Wednesday, January 12, 2011

Ficha Suja

Para fins de uma possível admissão, o RH me solicitou que eu retirasse no Tudo Fácil (aquele serviço de atendimento integrado do governo estadual, prá quem não sabe) um atestado de bons antecedentes. Eu nunca tinha feito nada disso antes. Aliás, eu nem sabia que existia esse tipo de coisa.


E lá fui eu. Não entendo nada desse tipo de coisa. O que me ocorreu durante o trajeto do RH até o posto de atendimento foi: será que eles sabem alguma coisa que eu fiz e que eu acho que tenha permanecido encoberto, obscuro, apócrifo?

E se eles na verdade eles sabem de tudo o que eu sei e eu não sei que eles sabem e nem desconfio, sei lá? Se porventura sabem de todos os meus pensamentos, de todas as coisas sórdidas que eu tenha feito? Eu acho que não fiz nada — não deva ter feito nada que ficasse registrado em alguma coisa. Claro que, a rigor, toda a minha incúria estava em jogo: não sei como se verificava esse tipo de coisa. Mas é aquela coisa: nunca se sabe...

Fui atrás da tal fila. Cheguei lá, quase não tinha fila. Tinha só duas pessoas na minha frente.

Vi o rapaz quando chegou a minha vez e entreguei-lhe a minha cédula de identidade. "Não leva muito tempo", assegurou-me a moça do Recursos Humanos. Eu: "bom, tudo bem".

De fato, o expediente era simples: o rapaz lia o número do registro, digitava no teclado e aparecia o tal documento para impressão. Ele clicava o Ctrl+p e mandava para a impressora.

O cara da frente não levou mais de um minuto para pegar o atestado dele. O outro também. Chegou a minha vez.

O rapaz pegou a minha identidade, leu o RG, digitou o número. Ficou estatelado olhando para a tela — que, com efeito, estava contra mim. Absorto, ele começou a fazer uma aterradora cara de estupefação.

Eu fiquei apreensivo. Meu Deus, o que diz ali? Ele parecia correr a vista em alguma coisa pavorosamente extensa. Esbugalhava os olhos, batia a Bic ritimadamente na mesa. Levou a mão ao rosto: pelos olhos dele, ele lia algo enorme, algo estarrecedor, sabe-se lá o quê. Mandou para a impressora.

Foi-se a primeira folha. Mais uma, outra mais. Eu achando que era só uma folha, quando eu comecei a contar a partir da quarta, fiquei silenciosamente desesperado. O que tem ali de mim, meu Deus? Puta que pariu. Queria um emprego e vou para a cadeia? Maldita hora! Prá quê eu fui pedir um atestado de bons atnecedentes? O c ara tá é imprimindo a minha ficha corrida no crime!

Me lembrei de atraques no Bomfim, em balbúrdias em balneários, numa vez que eu arranquei um cavalete na Mauá, outra que eu mijei na cabine telefônica, caramba, eles descobriram tudo, estou perdido! Me lembrei da vez que a Brigada me parou no meioi da rua em frente à Rodoviária de Capão da Canoa porque eu estava podre de bêbado brincando de guarda de trânsito. Eles me recolheram e me mandaram para a emergência. Meu Deus Nosso Senhor, eles sabem de tudo de mim, tudo, tudo!

Já tava na décima quinta (ou décima sexta. Ou sétima. Sei lá) folha e eu imaginando dois Pedro e Paulo imaginários me pegando pelo braço ali mesmo na fila do Tudo Fácil direto para um saia-e-blusa da Salgado Filho direto para a Área Judiciária! Já sei! Foi tudo uma cilada! O pessoal do RH orquestrou tudo isso para que eu fosse preso, eles estão dentro da conspiração contra mim!

— Tô fudido... — gemi em surdina.

— O que o senhor disse? — perguntou o rapaz.

— Eu? Nada — ri amareladamente. — É que são quase duas e meia e eu vou perder o Vale a Pena Ver de Novo! — despistei.

— Ah.

A impressão terminou. O cara pegou o maço de papel, emparelhou-as na mesa, grampeou e — surprendentemente — chamou um outro funcionário. Eu já estava com as mãos crispadas no balcão, a típica imagem do desespero.

Veio o outro cara. O balconista pegou as folhas e deu para ele:

— Taqui as tablaturas do Pantera que tu me pediste.

Eu: hein? Olho de soslaio para a impressora, ela ejeta uma singela e solitária folha de papel. O rapaz pega ela com delicadeza, aponta para mim e diz:

— Aqui está senhor.

Ato reflexo, eu peguei com violência o papel das maos dele e corro a vista: Cosntatamos que o senhor fulano de tal está etc. Não tinha nada!

Fui embora lívido, nem agradeci ao pobre diabo. Quando eu desci as escadas até a Borges e ganhei a rua, respirei fundo.


Eu era um novo homem.

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