Thursday, January 02, 2014

Anunciação






E José, despertando do sono, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua mulher
Mateus, 1;24


Então eu sonhei que tu voltavas; tu eras aquela menina florida deusa dos olhos volúveis pousada na mão das ondas que eu conheci num dia de sol nascendo de uma concha como numa pintura renascentista e desde que te vi, deixei meus olhos sozinhos na soleira da tua porta. Tu dormias em tua alcova e eu tinha medo de te procurar, eu sabia que tu não gostavas de mim, tu que me dizia que eu era velho demais para você mas eu te acolhi com todo o amor de mortal, mas eu te amava e, no entanto era feliz. Eu tinha a eternidade ao meu lado, mas me sentia um tolo e ridículo e um velho apaixonado nos umbrais da morte, eu ia confessar meu sonho para ti e tu ias rir da minha cara, tu que não sabes ainda o que é amar como eu te amo. Eu te amo e tu sabes mas tu acha que eu não sei o que é amar e acho que nem tu sabes o que é amar. Eu posso não ser inteligente e esperto e talvez eu até diga para ti que eu sou meio tosco mas eu sei o que é amar. Porque o que eu sinto por você, todos os dias, todas as noites, todas as horas vazias, todos os dias perdidos da minha solidão, eu sempre penso em ti e isso só pode ser amor. No sonho, tu me conduzia pela rua - como naquela vez, lembra? - e eu fazia todas as tuas vontades, tu tão airosa e pueril e boba e linda como uma menina grande de vinte e poucos anos e te comprei até aquela camiseta com uma estampa do Che Guevara e tu me levaste na Banca 15 porque tu não conhecias ainda o sorvete da Banca 15 e eu sabia que tudo aquilo para ti era banal e fútil como uma tarde de dia de semana mas para mim você era o caminho, a verdade e a vida ou seja lá o que quer que seja. Mas eu sabia que não era para sempre e sabia que quando fôssemos embora daquela cidade todo o nosso caminho seria sagrado e tu serias bem-aventurada em todas as gerações, mas eu também sabia que era o fim e que tu irias me esquecer e tu iria voltar para o teu rincão e para os teus amigos bonitos e simpáticos e inteligentes e ia arrumar um namorado, ia noivar e ia se casar e eu ia ficar em meu catre sozinho sozinho olhando a distante estrela de Belém e imaginando se tu ainda pensarias em mim e nas palavras bonitas que eu te escrevi e nas canções que eu compus para ti e do meu jeito tolo, trêfego e triste de ser, pensava se tu ainda lembras de mim, que sobe no alto do monte e contempla a noite imaginando que aquela luzinha distante no horizonte noturno é você, lá na distância fria do horizonte, talvez ninando o seu filhinho pequeno em seu colo enquanto olhas pela janela, seu bambino que já deve ter esgotado todo o estoque de fraldas que você ganhou no chá, imagino que você é jovem, o menino vai crescer, você vai mudar, vai voltar para mim e eu estarei sempre a te esperar. Por que você quis ter esse filho, meu amor? Eu não posso competir com ele. Te espero mas já percebi, já vi que acabou. Sem que se mova o meu espanto na noite ancorada da minha solidão, mesmo sendo inútil, vou querer saber porque tudo o que eu quis de mais vivo me disse não. Tudo aqui parece secundário, na vida secundária de uma pessoa secundária de alguém que viveu um dia com você e que esteve em seus braços, eu beijando os teus lábios e os teus peitos que você agora dá de mamar, penso em você sorrindo e penso que estou envelhecendo e que você está envelhecendo e que tudo está envelhecendo e eu ficando cada vez mais assustado com o fato de que o tempo passou e prá você eu sou apenas uma vaquinha de presépio em sua vida, pego a longa e cansativa estrada de novo e vejo da janela do ônibus você com seu filho nos braços, um menino gentil, esperto, rosado e gordo, como os anjos e os cupidos que a arte nos representa em seus painéis, olhe como é bela essa criança que me insulta com seu sorriso banguela, enfim, adeus; vou-me embora, meu amor. Por que as coisas são assim, não é? A verdade é que posso dizer que, sem saber, me encontrei em você completamente e isso me enriqueceu. O que tinha de ser. O Purgatório não é uma porta que se abre para o Céu? Enfim, vou te deixar e te esquecer para sempre, porque eu não tenho nada a ver com a sua vida.

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