Monday, May 18, 2015

A Ipanema morreu






A Ipanema acabou. Ouvi ela desde o começo, nos anos 80. Até a última música, hoje de madrugada. Era um hábito. Naquele tempo, investia-se muito nesse tipo de mídia. Era o tempo das loucuras. O formato FM ainda era ligeiramente experimental, e permitia voos, como foi a Eldopop nos anos 70, e a Fluminense nos 80. Junto com a porto-alegrense Ipanema, era a rádio dos magros: ninguém dava nada para aquela magrinhagem com cara de roqueiro.

Mas eles mostraram que existia um público enorme numa cidade que saía do inverno cultural da ditadura e redescobria o rock. O mais interessante na Ipanema era aquele espírito de ir na contramão do esquema das gravadoras. Às vezes, alguém desencavava um Trio ou um Duruti Column, e aquilo virava sucesso, daqui a pouco aquilo virava uma febre sem jabá.

A Ipanema era aquela rádio que a gente chegava da escola (quando eu morava na Duque), do cinema ou da natação no Grêmio Nautico União, morto de sede de descer o Moinhos até a Independência até o centro, chegava na cozinha, pegava a garrafa d'água na geladeira, deitava na cama, ligava o reciever e deixava o som baixinho. Sempre tocava alguma coisa que a gente gostava de ouvir. Stones, Sabbath, Deep Purple, um bloquinho de Zombies na Hora do Rush.

Ou 5 da manhã, depois de encher a cara no Crocodilos, no Bambus ou no Ocidente, chegava doido em casa (eu fazia o percurso amigo punk, cortando a Redenção rumo ao Santana, onde eu morava) e curtia o fim da programação da madrugada com um Echoes do Pink Floyd.

Podiam dizer que era uma rádio de doidões, que a gente ouvia a Ipanema só para se drogar, ficava chapado (de fumar um baseado inteiro sozinho) por horas boiando com o corpo em decomposição mas o cérebro campereando campo afora na cama ouvindo Aqualung e percebendo nuances que a gente nunca tinha reparando antes, de cara.

O pessoal jovem não sabe mas, nos anos 80 (no tempo do Julinho), não tinha MTV, não tinha CD, não tinha dinheiro. A mesada não dava para comprar discos. A gente gravava tudo em fita. Enchia o saco da Kátia Suman ou do Nilo Cruz (que atendia a gente ele mesmo) para pedir a música tal ou para saber qual era o nome da música aquela.

A gente vivia os 80 e o pessoal de verde-oliva ainda mandava. Havia a censura nas rádios. Me lembro que Faroeste Caboclo, que tocava em todas as rádios do dial de Porto Alegre, era cortada no verso "olha prá cá, filha da puta, sem vergonha". Porém, enquanto todas as emissoras tocavam a versão interdita, a Ipanema rodava a original.

O mesmo acontecia com Nêga Bombom", dos Cascavelettes. Era mais uma auto-censura das outras rádios, temendo qualquer represália por parte dos verde-oliva. Mas a gente morria de rir ouvindo Menstruada nua e crua, nos 94.9, enquanto alguém me dizia: "por que esses caras não fazem músicas normais?".

A Ipanema foi uma escola quando a gente não entendia nada de rock, e não existia tevê a cabo, as revistas de música rareavam e não havia a internet. Lembro do Base Sonora, que a Kátia apresentava aos domingos, das sete às oito da noite, sempre com um disco na íntegra. Gravava muitos programas naquele tempo - final dos 80, fora o Clube do Ouvinte que, no fim das contas, era outra forma de conhecer uma banda nova. Me lembro de ouvir o Maggot Brain pela primeira vez naquele tempo.

Não tinha como achar o disco original. Coisas do Leonard Cohen, do Gentile Giant, Kinks, Hendrix, Funkadelic mal tinham saído em disco no Brasil. O que foi lançado, há anos estava fora de catálogo. Eu gravava o Base numa fitinha Basf e depois escrevia o nome do disco do programa.

Fora isso, a 94.9 surgiu e protagonizou uma época em que a cena local floresceu num misto de pós-punk shynthpop new wave rock, cujo paroxismo foi o disco Rock Garagem. Produzido pelo Ricardo Barão, ele seria a peça de resistência de um movimento que abriu espaço para um bando de artistas que, em sintonia com aquilo que acontecia na Vanguarda Paulistana e no Rio, iria ser chamada de BRock.

Era o tempo em que shows de conjuntos como Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, RPM e arredores lotavam ginásios, com gente até no lustre. A Ipanema, que até o começo, aos olhos de muitos, era um tiro na lua, atingiu o auge em termos de sintonia como a voz de uma geração. Uma zeitgeist que explique o que foram aqueles loucos anos 80 em Porto Alegre precisam colocar a Ipanema como a pedra angular daquele movimento.

Muita música a gente descobriu na Ipanema. Me lembro uma vez, numa madrugada insone e bêbada, depois de litros de vinho tinto no balcão da Lancheria do Parque, depois de um Echoes, dá um intervalo do operador e entra um som que eu liguei outro dia e fui pedir depois qual era, e me disseram que era "Sittin' on the Dock of the Bay", com o Otis Redding. Foi a primeira vez que eu ouvi o Otis, isso lá por 87.

Até porque isso era o rádio. Você podia estar numa festa hipster, na casa da namorada, no carro, no meio de uma sinuca ou no meio de uma suruba, vomitando vinho barato com a cabeça na privada de um banheiro de uns amigos numa república mas, se tem um aparelho de rádio, você podia perguntar docemente: "porra, bicho, posso escolher uma rádio, essa merda da Atlântida aqui não dá?". Botava na Ipanema baixinho e curtia o bode. Tinha sempre um consenso entre os amigos: "bota na Ipanema".

Ou passava a tarde estudando para a prova com a Ipanema baixinho, daqui a pouco, dava uma pausa, ouvia a Hora do Rush, para ver o que o Mauro ia pôr de especial - era discotecagem total, da melhor qualidade, escolhida a dedo, fora do esquemão das outras rádios, era a gente de walkman dando um soco no ar, como o Pelé, no meio da calçada cheia de gente, quando tocava aquela.

Joquim, nau da loucura no mar das ideias, quem nunca viajou torcendo ´por ele, ouvindo na Ipanema?

Fora a nostalgia: coisas que a gente torcia o nariz na época mas que, hoje, bate uma saudade insuportával. Inclusive as músicas mais chatas do Rock Garagem. Hoje, todas são boas. Zappa, Bowie, Charly Garcia, eu aprendi a ouvir na Ipanema.

Por trinta e dois anos, ela foi uma espécie de catalisador cultural do que foi a cultura bonfiniana da boemia bem vestida, da galera estudantil de Porto Alegre. Era a época do Deu prá Ti, anos 70, virada para os 80, quando o traveling dos verdes anos ia da esquina maldita para as bandas de cá da João Telles: o João, o Lola, a Lancheria do Parque, o território livre do Ocidente, os focos de resistência cultural do Berlim-Bonfim.

Uma cultura que hoje é atavismo, mas cuja resistência é provar que não ficou no passado.

A Band FM surgiu em 82, para sacudir o marasmo da cidade. Nasceu literalmente no centro daquela mudança - perto da Santa Terezinha, defronte do parque Farroupilha. Um ano depois, a Bandeirantes compraria a Difusora FM dos Associados, transformando a banda dos 94.9 na capital na Ipanema, uma aventura sem precedentes na história do rádio.


Lembro de uma vez que eu fui no Planeta Atlântida 98. Quando eu tava entrando na Saba, havia um pessoal distribuindo adesivos. Depois que eu passei na catraca, olhava para o adesivo e ria, ele dizia, com o característico logo: "Ipanema 94.9, a rádio do planeta". Achei o máximo. No quarto onde eu passava o verão (um bangalô em Imbé), colei o adesivo, me sentindo um pequeno enragé. Nós íamos às festas da oposição. Mas, éramos, militantes da Ipanema. O adesivo ficou colado por lá até hoje.

A Ipanema morreu. Longa vida à Ipanema.

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Fiz uma lista de músicas que são a cara da Ipanema, e que eu cresci ouvindo nos anos 80. Elas foram a guia musical de muita gente naquele tempo. Não tenho a pretensão fazer uma seleção definitiva (mandem músicas). Muitas delas têm a ver com a própria Ipanema, muitas eu ouvi pela primeira vez lá. A história da rádio está nas suas músicas e, por isso mesmo, nós somos parte dela. Todo mundo é filho da Ipanema.


A lista aceita acréscimos (por via de esquecimentos)


Nelson Coelho de Castro - Armadilha



Os Eles - Levaram Ele
Led Zeppelin - Kashmir
Zé Ramalho - Avôhai
David Bowie - Let's Dance
Garotos da Rua - Meu Coração não Suporta Mais
Replicantes - Festa Punk
Taranatiriça - Reverber
Frank Solari - Play That Rock
Bebeto Alves - Pegadas
Rolling Stones - You Can't Always Get What You Want
U2 - New Year's Day
Durutti Column - Jaqueline
Replicantes - Nicotina
Ira - Tolices



Lloyd Cole & The Commotions - Rattlesnakes
De Falla - Não me Mande Flores
Saracura - Nada Mais
Lobão e Os Ronaldos - Corações Psicodélicos
Jethro - Tull - Aqualung
Siouxsie & The Banshees - Cities In Dust
Echo and the Bunnymen - Lips Like Sugar
R.E.M. - Man on the Moon
The Jesus And Mary Chain - Psycho Candy
Arnaldo Baptista - Cê tá pensando que eu sou Lóki

Talking Heads - Psycho Killer
Vitor Ramil - Joquim



Love And Rockets - No New Tale To Tell
Deep Purple - Fireball
The Art of Noise - Peter Gunn
Fluxo - Nosso Amor Dançou
Caetano Veloso - Terra
TNT - Estou na Mão
Grand Funk Railroad - Some Kind of Wonderful
DeFalla - Instinto Sexual
George Thorogood - Bad To The Bone
Moreirinha E Seus Suspiram Blues - Expresso Blues
Rainbow - Stargazer
Graforréia Xilarmônica - Patê
Colarinhos Caóticos - Útero



Violeta de Outono - Declínio de Maio
Saracura - Nada mais
Barão Vermelho - Rock'n Geral
New Order - Blue Monday
Engenheiros do Hawaii - Por que Não
Orchestral Manoeuvres In The Dark - Pandora's Box
Legião Urbana - Por Enquanto
Júlio Reny - Cine Marabá
Bebeto Alves - Mais uma Canção
Devo - Peek-A-Boo
Taranatiriça - Rockinho
Nei Lisboa - Berlim Bonfim



The Human League - Heart Like A Wheel
Cazuza - Faz Parte do meu Show
Nenhum de Nós - People Are
Pink Floyd - Echoes
Nelson Coelho de Castro - Zé (Naquele Tempo do Julinho)
Graforréia Xilarmônica - Nunca Diga
Vitor Ramil - Joquim
Engenheiros do Hawaii - Segurança
Liverpool - Por Favor Suecesso
Talking Heads - Stop Making Sense
Os Cascavelletes - Menstruada



Bauhaus - Passion Of Lovers
Fito Paez - Dinosaurios
Nei Lisboa - Faxineira
Chuck Mangione - I've Never Missed Someone Before
Echo and the Bunnymen - The Killing Moon
Marisa Monte - Não quero Dinheiro
Creedance Clearwater Revival - I Heard it Through the Grapevine
Eric Clapton - Cocaine
Trio - Sunday you need Love Monday be Alone
Ry Cooder - Canción Mixteca
Jimi Hendrix Experience - Hey Joe
Júlio Reny - Amor e Morte
Nei Lisboa- Mônica Tricomônica
Cazuza - Um Trem para as Estrelas
Urubu Rei - Nêga
Raul Seixas - Al Capone
Paralamas do Suecsso - Selvagem?
The Cure - Push
Charly Garcia ´No me Dejem Salir
Bob Marley - Waiting in Vain
Bixo da Seda - O Trem .

6 comments:

Bruce-Y said...

algumas que poderiam estar nessa playlist também:

Midnight Oil - The Dead Heart

Love And Rockets - All In my Mind (acoustic)

Violeta de Outono - Outono

Violeta de Outono - Dia Eterno

Quiet Riot - Cum On Feel The Noize

Engenheiros do Hawaii - Segurança

Nei Lisboa - Paisagem Campestre

Gene Loves Jezebel - Desire

Echo & the Bunnymen - Rescue

The Cult - She Sells Sanctuary

Taranatiriça - Fazê Um Bolo

Jimi Hendrix - If Six Was Nine

Led Zeppelin - Going to California

Led Zeppelin - Down By The Seaside

Vange Leonel - Esse Mundo

Depeche Mode - Black Celebration

Pato Fu - O Processo de Criação vai de 10 Até 100 Mil

Pato Fu - O Mundo não está Pronto

Fábio Sidrack said...

Ae, tb fiz uma playlist colaborativa. Tem muita coisa em comum. https://open.spotify.com/user/fabiosidrack/playlist/3r5bx3XNSxavnRtWWYAUFu

Marcio Gerhardt said...

Esqueceu uma das que tocava diariamente na madrugada;
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0CCIQyCkwAA&url=http%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3DnUja5B8ei2U&ei=hWlgVcp1zLuCBLvLgPAO&usg=AFQjCNGMpn6-LJlW9qdNew3qOICeg5k4gg&sig2=xPWwe6pEfbhgq50HFqW7XA&bvm=bv.93990622,d.eXY

Marcelo said...

Bah tava na cabeça e eu esqueci, ela inclusive foi a última que tocou na rádio na meia-noite.

Anonymous said...

Parabéns pelo post. Eu não morava em Porto Alegre, estava do lado e a mil quilômetros para quem tinha entre 13 e 15 anos de idade. Mas foi a rádio que me ensinou a gostar de música. Segue a minha contribuição:

Ira - Mudança de comportamento
Julio Reny e Expresso Oriente - Não chores lola
Nei Lisboa - Verão em Calcutá
Replicantes - Sandina
De Fala - Its Fucking boring to Dead
Lou Reed - Walk on the wild side
Television - Marquee Moon
Frank Zappa - Watermelon on Easter Hay
The Clash - Police and Thieves
Pixies - Hey

Marcelo said...

Valeu, pessoal!