Sunday, February 07, 2016

Depois do Último Trem


Menudos


Em junho de 1989, eu fui numa cinemateca assistir pela primeira vez ao filme Magical Mystery Tour, dos Beatles, no Sesc. Lembro que eu havia ganhado um ingresso sorteado pelo programa Beatlemania 99, da antiga rádio Bandeirantes.

A experiência foi curiosa na época, mas mais por razões que transcendem o filme em si. Na verdade, estávamos em plenos anos 80 e, assistir a um musical de uma banda de rock dos anos 60 era estar na contramão da história. Aquele encontro de fãs da banda inglesa parecia algo tão insólito e apócrifo como uma reunião de uma confraria rosacruz.

Na época eu não pensava dessa maneira. Porém, olhando em retrospectiva, a impressão que tenho é a de que os anos 80, com a sua trêfega necessidade de celebrar o presente, suas estéticas e seus modismos, tinha por objetivo querer relegar tudo o que veio antes ao pasado mais remoto possível.

Os anos 80 eram como uma espécie de trem que todos deveriam pegar. Quem perdesse o trem, iria desaparecer no tempo, iria virar estátua de sal. Lembro de como todas as minhas coleguinhas de sala de aula nas Dores vestiam-se como se fossem figurantes do último clipe da Madonna. A moda, a música, tudo tinha a urgência da última moda, tudo muito colorido, tudo com ombreiras e muito sintetizador. Os anos 80 foram os últimos anos loucos. Todos viviam como se tudo ali fosse eterno.

Até quem veio dos 70 converteu-se aos 80. É só ver a quantidade de gente do progressivo que virou pop. Todo mundo pegou aquele trem. Por isso, recordo daquela noite na cinemateca. Imagine alguém gostar de Beatles em 1989? Os Beatles eram coisa do passado. Quando eles saíram em CD pela primeira vez, naquele ano, para os anos 80, era como se a Deutsche Grammofon relançasse as 9 sinfonias do Beethoven com o Herbert Von Karajan. Era uma coisa de velhos ranhetas.

Como naqueles tempos não existia internet, de certa forma, nós éramos naturalmente condicionados pela cultura do rádio e da tevê. Por conta disso, todos eram cada vez mais e sempre influenciados pelos ditames da moda. Para os anos 80, não existia o passado. Por causa disso, ninguém recordava de uma década atrás.

Creio que até como reflexo daquele contexto histórico, em que toda uma indústria do entretenimento floresceu de forma exponencial nos anos 80, a cultura de massa no Brasil dadas as facilidades tecnológicas da época, houve um boom astronômico de novidades, um pau-de-sebo cultural. Algo que se desenhava nas décadas anteriores mas que, nos anos 80, tornou-se algo extremo.

Acho que os anos 80 ainda são algo a ser estudado, ainda mais se pensarmos que estávamos, de certa maneira, chegando na fronteira tardia da pós-modernidade. Porém, aquela mudança constante em busca do progresso chegou a um limite. Depois, nos anos 90, é como se houvesse a dissolução desse modelo, até que chegássemos ao advento da internet (comercial) e da cultura adjacente à isso.

O aperfeiçoamento progressivo da Internet como repositório e como formadora de bases de dados, em contraste com o fim de elementos que sustentavam aquela cultura que floresceu nos anos 80 (o rádio e a tevê em rede aberta) fez com que houvesse uma mudança curiosa: tudo aquilo que foi recalcado e esquecido pelo trem retornou, como uma ressaca bíblica. É como se houvesse uma libertação. Algo sintomático com relação a isso é a moda retrô, que apareceu justamente a partir de meados dos anos 2000.

A moda foi deixando de ter a mesma importância de antes, a música deixou de ser ditada necessariamente pelas emissoras de rádio FM que, com o surgimento da Internet e agora, com o advento de dispositivos móveis, perdeu totalmente o seu poder de influência.

A Internet permitiu que o mundo pudesse relembrar décadas e décadas de uma cultura que foi aparentemente apagada - quase que propositalmente - pelos anos 80. Claro que não há por que culpá-los; isso foi um processo lento de modismos sobre modismos e o passado foi sendo trancafiado e represado.

O parâmetro, por sua vez, era sempre o presente. Hoje, quando a Internet joga tudo o que a gente quiser no nosso colo, nós temos acesso a tudo, sem exceção. Podemos discernir o que é ruim do que é bom, ou descobrir que muito do que foi relegado ao passado nos serve hoje. Lembro de uma loja de disco usado no Viaduto da Borges. A Free. Lembro de um disco dos Doors, creio que o L. A Woman.

O disco ficou por anos na parede da loja. A gente olhava para aqueles discos como quem olha para a máscara mortuária do Júlio de Castilhos no museu. Com o mp3 e a publicação de livros como o 1001 Albuns You Must Hear Before You Die, as pessoas passaram a redescobrir aquela música do passado. Se eu for agora na Livraria Cultura, eu posso achar o mesmo L. A Woman dos Doors novinho e lacrado para levar para casa, como se tivesse sido lançado mês passado.

Como explicar isso? A Internet fez com séculos de cultura jorrassem para o oceano, como a lama da Samarco. Há 30 anos, eu precisava fugar dos anos 80 como se eles fossem a própria polícia do pensamento do Orwell e entrava numa reunião secreta (quase interdita) assistir ao "Magical Mystery Tour". Em 1989, os Beatles era uma cultura defunta. Semana passada, eu vi, numa feira de material escolar um caderno com a capa do Sgt. Pepper's.

E os anos 80? Lembro que, de forma massiva, as rádios nos faziam ouvir todo aquele Italo disco, Euro Disco, OMD, Fancy, Sandra, Seventh Avenue, Rick Astley, Frankie Goes to Hollywood, que fim levou tudo isso? Parece que o mundo deu voltas e os anos 80, que fizeram de tudo para recalcar todo o passado e impor uma cultura urgente do novo e do moderno foi posto na mesma balança de toda aquela geléia geral e, ao que parece, não pesou. Hoje, até os anos 80 foram enquadrados e vendidos como produto cultural, e até aquele disco do Menudo que você tinha e depois jogou envergonhado no lixo agora os filhos da minha vizinha ouvem no Youtube.

Não pensem que trata-se de ressentimento de minha parte. Mas isso serve para constatar o seguinte: a própria cultura da moda pela moda foi perdendo efeito não necessariamente com o tempo; poderíamos usar os diversos conceitos de pós-modernismo para explicar isso, muito embora esses mesmos conceitos não levem em conta a revolução que foi a Internet em nossas vidas, principalmente no sentido de fazer com que todo o processo massivo e impositivo da mídia ao que se refere à modismos sofreu uma inversão considerável. Como viver num mondo sem a moda da próxima semana?

Em tempo: parece que o "Magical Mystery Tour" vai sair em Blue Ray....




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