Tuesday, February 02, 2016

Legião Desconhecida


Legião Urbana

Eu tenho uma concepção da discografia da Legião Urbana que pode er dividida em duas fases: a primeira, que corresponde aos primeiros três discos (o primeiro, o "Dois" e o "Que País É Este"). Esses têm em comum todo aquele comentário social que moldou a imagem da banda, e que dialoga de certa maneira com a temática política dos demais conjuntos de rock dos anos 80.

A segunda, eu chamo da fase do "desbunde do Renato Russo", e que respectivamente corresponde aos três discos seguintes (o "As Quatro Estações", o "V" e o "O Descobrimento do Brasil"). Nessa etapa, a temática política quase que desaparece em favor de uma espécie de busca espiritual, ou seja, mais centrada no subjetivo do que nas palavras de ordem da primeira fase.

Não quero dizer aqui que são fases objetivamente distintas ou desconheço qualquer fato que explique essa mudança que, na minha ótica, é evidente. Lembro que, em algumas entrevistas, eles mencionam essa mudança, que naturalmente não parece ser meramente programática; mas, antes, tem a ver com o próprio desenvolvimento da banda como artistas em busca da sua evolução musical e, mais precisamente, na criação poética e na escolha de temas que , embora esparsos, são ligeiramente recorrentes: uma religiosidade que se mostra de forma simbólica na escolha de temas afins de religião e filosofia.

Vou me deter em alguns exemplos interessantes desse "programa" proposto pelo Renato Russo em algumas canções desses três discos da fase do desbunde: "Monte Castelo", do "As Quatro Estações", "Metal Contra as Nuvens", do "V", e "A Fonte", do "O Descobrimento do Brasil".


Em "Monte Castelo"< fica evidente a tentativa de diálogo com Camões e Paulo (São Paulo para os íntimos) de Tarso na escolha da temática do amor. Parece que a música quer que sejamos convidados a cotejar as duas visões do tema como um só. Um detalhe interessante é que o wit que causou essa guinada espiritual em Renato Russo está comentado no encarte do disco. Ali, ele explica que achou por acaso uma daquelas bibliazinhas dos Gideões. Á despeito de toda a simbologia cristã embutida em "As Quatro Estações", minha impressão é a de que, ao invés de mero proselitismo religioso, ele quer demonstrar que é possível ter uma visão humanística e até mesmo mística dos textos religiosos.

Como no diálogo entre a Carta dos Coríntios e o Soneto 13 de Camões, ao mesmo tempo em que temos que aceitar a proposição e a imperiosidade do amor (ou caridade), temos que lidar com o amor e suas contingências, como no jogo antitético do poeta português, que tão bem define o indefinível. Sem amor eu nada seria, porém tão contrário a si é o mesmo amor? Logo, parece que tanto a concepção do apóstolo quanto a do autor dos Lusíadas nos obriga a, mesmo que por caminhos tortuosos, entender o amor como um ato de fé.

Ao mesmo tempo, esse diálogo entre Paulo de Tarso e Camões pode fazer com que o ouvinte/leitor possa ter uma outra visão do texto religioso, menos pedagógico ou doutrinário e mais poético - talvez mais pelo anacronismo que essa fusão possa sintetizar em "Monte Castelo", eivada de uma religiosidade deliciosamente pagã.


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Se é possível encontrar elementos relativos à tradição cristã na poética do "As Quatro Estações", no "V", a Legião Urbana (mais precisamente Renato Russo) tematiza, na primeira parte do disco (nas três primeiras faixas) episódios relativos à cultura medieval e,mais precisamente, sobre o embate entre o religioso e o secular.

Isso fica evidente em "Metal contra as Nuvens". O próprio título propõe essa separação. Existe uma interpretação apócrifa (nunca foi endossada por nenhum membro da banda) de que, pegando o moto da faixa instrumental "A Ordem dos Templários", ao contrário do que foi dito à época a respeito, "Metal.." refere-se ao embate entre os Templários (o "metal") e o Papado (as "nuvens", representando o Céu).

As origens desse embate entre céu e terra remontam ao conflito entre os reis germânicos (guibelinos) e os guelfos (partidários da Sé), duelo político que terminou em guerra e na consequente vitória os segundos e do fortalecimento do papado. O episódio seguinte ao fim do conflito com o Sacro Império, a Sé voltou-se contra a Ordem dos Templários, cuja reputação e poder fugia ao controle do Papa.

A letra fala perda (de riquezas), de exílio, separação e desejo de recuperar essa mesma riqueza. Pois essa interpretação (apócrifa) de "Metal Contra as Nuvens" entende que ela refere-se à perseguição dos Templários (sob a acusação de heresia) por parte do Clero, com os auspícios de Filipe IV de França que, por sua vez, desejava apropriar-se dos bens dos Templários.

Através de um processo infame, perpetado em conluio entre Clemente V e Felipe o Belo, os grão-mestres da Ordem foram presos, torturados e condenados à fogueira.

é lógico que é apenas uma interpretação, muito embora a temática dos Templários tanto na capa quanto em algumas letras e no encarte sejam evidentes, permitem essa leitura, ao mesmo tempo em que seja possível que cada um entenda a letra à sua maneira. Ademais, faz parte da mística do rock progressivo (e "Metal Contra As Nuvens" é pretensamente progressiva e talvez o disco todo não girou em torno dessa temática por razões comerciais) singrar temas tanto enigmáticos e simbólicos quanto escapistas.

Certo é que existem pistas no "V" e toda o mistério envolvendo os espaços vazios de interpretação no lado A do disco permitem toda a sorte de conjecturas. Uma delas, passando pelos Templários, como uma Ordem monástica, e essa era uma das suas acusações de heresia (de acordo com algumas fontes), a de que eles tinham uma concepção cristã eminentemente mística e calcada em ritos de mistério, ou seja, diversas da Doutrina da Santa Sé.


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Uma das faixas mais lado B do disco mais lado B da Legião Urbana, "A Fonte", deve o seu caráter hermético (como acontece em "Metal...") pelo fato de ser outra charada musical da banda. Na verdade, como em "Monte Castelo", Renato Russo faz um amálgama de fontes diversas glosando o mesmo mote numa letra só.


Como nesse trecho:

Ao lado do cipreste branco
À esquerda da entrada do inferno
Está a fonte do esquecimento
Vou mais além,não bebo dessa água
Chego ao lago da memória
Que tem água pura e fresca
E digo aos guardiões da entrada
"Sou filho da Terra e do Céu"

Esses versos de "A Fonte" são quase uma paráfrase de um poema órfico, que é este:

"Encontrarás à esquerda da Mansão do Hades, uma fonte,
E a seu lado, um branco cipreste.
Não te aproximas deste manancial.
Mas encontrarás um outro junto à Fonte da Memória,
De onde fluem águas frescas e, diante das quais há guardiões.
Diz-lhes: "Sou um filho da terra e do céu estrelado;
Mas minha raça é do céu (somente). Vós próprio o sabeis.
E - ai de mim! - estou ressequido de sede, e pereço. Dai-me rapidamente
A água fresca que flui da Fonte da Memória".
E eles mesmos te darão de beber do manancial sagrado,
E desde então tu dominarás entre os outros heróis".

O Orfismo é uma religião de mistérios que floresceu na Grécia no período clássico. É citada na obra de Platão e consta que teria influenciado a filosofia da hélade a partir dos pré-socráticos.

O Orfismo tinha por objeto divindade de Orfeu, e gira em torno de iniciações que revelavam o que acontecia com a alma depois da morte. Nesse sentido, o ponto principal e a viagem de Orfeu ao Inferno, e falavam sobre a mortalidade da alma e o dualismo entre corpo e alma e o juízo final após a morte. Tudo isso foi introduzido pelo Orfismo na cultura grega do período clássico. Ou seja, ao contrário do que acreditavam os arcaicos, havia uma bem-aventurança para a alma, ao invés do vale das sombras dos poemas homéricos.

Algo muito parecido do que viria a tornar-se doutrina nas religiões cristãs, não escondendo a sua origem. Por sinal, esse estudo comparado entre filosofia grega e doutrinas cristãs seriam o norte de boa parte da produção da filosofia patrística, ou dos primeiros doutores da Igreja.

E qual é a diferença? A diferença é que o Orfismo era uma religião de segredos popular na Grécia (séc V) e influenciou Platão e Pitágoras (com relação à metempsicose a transmigração das almas). Por isso que, quando os apóstolos foram pregar o Evangelho na Grécia (entre eles, Paulo de Tarso, em Éfeso e Corinto) os gentios eram bastante refratários àquela pregação. É que, com certeza, muitos deles já já tinham tinham ouvido toda aquela potoca apostólica como praticamente um pastiche da já difundida liturgia órfica.

Por conta dessas coisas, Orfismo é bem parecido com a doutrina paulina - porém difundida como religião de mistério, não como doutrina. O trecho do poema órfico citado em "A Fonte" é uma espécie de texto fúnebre e refere-se à forma de como deve-se proceder ao descer ao Hades: "sou filho da terra e do céu estrelado, mas minha raça é celeste apenas". Este poema deveria ser recitado pelo iniciado.

Já a "fonte do esquecimento" (de onde vem o título da música) refere-se à explicação órfica (e platônica, que bebeu do orfismo) do esquecimento das vidas passadas. O texto órfico faz menção à esta fonte, que todos devem beber antes de reencarnar.

A sugestão de "não beber dessa água" aparece em algumas lâminas com partes do mito, alegando que beber da fonte da memória, a fim de escapar do ciclo de reencarnações. A memória (anamnesis) aparece, por exemplo, em Sócrates, como base da explicação para a teoria da reminiscência através da prática filosófica. Desta forma, segundo o Platão da República, os tolos bebem com voracidade da fonte do esquecimento, enquanto os sábios o fazem de forma comedida.

Por fim, cabe ressaltar que o Orfismo enquanto corpo de ideias religiosas(no tocante à escatologia, por exemplo), influenciou tanto a filosofia clássica quanto aos Padres da Igreja (patrística).

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Da mesma forma curiosa com que textos e episódios referentes à cultura religiosa e religiosidade aparecem em "Monte Castelo" e em "Metal Contra as Nuvens" de forma simbólica e velada, vemos esses incidentes em "A Fonte". As três letras, por sinal, parecem dizer mais ao leitor/ouvinte do que possam parecer à princípio. Essa talvez, seja a faceta mais interessante dessa fase "desbundada" da Legião Urbana.

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