Saturday, May 23, 2015

No Cordão da Saideira





Hoje considerado um gênero defunto, a marcha-rancho é um gênero musical que fixou-se nos anos 30 do século passado. Segundo José Ramos Tinhorão, num famoso livro*, o autor explica que ela nasceu do desejo de alguns compositores do período em recriar e "capitalizar o espírito musical e a beleza dos desfiles de ranchos cariocas".

Na verdade, a história da marcha-rancho se confunda com a própria história do carnaval carioca. Segundo Tinhorão, a primeira foi " A Jardineira. Extraída do folclore nordestino, o título faz referências às meninas pastoras que saíam em cordões, enfeitadas de flores e tocando pandeiros.

Sua primeira adaptação carioca se deu por Hilário Jovino. Ele criou o rancho (com esse nome, a partir da música) como uma espécie de 'paganização' do terno de reis. Lançado em meados dos 1870, eles atingiram o auge na virada do século, ocasião na qual surgiram muitos outros, como o Rosa de Ouro. Este, por sua vez, incumbiria a maestrina Chiquinha Gonzaga de criar o "Abre Alas", que faria bastante sucesso nos tríduos momescos a partir de então.

Chiquinha só não foi a precursora por causa da temporã "A Jardineira". A despeito de ter se tornado famosa nas festas de momo de 1938 - na voz de Orlando Silva, a marchinha (de Benedito Lacerda), como se soube depois, era um plágio de Hilário Jovino. Como provaria Almirante, os versos já haviam sido cantados por um certo Candinho das Laranjeiras, em 1886.

Polêmicas à parte, o fato é que foi a partir dessa época que compositores modernos passariam a a fixar o marcha-rancho (ou de rancho) como um gênero musical. Ao contrário da marchinha de Carnaval, esse estilo era mais vivo e mais lento. Surgindo imbricada à temática momesca, aos poucos, ela foi saindo sutilmente do universo carnavalesco até incorporar-se à moderna MPB.

Sempre altaneiras, nostálgicas, algumas delas se tornariam derradeiros exemplos de música de Carnaval; outras, no entanto, viraram clássicos da MPB. Eis algumas delas:

Paisagem Útil: (Caetano Veloso) Do primeiro disco do compositor baiano, de 1968. Uma Alegria, Alegria ao contrário, pelo dissimulado comentário social, é tipicamente tropicalista, desde o título (é uma brincadeira com Tom Jobim), até a letra, que é um travelling onírico pela zona sul do Rio com um olhar debochado e grotesco sobre a dolce vida fútil do café society até o grotesco da "lua oval da Esso" iluminando o beijo.



Rancho da Praça Onze: (Herivelto Martins) Composta para uma revista, em 1960, cinco anos depois viraria tema de Carnaval, na voz de Dalva de Oliveira



Marcha da Quarta-Feira de Cinzas (Carlos Lyra-Vinícius de Moraes) Do primeiro disco da Nara pela Elenco, do Aloísio de Oliveira. Talvez uma das mais conhecidas canções da dupla. A despeito de ter sido composta em 1963, virou uma metáfora das efemérides pós idos de março do ano seguinte.



Frevo nº 2 do Recife (Antônio Maria) Uma das grandes criações de Antônio Maria, aqui na versão de Maria Bethânia, provavelmente a melhor intérprete dessa marcha.



No Cordão da Saideira (Edu Lobo) Gravada no primeiro disco do MPB-4, é uma das melhores do disco. Assim como o Frevo nº 2 do Recife, a letra é extremamente nostálgica.



Rancho da Rosa Encarnada (Gilberto Gil-Geraldo Vandré-Torquato Neto) inscrita no I Festival da Excelsior, foi desclassificada mas depois gravada por Gil, no seu primeiro disco para a Philips, em 1966.



Porta-Estandarte (Geraldo Vandré-Fernando Lona) Em 1966, ela venceu o II Festival da Música Popular da TV Excelsior. Essa é a gravação original, uma marcha-rancho "de protesto" bem da época, da pena de Vandré, falando sobre "o dia que virá".



Máscara Negra (Zé Kéti) Dalva de Oliveira retornaria em 67 com Máscara Negra, música de Zé Kéti que, mesmo sendo um tema carnavalesco moderno, acabou incorporando-se ao cancioneiro do gênero. A despeito da letra grande, virou sucesso desde então, com sua metáfora de amores fugazes e não correspondidos e commedia del arte, tão caros à mitologia momesca.



Bandeira Branca (Max Nunes-Laércio Alves) O terceiro sucesso de Carnaval na voz de Dalva de Oliveira, e justamente numa época em que o gênero estava há anos em franca decadência como música comercial - remontando aos tempos da Era do Rádio, com Lamartine Babo, Nássara e Braguinha. Max Nunes e Laércio Alves compuseram aquele que foi o último sucesso carnavalesco. A gravação também seria o canto do cisne de Dalva, que morreria dois anos depois.



Noite dos Mascarados (Chico Buarque) No começo da carreira, Chico teve uma primeira tentativa em marcha-rancho com "Canção para uma Manhã de Sol", segundo ele, francamente inspirada em Marcha da Quarta-feira de Cinzas. Em 67, ele gravaria Noite dos Mascarados (com Odete Lara e o MPB-4), que seria a sua marcha.



Eu quero é Botar meu Bloco na Rua (Sérgio Sampaio), Lançada em 73, Sérgio fez um misto de toada com o refrão em tempo de marcha-rancho. Não vendeu nada na época. Porém, tornou-se uma espécie de hino do desbunde durante a repressão dos anos 70





* José Ramos Tinhorão, Pequena História da Música Popular Brasileira. São Paulo, 2013 (7ª edição)

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