E
José, despertando do sono, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e
recebeu sua mulher
Mateus,
1;24
Então
eu sonhei que tu voltavas; tu eras aquela menina florida deusa dos
olhos volúveis pousada na mão das ondas que eu conheci num dia de
sol nascendo de uma concha como numa pintura renascentista e desde
que te vi, deixei meus olhos sozinhos na soleira da tua porta. Tu
dormias em tua alcova e eu tinha medo de te procurar, eu sabia que tu
não gostavas de mim, tu que me dizia que eu era velho demais para
você mas eu te acolhi com todo o amor de mortal, mas eu te amava e,
no entanto era feliz. Eu tinha a eternidade ao meu lado, mas me
sentia um tolo e ridículo e um velho apaixonado nos umbrais da
morte, eu ia confessar meu sonho para ti e tu ias rir da minha cara,
tu que não sabes ainda o que é amar como eu te amo. Eu te amo e tu
sabes mas tu acha que eu não sei o que é amar e acho que nem tu
sabes o que é amar. Eu posso não ser inteligente e esperto e talvez
eu até diga para ti que eu sou meio tosco mas eu sei o que é amar.
Porque o que eu sinto por você, todos os dias, todas as noites,
todas as horas vazias, todos os dias perdidos da minha solidão, eu
sempre penso em ti e isso só pode ser amor. No sonho, tu me conduzia
pela rua - como naquela vez, lembra? - e eu fazia todas as tuas
vontades, tu tão airosa e pueril e boba e linda como uma menina
grande de vinte e poucos anos e te comprei até aquela camiseta com
uma estampa do Che Guevara e tu me levaste na Banca 15 porque tu não
conhecias ainda o sorvete da Banca 15 e eu sabia que tudo aquilo para
ti era banal e fútil como uma tarde de dia de semana mas para mim
você era o caminho, a verdade e a vida ou seja lá o que quer que
seja. Mas eu sabia que não era para sempre e sabia que quando
fôssemos embora daquela cidade todo o nosso caminho seria sagrado e
tu serias bem-aventurada em todas as gerações, mas eu também sabia
que era o fim e que tu irias me esquecer e tu iria voltar para o teu
rincão e para os teus amigos bonitos e simpáticos e inteligentes e
ia arrumar um namorado, ia noivar e ia se casar e eu ia ficar em meu
catre sozinho sozinho olhando a distante estrela de Belém e
imaginando se tu ainda pensarias em mim e nas palavras bonitas que eu
te escrevi e nas canções que eu compus para ti e do meu jeito tolo,
trêfego e triste de ser, pensava se tu ainda lembras de mim, que
sobe no alto do monte e contempla a noite imaginando que aquela
luzinha distante no horizonte noturno é você, lá na distância
fria do horizonte, talvez ninando o seu filhinho pequeno em seu colo
enquanto olhas pela janela, seu bambino que já deve ter esgotado
todo o estoque de fraldas que você ganhou no chá, imagino que você
é jovem, o menino vai crescer, você vai mudar, vai voltar para mim
e eu estarei sempre a te esperar. Por que você quis ter esse filho,
meu amor? Eu não posso competir com ele. Te espero mas já percebi,
já vi que acabou. Sem que se mova o meu espanto na noite ancorada da
minha solidão, mesmo sendo inútil, vou querer saber porque tudo o
que eu quis de mais vivo me disse não. Tudo aqui parece secundário,
na vida secundária de uma pessoa secundária de alguém que viveu um
dia com você e que esteve em seus braços, eu beijando os teus
lábios e os teus peitos que você agora dá de mamar, penso em você
sorrindo e penso que estou envelhecendo e que você está
envelhecendo e que tudo está envelhecendo e eu ficando cada vez mais
assustado com o fato de que o tempo passou e prá você eu sou apenas
uma vaquinha de presépio em sua vida, pego a longa e cansativa
estrada de novo e vejo da janela do ônibus você com seu filho nos
braços, um menino gentil, esperto, rosado e gordo, como os anjos e
os cupidos que a arte nos representa em seus painéis, olhe como é
bela essa criança que me insulta com seu sorriso banguela, enfim,
adeus; vou-me embora, meu amor. Por que as coisas são assim, não é?
A verdade é que posso dizer que, sem saber, me encontrei em você
completamente e isso me enriqueceu. O que tinha de ser. O Purgatório
não é uma porta que se abre para o Céu? Enfim, vou te deixar e te
esquecer para sempre, porque eu não tenho nada a ver com a sua vida.
No comments:
Post a Comment