a aventura humana só
pode adquirir sentido integrado a uma simbologia sagrada (p.64).
Para
o autor, a cidade inaugura uma mudança ontológica na vida de seus
habitantes, modifica suas relações com os deuses, expõem o
indivíduo a vivências estranhas ao comum do habitat e da
sociabilidade (idem, ibidem).
Por
fim, o nascimento da cidade é, no entender de Wunenburger,
comtemporâno de uma violência assumida (aqui, no caso, a maldição
dos descendentes de Atreu) e superada (pela Justiça pública), como
se a nova ordem só pudesse resultar de uma ampla desordem vencida
(p.64).
Entendemos
a Oresteia como uma obra que pensa, de forma global, nesse processo -
da poesia à história, do mundo da era micênica e dos palácios e
da aristocracia de ascendência mitológica cifrada na formação da
cidade, com elementos enraizados na tradição e no imaginário
grego.
Ésquilo,
por sua vez, ao estabelecer os dois universos, o dos mitos e o da
violência e o da ordem, da cidade, contra uma mundo de ódio e um
lugar estéril, como diz Palas Atena em seu apelo, nas Eumênides.
Ou,
como diz Vernant (1972) percebe-se, nesse momento da pólis como uma
relação social assimilada a um vínculo contratual
(Erínias
versus
Orestes,
aristocracia versus
"corrente de espírito democrático") e não mais um
estatuto de domínio e submisão (p.102). Contratual como no termo da
Oresteia, quando por fim estabelece-se a paz entra as duas
'correntes'.
Porém,
sobretudo, como um momento de reflexão sobre essa instabilidade do
herói, como diz Santos e essa instabilidade provocada pela hybris,
a desmedida, a necessidade do Estado em estabelecer um contrato
com seus respectivos cidadãos em favor da ordem e da paz contra a
violência.
Enfim,
um contrato social onde a democracia torna-se um espaçod e
negociação entre os grupos políticos, e acreditamos que a trilogia
é um exemplo perfeito dessa aspiração da pólis do século V.
Como
afirma, à guisa de conclusão, ao analisar a Oresteia, Regina
Zilberman diz que, ao se instaurar o mundo da história e do
acontecimento, suplantando o do mito, o que significa anunciar a
realidade do progresso e da modernidade, não há mais lugar para o
privado (p.41).
Ao
mesmo tempo em que ela convida as Fúrias a superarem as desavenças
estabelecidas como donas da tradição e da lei, entidades míticas
que querem impor a sua ordem, como deusas antigas, Atena as convida,
e por extensão, Ésquilo conclama também a platéia, e aqui
trata-se da platéia das tragédias como um evento da cidade, a
fazerem parte do admirável mundo novo da democracia.
Bibliografia
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A
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