Wednesday, October 07, 2020

A Grande Liquidação


Eu seguido leio matérias ou artigos (CINCO RAZÕES...2019) falando a respeito do fim do CD. Acho que muito dessa visão mais parece discurso de colecionador de discos em formato digital. Pelo menos, para mim que, longe de ser tecnófilo da era do streaming, o CD morreu há muito tempo atrás. Na verdade, no caso do Brasil, este país aqui, sua implantação se deu de uma forma peculiar, e fala mais do que era o mercado fonográfico na época da sua, vamos dizer assim, implantação.

Recordo a primeira vez que ouvi música em formato digital. Foi lá por 1988 ou 89. Eu tinha ido levar meu toca-discos, um DDS-99 da Gadiente no conserto. Enquanto esperava o atendimento, parado no balcão, notei que havia um som ambiente, algo como uma abertura de ópera do Mozart. Intrigado, porque não parecia som de rádio (nenhuma FM tocaria aquilo e naquela hora da tarde por exemplo) . Até que perguntei o que era aquilo e a atendente parou o equipamento na minha frente, e abriu a portinha. Então saiu o disco dourado, com aquele selo amarelo característico da Deutsche Grammofon.

Era um CD, o som era incrível, fresco, como se eu estivesse ouvindo o suco de uma audição ao vivo, com todos os detalhes. Semanas depois, com o meu toca-discos em casa, notei que Haia uma distância enorme em termos de definição e e sensibilidade da forma como se poderia equalizar o som de um vinil e de um CD. Na época, as próprias rádios estavam passando para o digital e ainda avisavam: ouça isso no mais puro som digital, etc. Ao comparar o som do rádio com a mesma música no vinil, a diferença era da água para o vinho. Tanto que eu comecei a realmente ficar frustrado com isso. E naturalmente fui convencido pelos fatos de que o futuro era o compact-disc. De fato, a nova tecnologia se vendia dessa forma: o CD era indestrutível, o arquivo ficava intecto por anos, não sofreria com o desgaste do tempo em razão do armazenamento diferenciado ou por causa do uso contínuo da agulha nos sulcos da elepê.

O futuro era o CD. A melhor qualidade de som, a orquestra em sua casa. A era dos elepês mal prensados em duofênico que nem as melhores picapes salvavam (sem contar as prensagens brasileiras, quase sempre terríveis). Tudo dentro daquele disquinho ourado que a gente olhava contra a luz e quebrava a cabeça para entender como é que cabia tanta música e de qualidade tão boa dentro. 

O problema era o preço. E o fato de que ainda há ia a espera dos lançamentos e relançamentos nesse formato e, mais ainda, contando com a realidade do mercado de discos no Brasil. Na virada dos anos 80 para a década seguinte, e por mais alguns anos, o preço era impraticáel, tanto da unidade com o álbum quanto do aparelho, que na época era acoplado como parte do system, como um reprodutor de mesa. Como aconteceu com os toca-discos no começo dos anos 70, compact-disc era uma curtição de audiófilos endinheirados. Ia levar algum tempo até que a tecnologia se popularizasse e finalmente entrasse numa dinâmica de portabilidade (CD no carro, em mini-systems e discman). Isso aconteceria ao longo dos anos 90. Contudo, a implantação do CD batia de frente com a realidade do mercado. Não bastasse o preço alto, o indústria de discos estaa numa entressafra devido à recessão pós pacotes da era Sarney, e a economia só iria melhorar depois do Plano Real.

Mesmo assim, como observa Eduardo Vicente (2002) o CD salvou a indústria fonográfica nos anos 80. Pela primeira vez, "CDs possibilitaram tanto o relançamento dos catálogos antigos das grandes gravadoras quanto um aumento nos preços dos produtos vendidos, de modo que em 1988 – quando a indústria já se mostrava em franca recuperação – o número de CDs vendidos mundialmente superava pela primeira vez o de LPs" (p.27). O futuro era promissor. Hoje podemos ver como o sonho do reinado de mil anos do CD foi tão breve como um voo de galinha ou do 14 Bis.  

Nesse meio tempo, as gravadoras tiveram que dar conta do catálogo e dos suplementos de discos a serem lançados aqui. A solução de muitas delas foi investir em lançamentos de ocasião quanto às novidades; com relação ao catálogo antigo, o jeito foi investir numa coisa que sempre deu certo na época do vinil: a coletânea. Para quem lembra, a segunda metade dos anos 90 foi a época da coletânea de CD. Todas as gravadoras atolaram as lojas com elas. No final da década, coletânea era disco de balaio. Quando nós íamos aos lojões ou grandes magazines, sempre havia na entrada o balaio. Isso foi bem na época da moda do saldão de 1.99. Os discos eram vendidos misturados, entre sobras e encalhes, sempre a preços baixos. Era a melhor pedida para amigo secreto. Ou seja, parafraseando aquele filósofo da Escola de Frankfurt, o CD no Brasil virou uma grande liquidação.

Por outro lado, havia a questão de que o CD como objeto, como artigo, como signo, era um herdeiro do CD. Herdeiro da própria cultura do que se tornou o long-play na longa duração, desde seu surgimento, no final dos anos 40 até os anos 80, quando ele passou a competir com seu filho maldito, o compact-disc. Nessa longa duração, o disco virou arte, tanto de capa quanto de conteúdo. O disco também era um documento, era a prova de que um artista havia gravado um trabalho e lançado oficialmente. O músico ainda hoje vai se considerar músico de fato quando ele tem um trabalho lançado no mercado ou lançado de alguma forma, mas com esse status de oficial. Se ele tem um disco na praça, ele não é um aspirante. Ter um disco sob a chancela de uma grande gravadora (ou pequena) é o documento que prova que você chegou lá.

E existe a cultura do consumidor e do colecionador de CD. Aí nós podemos entrar em questões como cultura material (MILLER, 2007), isto é, a forma como essas coisas fazem parte de nossa vida e de como nos apegamos a coisas, um chapéu, um jogo de panelas, um penico, uma coleção de selos, uma panelinha de ovo poché. Aqui entra a questão da cultura material. Um objeto é um objeto mas pode Sr rmais que um objeto. É a história da vida de uma pessoa, enfim, os objetos também contam histórias de nós e dos outros. E os discos têm essa coisa. Mesmo que uma coleção de 10 mil discos possa ser reduzida a pendrives hoje, as pessoas que viveram essa geração material do disco vão morrer abraçados em coleções de discos (e livros) que podem dependendo do caso, ocupar quartos, banheiros, corredores, apartamentos. O cidadão tem um apartamento só para socá-lo de discos e de livros. Ou se casa, se muda mas a coleção fica na casa da mãe, do pai, etc. É como se simbolicamente você tivesse um cordão umbilical ligado a todas essas coisas.

Mas não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que é normal  (ou não, diria Freud) que as pessoas juntem coisas, colecionem coisas. O CD já havia entrado no mercado de forma enviesada aqui nos anos 90 primeiro como artigo de luxo e depois como outlet de pacotilha, vendido de forma simplificada e barata no final. Nessa mesma época, os CDs em lançamentos que apareciam no mercado eram pirateados enquanto a cultura hacker descobria uma forma de troca e disponibilização desses arquivos de forma compacta e remota (WITT, 2015).

O Mp3 já havia matado o CD lá no final dos anos 90 com o advento do Napster e, depois, com seus desdobramentos. A questão é que essa cultura da música digital em termos de acesso, de popularização, difusão e plena portabilidade só se desenvolveria de fato depois da Web 2.0, a fase da internet que viabilizou o Youtube, as redes sociais, até chegarmos no paroxismo da portabilidade com os smartfones e o pleno desenvolvimento de sites de streaming como o Spotify, quando as grandes gravadoras finalmente puseram as mãos no controle dessa distribuição de música.

Quando o mp3 era uma cultura “hacker”, quase alquimia para iniciados, essas majors ainda se agarravam ao CD. Afinal de contas, ele era o suporte físico que lhes garantia o café e o pão com manteiga no fim do mês. Elas lutaram muito, derrubaram sites de distribuição de música digital em massa, como o rapidshare e outros, uma perseguição macartista de cachorro grande só comparada à guerra das editoras musicais contra a payola, no final dos anos 50. As gravadoras venceram a batalha quando esmagaram essa ‘cultura hacker’ mas só venceram a guerra quando aprenderam a ganhar dinheiro com o streaming. E mataram todos os coelhos com uma cajadada: transformaram o escambo de mp3 num trato quase fantasma nas redes, e atraíram o grosso da população que consome música, enfim, os ouvintes de ocasião, o pessoal que comprava um CD por causa de uma música.

É natural que, de posse e controle do streaming e vendo as audições de Spotify, Youtube e arredores viraram dinheiro nas suas contas, e da forma como as pessoas de hoje e do futuro abraçam e abraçarão a música pelo streaming, o CD deixou de interessar às gravadoras. Eu lançaria um CD hoje para dizer que eu lancei um novo trabalho, pelo prazer de ver minha cara na capa. Claro que eu sou produto dessa cultura do long-play, do álbum conceitual. Se eu quero fazer um disco agora, eu quero que seja, no mínimo, nos moldes do Close to the Edge, com aquelas capas e faixas extensíssimas. Faço questão da arte de capa. Porque é a cultura da época, é na qual fomos feitos, é a cultura que aprendemos a amar, é  a cultura naqual estamos imersos, nós, que viemos de lá. Essa cultura não existia nos anos 1930 e provavelmente não existirá mais daqui a um século. Na longa duração, nós fomos um aposto, um momento na história da eternidade.  

O CD acabou?  Vai voltar? Foi e já volta? Existe sempre um milenarismo nessas idéias. O efeito colateral do streaming é que, pelo menos em matéria de catálogo, ao contrário da distribuição irregular da época de vinil e do compact-disc, hoje está quase tudo a um clique de distância. A música hoje e provavelmente no futuro vai vai ser digital. Só não existe um consenso com relação a isso porque existem ainda aqueles que colecionam discos e CDs: afinal de contas, esta ainda é uma cultura recente. É para esses que as gravadoras ainda engambelam com esses lançamentos especiais, comemorando 30 anos do disco tal ou 50 daquele outro disco ou uma caixa com a coleção completa do fulano. Elas porém sabem que existe um teto de vendas para esses produtos. E, por muito tempo, eles irão existir. Afinal, tem gente ainda hoje que ouve discos de 78 rotações da época do Caruso. Aí nem Freud explica.

Por fim, hoje, não apenas o aparato físico do CD ou vinil mas a própria cultura do álbum está com os dias contados. Cultura, digamos assim, todo o imaginário que surgiu em torno do álbum conceitual, do disco de um artista como se fosse um livro como um conceito estético imanente nessa produção. E isso acontece justamente por causa da nova cultura do streaming. Talez isso venha a moldar a cultura de produção e comsumo de música nas próximas décadas.  

Em matéria recente sobre a explosão do sertanejo nas paradas de setreaming no Brasil, profissionais explicam que artistas usam o expediente do EP ou extended play. Curto para um álbum e grande para um single, ele amalgama mais conteúdo sem o "incômodo" das "filler songs", ou seja, músicas para encher linguiça. Ou seja, quem, nesse novo ambiente fonográfico, pensaria em produções como as dos anos 70, ainda calcadas no modelo do long-play, em discos temáticos ou conceituais como o Bitches Brew ou o Fragile? Com o EP ou o single de volta, a tendência seria um retorno aos tempos dos supracitados 78 rotações, quando os discos não tinham capa ou arte de capa, os lançamentos estavam limitados a um punhado de canções. O álbum seria um atavismo do tempo do vinil e que sobreviveu no formato do CD mas, e de agora em diante? Como dizem alguns, o vídeoclipe é o novo álbum? Depois do reinado do disco conceitual, voltamos aos singles?

A gente sabe que muitos ouvintes compram um disco por causa de uma canção. Logo, por que não resumir um lançamento? A ideia hoje é lançamentos de dois em dois meses. Uma música bem trabalhada nessa dinâmica pode durar até noventa dias (MONOCULTURA, 2020). E isso já dá mostras que não é uma tendência restrita a um gênero musical específico. Podemos dizer que, para finalizar, o debate em torno do fim de CD é o argumento ludista de defesa de uma prática secularizada contra um processo cujos dados já foram lançados. A discussão seria, a partir de agora, cogitar ou saber exatamente qual será a cultura que sairá dessa prática nesse novo ambiente midiático daqui por diante.

Por último, o CD não vai acabar porque, como aconteceu com o vinil, vai seguir comercializada em sebos. Sobre os discos raros e abastecimento de catálogos, enquanto pequenos selos ainda se dedicam a lançamentos desse tipo. Além disso, ao contrário do long-play, trata-se de uma mídia fácil de ser pirateada. Muitos não sabem, mas há uma quantidade considerável de counterfeits (imitação de material oficial) circulando por aí. Inclusive, é provável que esse fator seja preponderante para que as grandes gravadoras ainda não abram mão de prensá-los totalmente. Só que, dependendo do produto, a tendência é que CDs em sebos passem a terem valor de raridade, custando mais. Mas isso é assunto de daqui para o futuro. 


  

Referências

CINCO razões que explicam porque o CD se tornou obsoleto. Veja, 23 set. 2019. https://veja.abril.com.br/cultura/cinco-razoes-que-explicam-por-que-o-cd-se-tornou-obsoleto/#:~:text=Por%20quase%20duas%20d%C3%A9cadas%2C%20o,na%20estante%20que%20os%20LPs . Acesso em 22 de abril de 1500.

MILLER, Daniel. Consumo como cultura material. In: Horizontes Antropológicos, ano 13, n. 28, p. 33-63, jul./dez. 2007.

MONOCULTURA Musical: como e por que a música sertaneja se tornou popular de norte a sul do Brasil. TAB UOL, 5 out. 2020. 

WITT, Stephen. Como a música ficou grátis: o fim de uma indústria, a virada do século e o paciente zero da pirataria. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

VICENTE, Eduardo. Música e disco no Brasil: A trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90.  São Paulo, 2002, 349f.. Tese (Doutorado em Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, 

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