Monday, January 10, 2011

O Jogo do Século

A "Barriga" é um jargão do jornalismo para designar deslizes cometidos por repórteres e jornais quando eles não checam uma informação e acabam franqueando uma pseudonotícia. Ou quando divulgam uma notícia como certa antes do tempo — na ânsia de ter a primazia do fato consumado e levam um capote das ciscunstâncias.

Poderia citar dois exemplos recentes: em julho do ano passado, a imprensa deu como certo o nome do Muricy Ramalho na Seleção. Saiu reportagem, perfil, primeira página para o Muricy, que jamais iria negar o convite — e negou.

O outro exemplo — o do sábado passado — bom, deixa para lá.

Ao invés de citar o mais recente, vou recordar a mais clássica das barrigas jornalísticas da imprensa gaúcha de todos os tempos — conhecida como O Jogo do Século.


Na tarde do dia 23 de junho de 1972, um conhecido jornal de Porto Alegre recebia um curioso e instigante telex.

ATENÇÃO DIRETORIA DE ESPORTES DE ZERO HORA. AQUI É DA TRIBUNA DO ESPORTE, DE SALVADOR, BAHIA. GOSTARÍAMOS DE SABER SE TEM FUNDAMENTO A NOTÍCIA DE QUE A SELEÇÃO DA CONCACAF VAI JOGAR CONTRA O FORTES E LIVRES DA CIDADE DE MUÇUM, CAMPEAN DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL. FIZEMOS ESCUTA NA RADIO BANDEIRANTES E ESTA NOTÍCIA FOI DIVULGADA. EIS O TELEGRAMA:

Salvador (Sucursal) Depois de encerrar a sua participação na Mini Copa, promovida pela CBD, a Seleção da Concacaf (N.E: Confederação de Futebol da América Central) prepara-se agora para uma série de jogos amistosos no território nacional. A primeira partida, segundo os dirigentes da delegação, será realizada na até agora desconhecida cidade de Muçum, no Rio Grande do Sul, "numa homenagem dos povos do Caribe àquela cidade irmã, uma vez que temos em nossas ilhas uma localidade chamada "Muzzum". No Rio Grande do Sul, a Seleção da Concacaf enfrentará a equipe do "Fortes e Livres", de Muçum, e a renda será destinada a instituições beneficentes. Mesmo assim, a Seleção do Caribe receberá uma quota de 5 mil Dólares.


LIGAREMOS MAIS TARDE A FIM DE SABER A RESPOSTA. GRATOS, LUIZ CARLOS MAIA - EDITOR DE ESPORTES.


Ao tomar ciência da história, o jornal tratou de destacar repórteres para entrevistar o presidente do Fortes e Livres, que também era o prefeito da cidade, localizada a 52 quilômetros de Porto Alegre. Ao saber da boa nova relatada pelo jornalista, o homem aceitou o convite, incontinente. Embalado pela espectativa, a Zero Hora berrava, na capa: "MUÇUM ACEITA JOGAR COM CONCACAF". A matéria terminava assim: "O prefeito de Muçum já telegrafou ao diretor de futebol da CBD (antiga CBF, para quem não sabe), Antônio do Passo, confirmando o interesse pelo Fortes e Livres em disputar uma ou duas partidas amistosas com a Seleção do Caribe, atualmente na Bahia participando dos jogos classificatórios da Taça Independência...".

O Estado de São Paulo da mesma data, por sua vez, detalhava a história sobre o telegrama e a CBD: "pedindo sua intercessão junto ao caso e explicando que os centro-americanos não recusarão o convite, porque deverão jogar na cidade onde o nome é idêntico ao de uma cidade do Caribe, de onde três dirigentes são naturais..."

Dia 24, mais um telex aparecia. Dessa vez, na redação da Folha da Tarde:

BOM DIA. PRECISAMOS DE UM FAVOR AÍ DOS AMIGOS DA CALDAS JÚNIOR. FICAMOS SABENDO AQUI NA BOA TERRA QUE A SELEÇÃO DA CONCACAF ESTARÁ NO RIO GRANDE DO SUL NA PRÓXIMA SEMANA PARA JOGAR CONTRA O CAMPEÃO DO INTERIOR DO ESTADO, FORTES E LIVRES DA CIDADE DE MUÇUM. A INFORMAÇÃO FOI TRANSMITIDA ONTEM POR UM REPÓRTER DE UMA EMISSORA CARIOCA QUE ENTREVISTOU O SENHOR ANTÔNIO DO PASSO. ELE RECEBEU TELEGRAMA DESSA CIDADE GAÚCHA PEDINDO PERMISSÃO PARA O JOGO E FICOU TUDO ACERTADO. PRECIDAMOS SABER ALGUMA COISDA AÍ DOS AMIGOS DA 'FÔLHA DA TARDE', POIS QUEREMOS FAZER UMA BOA MATÉRIA COM A SELEÇÃO DA CONCACAF UMA VEZ QUE O FATO ABRE UM PRECEDENTE NO ESQUEMA DA CBD.

CARLOS RICARDO, EDITOR DE ESPORTES DO JORNAL 'TRIBUNA DO ESPORTE', SALVADOR, BAHIA.

No outro dia, José Inácio Werneck (que hoje trabalha na Gazeta Esportiva), então no Jornal do Brasil, comentou o fato em sua coluna diária: 'o prefeito de Fortes e Livres de Muçum existe. É um time de futebol. De Muçum, no Rio Grande do Sul. Acaba de convidar a Concacaf para um amistoso. A idéia do prefeito, que justificou a iniciativa dizendo haver na Nacarágua uma cidade com o nome de Muzzum. Como se vê, uma trágica coincidência. Mas, senhor prefeito, que culpa tema torcida? A homofonia não devia dar à Concacaf e ao Fortes e Livres o direito de conspirar contra a bola. Eles não são da bola e nem a bola é deles. A bola, há muitos anos, é de Pelé'.

A 'Folha' do dia 26 de junho complementava o telegrama da CBD, e repercutia a goleada sofrida que o Fortes e Livres havia tomado, após cair de quatro diante do Guarani de Garibaldi, pela Copa Governador do Estado. Já Zero Hora destacava uma página inteira com o presidente do afortunado clube, que à estas alturas, já ganhara destaque nacional. A matéria, intitulada 'O SONHO DE UM PREFEITO, VER A CONCACAF EM MUÇUM', ainda documentava reprodução do fonograma urgente remetido pela Federação Gaúcha de Futebol (FGF), à época presidida por Rubens Hoffmeister, ao Fortes e Livres, onde se garantia a cota de US$ 5 mil e o custeio de todas as despesas do clube por parte da entidade. Ao ser interpelado sobre aquele que seria o 'jogo do Século', o presidente anunciava melhoramentos no estádio do Fortes e Livres, incluindo gramado e novas arquibancadas

— Será uma recepção que eles jamais esquecerão — garantia.

Já o diretor de futebol do Fortes, mesmo a despeito da goleada sofrida pelo Rio-Grandense, semanas antes, polemizava:

— Talvez a gente não ganhe o jogo, mas posso adiantar tranqüilamente que iremos complicar — desafiava, orgulhoso de seu exuberante escrete. — O time nunca esteve em tão boa situação como agora.

No fim da entrevista, o prefeito de Muçum, que já fazia correr um livro de ouro angariando verba para a reforma do 'fortim' do Fortes, contabilizava:

— É possível que a gente receba deles um convite para realizar uma gira pelos países da América Central. Isto acontecendo, e se tivermos todas as nossas despesas pagas, é bem provável que a gente aceite.

Foi quando a diretoria do Fortes e Livres recebeu ligação de um jornal paulistano pedindo a confirmação do jogo. Em seguida, a FGF despachou telegrama ao clube de Muçum, avisando que a CBF, na figura de Antônio do Passo, iria tratar pessoalmente da questão, e que tudo era apenas questão de tempo.

No outro dia, a coluna Sem Pulo da Folha avisava:

VERBA

Se depender da Câmara Municipal de Muçum, sai mesmo o jogo entre a Concacaf e Fortes e Livres. Foi aprovada a verba necessária para trazer a seleção da América Central.

A edição do dia 27 do pelotense Diário Popular, também se referia ao jogo e aproveitava para dar uma corneteada no time: "assim, pode ser que a Seleção do Caribe saia do Brasil com uma vitória, porque na Minicopa ela só perdeu". No mesmo dia, o carioca Correio da Manhã trombeteava que só faltaria decidir a data do "Jogo do Século".

E confirmava: "A Federação Gaúcha de Futebol está tratando de todos os detalhes do jogo e pagará todas as despesas da vinda da seleção, mais a cota de US$ 5 mil".

Na manhã de 28 de junho de 1973, a Zero Hora mancheteia: "FEDERAÇÃO NEGA JOGO DA CONCACAF E FORTES E LIVRES NA CIDADE DE MUÇUM".

A matéria explicou: primeiro o supervisor pensou que fosse gozação e procurou dentre os fonogramas que a Federação enviou e não encontrou nenhum dirigido ao Fortes e Livres. Resolveu então telefonar para Antônio do Passo da CBD, que nada sabia da partida e até indicou o secretário de futebol, Abílio de Almeida, para tratar do assunto. O prefeito de Muçum e presidente do clube já havia enviado telegrama à CBD pedindo conformação das datas.

Depois de tudo, e da explicação de que o Fortes estava já encaminhando as reformas do estádio para receber a Concacaf, foi difícil convencer os dirigentes do clube que os fonogramas eram falsos e que os telefonemas que ele havia recebido eram trotes. Colérico, o prefeito foi à Porto Alegre tratar pessoalmente do assunto. Já o supervisor da Federação avisou que a brincadeira já havia ido "longe demais", até porque haviam inclusive falsificado a sua assinatura.

Também solicitou à CRT (ex- Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações, hoje Brasil Telecom) que tentasse descobrir a origem dos fonogramas, a fim de que se tomassem as devidas providências.

O Sem Pulo do dia 30 dizia:

PREFEITO

E para complicar mais a situação de [Rubens] Hoffmeister a CRT forneceu o número que solicitou o fonograma com trote. O número é 24.87.33, telefone da Federação Gaúcha de Futebol. Por causa disso, o prefeito de Muçum anunciou ontem que processará a entidade.

Pressionado pela oposição de sua cidade, o cartola-edil até contratou advogado para acionar os autores da brincadeira, movendo ação na Justiça Civil da cidade. Enquanto isso, sucediam-se notícias e comentários. MUÇUM NÃO QUER MAIS JOGAR COM A CONCACAF¿, ¿FORTES E LIVRES NÃO ADMITE BRINCADEIRAS COM SEU NOME". Na charge da Zero Hora de 26 de junho, um repórter pergunta: "prefeito, e o jogo contra a Concacaf?". Ao que o homem responde: ¿se eles não aceitarem o desafio, eu vou convidar o Igrejinha".

As notas que haviam sido enviadas por uma fonte um tanto obscura ganharam tamanho corpo e repercussão na sociedade esportiva gaúcha que o anti-clímax foi inefável. Isso sem falar na imprensa regional, que embarcou bonitaço na potoca. Se os editores não sabiam onde se enfiar, de tanta vergonha por ostentar tamanha barriga (no jargão jornalístico, significa plantar notícia), o que dizer do pobre prefeito-cartola, que não sabia o que falar para a sua população, sobre o "Jogo do Século", que aconteceu por não ter acontecido? E se a oposição usasse esta mancada nas próximas eleições?


Tempos depois é que se soube: esse trote — que marcou época foi criado por tres jovens repórteres, que utilzaram a sucursal porto-alegrense de O Estado de São Paulo, então pioneira em operar por telex, novidade nesses pagos, naquela época, para despachar a insubmersível "barriga".

De qualquer maneira, estiver realmente interessado nessa surreal, rocambolesca e estapafúrdia história sem fim pode perguntar (segundo o falecido Renato Maciel de Sá Júnior) ao Rogério Mendelski, ao Roberto Appel e ao Antônio Pinheiro Machado onde raios fica aquela tal cidade de Muzzum, nas Antilhas....

2 comments:

Nildo Junior said...

Pô, Marcelo, pensei que tu ias falar da barriga que a ZH deu na semana passada, quando anunciou o acerto do Ronaldinho com o Grêmio. Agora, estão todos achando que o Grêmio perderia se fizesse o acordo com o jogador.

Marcelo said...

Calma, estou esperando a assinatura do contrato...