Wednesday, January 19, 2011

Três Apitos *


A antiga Confiança, hoje um supermercado


Nos seus tempos de estudante de Medicina, em 1931, Noel Rosa estava dividido entre dois amores. De um lado, Clara, a Clarinha, de Vila Isabel, que se dava com a mãe do poeta, e era vizinha do jovem sambista. Ela e Noel tinham um relacionamento de quatro anos, mas a cada ano, ela tinha cada vez mais dúvidas com relação aos reais sentimentos dele. Ela sabia de uma outra menina de quem o poeta gostava — Josefina. O curioso é que, sempre que achava que tudo estava perdido entre os dois, a jovem tinha o apoio de alguma irmã, que lhe inspirava confiança.

Enquanto a relação com Clarinha era do tipo “namorou, é pra casar”, Josefina não lhe exercia qualquer pressão. Mas Josefina era a mais ciumenta das duas, e não gostava dos famosos “sumiços” do compositor pelo Rio de Janeiro. Enquanto Clara suportava o poeta com uma paciência de Jó, Fina ameaçava quebrar o violão de Noel se não se explicar. Fina e Noel faziam cena, mas se gostam.

Viramundo — Um dia, dona Iracema, a mãe de Fina, decidiu que todas deviam trabalhar. Ela e sua irmã, Bazinha, se empregaram em fábricas do Andaraí. A primeira, na Hachiya, indústria de botões, e a segunda, em numa fábrica de tecidos, a América Fabril — então, uma das mais importantes da velha Capital Federal.

Constrangida com o emprego e com medo da marcação cerrada do Poeta da Vila, Josefina pediu aos seus familiares que não revelassem ao namorado o seu local de trabalho — até porque ela gostava de se sentir livre. Mas Noel era implacável: agora ele tinha comprado um carro, um velho Chandler preto, que apelidou com o singelo nome de Viramundo.

Na verdade, o automóvel foi uma aquisição interessante. Para quem não sabe, além de cantor, Francisco Alves era agenciador de veículos. Aliás, o “Rei da Voz” foi o primeiro marqueteiro da nossa música. Como a parceria dele com a insuperável dupla Ismael Silva-Nílton Bastos (“Adeus”, “Se Você Jurar”) havia acabado, ele decidiu “alugar” Noel por uns tempos. Para tanto, o poeta assinaria um contrato segundo o qual teria que pagar as prestações do Chandler em... sambas fresquinhos!

Cada samba composto era apresentado a Chico Viola, que abatia as prestações como promissórias. Agora, com o calhambeque, Noel podia estar mais perto de Fina. Só faltava descobrir em qual fábrica ela trabalha.

Um dia, andando pelo Andaraí e suspirando debruçado sobre o volante do Viramundo, ele encontrou a jovem na multidão, caminhando como se corresse contra o tempo, na hora do almoço com a marmita debaixo do braço, próxima à entrada da Companhia América. Sem saber que Fina levava a marmita para Bazinha, ele concluiu que sua musa trabalhava na tal fábrica de tecidos.

A partir de então, o poeta bateu ponto diariamente ali, no fim do expediente. Em seus arroubos apaixonados, Noel parecia ouvir silvos de um apito de fábrica. Na verdade, não eram nem da Hachiya, nem da América, mas sim da Confiança (de propriedade do pai de João de Barro, o Braguinha, amigo de Noel e parceiro musical em “As Pastorinhas”), que ficava perto da casa do compositor, em Vila Isabel. E foi com o silvo matinal da fábrica que o apaixonado sambista compôs uma de suas mais belas composições, “Três Apitos”:

Quando o apito
Da fábrica de tecido
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda
Sem dúvida bem zangada
Ou está interessada em fingir que não me vê
Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Por que não atende ao grito
Tão aflito
Da buzina
Do meu carro?



Na verdade, o som do apito é licença poética de Noel, que utiliza o estrépito para enfeixar em sua memória a lembrança da amada sempre que o som “vem ferir os seus ouvidos”. Segundo Carlos Didier e João Máximo, biógrafos do compositor, a confusão toda se deve ao fato de que ele achava que Fina trabalhava na América, e ainda incluiu o apito da Confiança. Como muitos associavam a fábrica pelo toque do apito, pensava-se (e pensa-se) que ela trabalhava na Confiança.

O caminho entre a casa de Josefina e Bazinha e a fábrica era longo, o que obrigava as duas a madrugarem para chegar a tempo no trabalho. Elas percorriam todo o percurso juntas, às cinco da manhã, e às cinco da tarde, quando Fina voltava sozinha. Para um trabalho simples, elas usavam roupas simples, sapatos de salto baixo e sem meias — detalhe que não passou desapercebido a Noel, que as via passar, com os olhos cerrados sob o chapéu, observando de longe e quase incógnito, dentro daquele carro velho e com a pintura descascada, o longo e tortuoso passeio que sua namorada fazia de casa até o trabalho.

Ele se enterneceu de vê-la tentando esconder dele que a jovem trabalhava numa reles fábrica de botões de osso e madrepérola e a entendeu. E escreveu:

Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho
Não faz fé com agasalho
Nem no frio você crê
Mas você é mesmo
Artigo que não se imita
Quando a fábrica apita
Faz réclame de você



Poeta Soturno — Mais aflito do que o grito da buzina do Viramundo era Noel, ao ver Fina desacompanhada e quase sempre à mercê do assédio de um certo contramestre da fábrica, Jerônimo da Encarnação, que sempre tentava puxar conversa com a moça. Noel tanto insistiu com a jovem que ela finalmente cedeu, e contou onde trabalhava. Então ele se deu conta do engano. Era na Hachiya e não na América!
Aqui, ele anotou mais quatro versos ao samba:

Nos meus olhos você lê
Como eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente
Impertinente
Que dá ordens
A você


O contramestre cercava Josefina com indisfarçada insistência, com propostas e galanteios. Ela se esquivava, apontava para aquele calhambeque parado longe, no outro lado da esquina, e dizia ao homem: “Olha lá o seu poetinha. Ele está te esperando...”. Era Noel, o “malandro medroso”, mas sempre vigilante e quase incógnito, cuidando os passos da menina em marcação cerrada, por detrás do volante do seu inefável Chandler.

Sou do sereno
Poeta muito soturno
Vou virar guarda-noturno
E você sabe por quê
Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Esses versos pra você.



No fim, ele permaneceu no equívoco em favor da rima pano/piano, já que ela fazia botões. Porém, mesmo com tanta confusão, o certo é que “Três Apitos” foi dedicada a Josefina. Noel Rosa revelou, em 1936, que este samba resumia o “romance mais sincero de minha vida gloriosamente romântica”.



Ele diz “que outra operária de fábrica se encaixaria nesta canção”. O dado curioso sobre “Três Apitos” é que, talvez por ser confessional demais (ou romântica demais. Ou confusa demais), Noel resolveu pôr defeitos na canção. Mesmo com achados poéticos diversos (até para uma época em que o gênero samba ainda lutava para se livrar de versos simplórios), o poeta acreditava justamente o contrário. Já o piano em questão também era mais uma licença poética de Noel, que como “pianeiro”, era um grande violonista.

Por conta do “desprezo” do poeta por “Três Apitos”, ela permaneceu inédita por muitos anos. Chegou a ser gravada na época em acetato por Orlando Silva (verdadeiro achado, catalogado na coletânea Noel Rosa — O Poeta da Vila, da gravadora Revivendo) em 1936, mas com versos a menos. A primeira versão “oficial” ocorreria apenas em 1951, na voz de Aracy de Almeida — cantora para quem ele dedicou a música, na época. Localizada por uma emissora de TV em 1984, Josefina disse: "Noel para mim fez apenas o 'Três Apitos', apesar de, em um dia de pileque, ter dito que eu tinha um riso de criança" (“Riso de Criança” era outra composição do Poeta, também supostamente inspirada por Fina). Aracy, que teve a primazia de levar o nostálgico samba em disco, revelou:

— Noel fez esse samba na Taberna da Glória, na hora, e me deu. Foi para mim que ele fez esse samba. Ele também fez música para mim.

Contudo, para alguns críticos, a mais bela versão de “Três Apitos” é a de Maria Bethânia, gravada em 1965, com Rosinha de Valença ao violão, em estilo intimista, bem como pede a letra.

Mas, e quanto aos tais três apitos? O maestro Homero Dornellas (aquele que botou na pauta o primeiro sucesso de Noel, “Com que Roupa?”, já que o compositor não sabia ler música), contou que, ao invés de três, a fábrica apitava nove vezes ao dia. Carlos Didier e João Máximo explicam: certamente que o título se refere aos que a Confiança soava pela manhã.

O primeiro, às quinze para as seis, para acordar os operários da redondeza. O segundo, às sete, o mais longo, que marcava a hora da entrada. E o terceiro às quinze para as oito, para os retardatários...



* Texto publicado originalmente por este escriba em 2004. Sinceros agradecimentos ao Museu da Canção (http://museudacancao.multiply.com) que o reproduziu: eu já não tinha mais o original...

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