Friday, May 15, 2015

Ensaio sobre a Cegueira


Aquiles (direita) e Pátroclo


Num trecho das Confissões, Santo Agostinho * critica Homero, ao se referir aos seus estudos de grego, ainda na juventude. Diz que o autor da Ilíada atribuiu qualidades divinas a seres corrompidos, para que os vícios não fossem considerados vícios e, para qualquer um que os cometesse desse a impressão de que imitava a deuses celestes, e não a homens corrompidos".

Dá para ver nesse trecho um exemplo do conflito entre a construção da visão cristã da época e uma visão do mundo pagão. Mas eu acho que isso é exatamente o que existe de mais interessante no poema. A caracterização dos deuses agindo quase como humanos e humanos morrendo com a dignidade de heróis imortais é o que existe de mais original no texto.

Em Homero nós ainda não vamos encontrar uma narrativa com uma análise psicológica dos personagens. Eles se constroem sob a luz do sol. O que os diginifica é a sua ação, pelo que falam (a oratória) e pelas armas. A reputação é a sua consciência maior. É curioso ver como o destino deles se delineia ao longo do poema. Volta e meia, eles se questionam a respeito da morte.

Eles vivem com a consciência da morte. Ela é a moldura da história. A Ilíada é o poema da morte. Essa nota sobre a condição humana é constante nos versos.

O personagem trágico se caracteriza por ser um ser que decai sozinho. Às vezes, não se levam em consideração o personagem trágico que decai junto com uma pá de gente, como na epopeia. Isso não quer dizer que não exista espaço para isso no gênero. E o que torna a Ilíada numa história genial é todo o mundo que é concebido dentro dos seus limites, com heróis e deuses e suas idiossincrasias. Por isso que é inconcebível uma Ilíada sem deuses (como nas versões para o cinema). Sem eles, o poema não se sustenta.

Os deuses agem de maneira pérfida. Dividem-se ao apoiar respectivamente gregos e troianos. Agem como inconsequentes. Zeus é o único que está acima do destino de todos. Sem que eles saibam, mesmo que procurem atrapalhá-lo, o deus dos deuses joga com sabedoria sobre suas expectativas. No fim, todos conspiram inconscientemente à favor dele. Hera e Artêmis se engalfinham; Atena parte Ares no meio. E por aí vai.

Agamênon é meio Brancaleone. Acha que, ao despachar Aquiles, logo no começo da história, pode vencer os troianos. Não consegue, e isso faz parte do plano de Zeus de mostrar aos gregos que eles são impotentes sem Aquiles. É instigado por um sonho divino a atacar, e mostra-se falível.

Aquiles foi um filho mimado que, ao perder o butim, confiscado por Agamênon, foi embora. Pede ajuda à mãe, que pede ajuda a Zeus. Note-se que foi o cúmulo de uma briga já antiga que acendeu o rastilho de pólvora que se tornou a briga entre o filho de Peleu e o pai de Orestes.

A Ilíada é delimitada, desde o primeiro verso, pela fúria de Aquiles. É esse o tema do poema. Mas parece que ela é guiada pela cegueira momentânea de três personagens. Cegueira, aqui, imaginemos algo próximo da hybris grega, uma pessoa cujo orgulho ou vaidade em sua respectiva posição lhe sobe à cabeça, mesmo que, de cabeça fresca, logo depois, pudesse ter plena noção do seu lugar. É quando cai o pano sobre a vista, num momento de fúria, de loucura, aquele momento em que a gente fala o que não deveria falar, sem se importar com as consequências. Isso é demasiadamente humano.

A consequência da briga dos dois é enorme. Em sua soberba, Agamênon acha que pode tudo sem Aquiles.

O personagens crescem ao longo do poema. Diomedes é fustigado por Agamênon. É considerado um bom orador, mas não havia provado sua virtude nas armas. Mais adiante, Mais adiante, o mesmo Agamênon se vê perdido na luta, sem saber o que fazer diante de um exército à frente de uma derrota iminente. Sugere que todos voltem à Grécia. Diomedes, que havia sido o maior guerreiro depois de Aquiles, que havia se retirado da luta, diz que quer ficar. O rei de Esparta acaba dobrando a língua, diante dos seus homens.

Agamênon não demonstra externamente, mas podemos supor que ele sentiu o golpe. Quer desculpar-se, ele aprendeu com seu erro. O problema é Aquiles. Nestor sugere uma missão conciliatória, com Ulisses, Ájax e Fênix, para pedir perdão. Ele quer restituir o butim confiscado do herói dos pés velozes, quer que ele volte, foi sem pensar...

Aquiles? agora que ele sabe que Zeus interfere por ele contra os gregos, a cegueira passa para ele. Ele diz não. Ele não vai voltar. Agora Nestor sabe que é o fim.

Vemos a cegueira de Aquiles quando os troianos chegam ao disparate de empurrar os gregos até a praia, quase queimando suas naus. Ele diz a Pátroclo: "agora quero ver eles rastejarem a meus pés!". Num último movimento, Nestor consegue convencer Aquiles através de Pátroclo, para que este lute com suas armas, em seu lugar. Ele consente mas esse é o engodo de Aquiles.

Pátroclo morre pelas mãos de Heitor, que rouba suas armas. Apenas isso seria capaz de fazer o filho de Peleu voltar às hostes gregas. O problema é que, agora, ele não cumpre a mesma missão de antes. Agora ele atua em nome da vingança contra Heitor. É um tropel sem freios, agindo apenas por conta própria.

Heitor é um personagem interessante. Ele vê a aflição de sua mulher e mãe como o arrimo de Tróia. Tem consciência de sua finitude, de que pode morrer na guerra. Ele é o personagem trágico por excelência. Mesmo sendo do "inimigo", ele é íntegro. Talvez seja o personagem principal da história, muito embora ela esteja presa à ira de Aquiles.

Pois o filho de Menelau é um homem exemplar. Um cidadão de bem, temente aos deuses e pagador dos seus impostos. Comanda os troianos com bravura. Não tem auxílio de ninguém (como Enéas, que é filho de Afrodite, ou Páris, que é beneficiado por ela). Porém no afã da luta, ele se esquece de que é um simples mortal. Parece igualar-se aos deuses. Sabe que os gregos vão saquear Tróia, destruir o Paládio e escravizar a população sobrevivente. Mas, depois de sentir o gosto da vitória iminente, ele também vira o Pateta no trânsito.

Agora, a cegueira cai sobre Heitor. No canto XVIII, Polidamante sugere que as hostes troianas voltem para a cidade. Lá, protegidos pelas muralhas, eles poderiam defender-se da ira de Aquiles. Heitor ri de Polidamente, e diz que quer ficar e encará-lo frente a frente. Para ele, a vitória é certa. Ele não sente medo, não mede as consequências (embora fustigado por Atena que, momentaneamente, o faz pensar dessa forma). O cego Heitor quer o embate final.

Aquiles, depois da morte de Pátroclo, ao contrário, está nu. A perda do amigo matou metade dele. Sua morte total se dará com a de Heitor, por suas mãos. Ele já tem consciência do movimento que fez, é irreversível, tudo caminha para o termo e o seu fim.

A cegueira de Agamênon deu a largada no episódio, que se passa em cerca de quarenta dias, antes da queda de Tróia. Ou seja, a Ilíada não conta o fim da cidade (por isso, não tem nenhum cavalo de pau na história, a despeito de muitos não leitores de Homero acharem isso).

Como se sabe, o 'limite' de Homero é a ira de Aquiles. As derrotas fazem com que ele restitua a razão. A bola passa para Aquiles, que goza com o sofrimento dos aqueus. Ele volta a si quando perde Pátroclo. Agora a bola passa para Heitor, que põs tudo a perder. Curiosamente, se formos ver bem, tudo seu deu dentro do plano de Zeus.

Tróia será destruída, como ele prometeu à Hera. Ele ajudou Tétis quando esta lhe pediu ajuda. Aquiles é que não soube medir as consequências do seu ato. O poema se desenrolou por conta dessa hybris, dessas três pequenas insânias, essas três cegueiras particulares que, como diz o Odorico Mendes na terrível tradução dele para o Português, "mandou tantos heróis para o Orco".


*As Confissões, I-XIV, São Paulo, Editora das Américas, 1964.

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