Tuesday, February 09, 2016

O "Fim-de-Semana Perdido" dos Rolling Stones


Mick Jagger no Live Aid, em 1985


Os Rolling Stones estão de volta aos palcos - e prestes a aterrisar no Brasil novamente, depois de uma década. Nos anos 70 ou 80 em diante, sempre que eles caíam na estrada numa nova turnê, alguém sempre dizia: "por que eles não param de uma vez?"

O que muita gente não sabe é que, em um determinado momento, o então quinteto britânico quase acabou, para não dizer que, de certa forma, acabou. Isso aconteceu há 30 anos atrás, em meados dos anos 80, mais precisamente durante as gravações do seu 18º álbum, o Dirty Work, de 1986.

Quem revolveu falar abertamente do que foi aquela crise foi o próprio Keith Richards, na sua autobiografia Life (1). Em dado momento, ele diz que sentia que Mick Jagger apreciava o seu lado junkie porque, por conta disso, seu estado o impedia de interferir nos negócios da banda. Agora ele poderia dizer que podia tomar conta as coisas.

Porém, para os demais, era como ter que aturar um ex-drogado sóbrio, talvez de cara também pelo fato de não ter como curtir mais a vida como antes. Mais do que isso, Keith notava que Jagger apreciava estar no comando: "Mick tinha se apaixonado pelo poder enquanto eu estava sendo apenas artístico", conta.

O começo do que Richards chama de "A III Guerra Mundial dos Glimmer Twins" começou antes, durante a gravação do Undercover, em 83. Para Keith, Mick tornara-se insuportável, para ele, era Jagger "e os outros". "havia o mundo de Mick, que era um mundo de socialites, e o nosos mundo (...) Os integrantes da banda tinham se tornado empregados, inclusive eu".

Keith compartilhava esse senso de indignação com Charlie. Mesmo assim, tentavam contornar a situação, ou protelar qualquer briga fatal. Segundo ele, a coisa ia acontecer, cedo ou tarde. "Será que nós conseguiríamos segurar essa", conta.

Ele diz que Undercover foi realizado num clima de paz armada, onde eles limitavam-se a trocar farpas, mas evitavam qualquer confronto dirto, já que o esquema de gravação era separado: no geral, ele pré-produzia as faixas à parte, com Ronnie; Mick punha os vocais em horários diversos.

Richards dizia que Mick sofria de Síndrome de Vocalista: depois de anos de bajulações, a coisa havia literalmente subido à cabeça dele. "Mick era incrivelmente carismático e engraçado e espontâneo (...) No entanto, em algum momento, ele se tornou artificial (...) ele começou a agir como se quisesse ser outra pessoa (...) é quase como se Mick estivesse aspirando a ser Mick Jagger, correndo atrás do próprio fantasma. E ainda por cima chamando consultores para ajudá-lo.


A capa do Dirty Work

Fora problemas com a condução dos Stones, ainda havia divergências com relação à direção musical. Desde os últimos discos dos anos 70, Jagger imprimia um rumo mais pop e contemporâneo para o conjunto. No começo, Richards não se envolvia nas faixas de Mick. No entanto, a partir do Undercover, ele passou a questionar frontalmente o gosto musical de seu colega.

"Ele queria superar todo mundo que fazia música disco". Ele acha que Jagger queria prever o gosto do público. "Eu entendia o problema de Mick, porque vocalistas sempre acabam caindo na cilada da competição. O que Rod está fazendo? E o Elton? E o David Bowie? O que será que ele está fazendo?

O estopim foi o contrato com a CBS. Sem que nenhum dos demais integrantes dos Stones soubessem, Mick conseguiu acertar, além do novo contrato com a banda, outro, para três discos solo. Olhando em retrospecto, Richards entende que a carreira solo de Jagger vinha sendo construída há algum tempo, e agora surgia a chance.

Ele sentiu-se lisonjeado. A direção da Columbia acreditava (e ele também, segundo Keith) que poderia ser tão grande como Michael Jackson. "Assim, o verdadeiro propósito do contrato com os Rolling Stones foi que Mick aproveitasse a onda para promover a sua carreira solo".

Para Keith, todos se sentiram traídos. Mick podia ter contado suas intenções antes. Ao contrário, Jagger parecia bancar o comensal dos executivos da CBS ao invés de pensar os Stones junto com a banda. As coisas pioraram em 84, quando Mick e Charlie foram às vias de fato numa reunião em Amsterdam, por um motivo fútil, uma ligação fora de hora. "Onde está o meu baterista?", perguntou Jagger, pelo telefone, chamando Watts. Este, por sua vez, respondeu com um soco.

Foi nesse clima que começou a pré-produção do Dirty Work, em Paris, em 1985. Os ensaios eram constantemente adiados, porque Mick estava ocupado trabalhando em seu primeiro elepê solo, She's the Boss. Keith entende que seu amigo "queimava" todas as suas canções no disco, estava ausente quase o tempo todo.

As sessões começaram em abril de 1985. Assim como ocorrera no disco anterior, Mick gravava os vocais à parte. Keith e o resto dos Stones produziam bastante. No fim, a partir da produção de Ron e Richards, havia o suficiente para dois álbuns. E, pela primeira vez, Keith canta duas faixas num disco, "Too Rude" e "Sleep Tonight".

A despeito de subestimada, "Sleep Tonight" foi um divisor de águas na carreira de Keith. Tanto na sua forma de composição, assim como pelo fato de que, sendo o único cantor presente nas gravações, ele fez a voz guia de todas as faixas. Logo, Richards aperfeiçoaria sua forma de cantar. Com o tempo, ele desenvolveria um estilo à parte do cânone dos Stones para compor suas canções nos álbuns seguintes, como em "How Can I Stop" ou "Slipping Away".

- Então comecei a compor sozinho para o Dirty Work, músicas de diferentes estilos. A atmosfera horrível de estúdio afetou a todos nós. Bill Wyman quase não aparecia mais. Charlie foi passar em tempo em casa [nesse tempo, ele passou a beber e drogar-se constantemente]. Hoje posso ver como as faixas daquele disco eram todas cheias de violência e ameaça: "Had it With You", "(One Hit) to the Body" e "Fight", relembra Richards.

A crise na banda virou pública durante o Live Aid, quando Mick apareceu sozinho no palco, enquanto Wood e Keith tocaram com Bob Dylan num set acústico.

Na sequência das gravações do Dirty Work, Watts tornou-se a segunda defecção. Viciado em álcool e heroína, teve que ser substituído por Steve Jordan. Logo, a parceria de Jordan com Keith se revelaria produtiva, e ambos trabalhariam juntos em vários projetos solo de Richards, como o documentário Hail Hail Rock' Roll, sobre Chuck Berry, e o disco Talk Is Cheap.

As últimas sessões foram amenas, contando com a participação de Bobby Womack, Tom Waits e Jimmy Page que, voltando ao tempo em que era músico de estúdio, tocou a guitarra-líder em "(One Hit) to The Body".

Porém, nas vésperas do Natal, a bomba: Ian Stewart tem um enfarte fatal, durante exames de rotina. Dias antes, ele havia sentido-se mal. Morreu na sala de espera da clínica.

Novo round da III Guerra aconteceu logo depois do lançamento de Dirty Work, em março de 86. Jagger vetou uma turnê do disco, como era comum com os Stones. Pior, ele comunicou a decisão à banda por carta. Entre as alegações, ele citou o estado de saúde de Watts e, para a irritação de Keith, o desejo de seguir divulgando seu novo trabalho solo.

Mais: seus projetos para 1987 eram um novo disco e uma turnê mas sem os Rolling Stones. Charlie Watts, sempre o oráculo do grupo, falou para Keith:

- Ele está acabando com vinte e cinco anos de banda.

Na imprensa, Mick dizia que os Stones não podiam ser a única coisa em sua vida, e que ele conquistou o direito de poder se expressar de outras formas. Ou "os Stones são uma pedra de moinho pendurada em meu pescoço".

O resumo dos anos 80 para o conjunto: de 82 até o final da década, nenhuma turnê. De 85 até 89, um hiato total.

Para Keith, era o fim. Mick Jagger saiu em turnê em os Stones. A partir daí, a troca de farpas na imprensa virou algo constante, aliás, para o gáudio da própria imprensa. Afinal, a última coisa que eles queriam é que os arrufos entre os Glimmer Twins terminassem. Um dia, um repórter gracejou a Keith: "quando vocês vão parar de brigar?".

- Pergunte para a jararaca - ele respondeu.

Richards dedicou o resto dos anos 80 com os X Pensive Vinos, aprendeu a compor para ele e a cantar como nunca havia feito antes, já que escrevia para Mick. Ao mesmo tempo, mesmo engolindo todo o despeito de ver seu parceiro esnobando os Stones, ele decidiu que, nessas condições, não voltaria mais. Contudo, meses depois, com um telefonema e muita diplomacia, um armistício ocorreu em Barbados.

A primeira decisão foi a de parar de fazer o jogo da imprensa britânica lavando roupa. A segunda: você e eu podemos voltar a fazer música juntos?

"Em pouco tempo, tudo foi esquecido", conta Richards. "Menos de duas semanas depois daquele primeiro encontro, nós estávamos gravando o nosso primeiro álbum em cinco anos, Steel Wheels. Depois de quase ter dissolvido os Stones para sempre, Mick e eu agora tínhamos mais vinte anos de estrada pela frente".

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Se há males que vem para o bem, a verdade é que, depois de resolvidas as justas entre os dois, até mesmo Richards viu que poderia desdobrar o seu papel como músico além dos Stones. Isso influenciaria o som da banda a partir dos anos 90, quando a própria cena pop deixou de ter um norte. Mesmo assim, é possível notar certas relações fronteiriças nos discos posteriores: boa parte da produção de Keith em discos como Bridges to Babylon eram contribuições tão originais que fugiam ao cânone dos Stones.

O final do álbum, totalmente produzido pelo guitarrista, é quase uma suíte solo à guisa de bônus track. Porém, ao mesmo tempo, Mick pôde desenvolver amiúde os seus projetos solo nos anos posteriores (como o Goddess in the Doorway), porém marcando bem essa região limítrofe entre o cânone stoniano e a sua música.

Quando do lançamento de "Don't Stop", em 2002, Mick falou (2):

- Para mim, fazer um disco solo ou dos Stones é o mesmo, com uma diferença. Quando componho para a banda, não me importo se a canção soa como algo deles, ao passo que, se eu componho, mas não gravando com os Stones, eu não quero que ela possua clichês associados com os Rolling Stones; assim, eu tento evitá-los com todas a forças.

Na ocasião, enquanto gravava Goddess in the Doorway, ele citou "Don't Stop" como um exemplo de música que passou da fronteira da produção solo para o clichê stoniano

- Eu deixei ela de lado e pensei comigo: "isso parece com os Stones. Talvez seja útil nos próximos meses, mas foi deixá-la de fora e não a registrarei porque ela ficará melhor com os Stones.

O lado curioso é que, como se fosse um acordo entre os Glimmer Twins, existe um espaço nessa relação fronteiriça que é constantemente negociada na gravação dos álbuns depois do Dirty Work. Nesse "acordo", Mick pode continuar trazendo sub-produtores para suas músicas, porém Keith não se envolve. Foi o caso de "Saint of Me", do citado "Bridges...", onde Waddy Wachel faz o dublê de Richards durante as sessões. Ao mesmo tempo, Jagger não teve nada a ver com "Thief in the Night". A diferença é que, ao contrário de seu parceiro, Keith ultrapassa constantemente a fronteira da produção solo para os Stones quando o intérprete é ele. Enfim, ecos daquele fim de semana (não tão perdido assim) dos Stones, nos anos 80.




(1) Keith Richards, Life (com James Fox). Editora Globo, 2010.

(2) http://timeisonourside.com/SODontStop.html Acessado em 2/2/2016.

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