Friday, September 18, 2020

Contracapa para Jimi Hendrix

Capa do Band of Gypsies (1970)
 

Jimi Hendrix é um cara que eu lembro quando eu era piá e via na televisão imagens que depois descobri que eram do Festival de Woodstock. Ele tocava o hino norte-americano na guitarra. Para mim, ele era sempre aquele cara na guitarra. Não tinha a mínima idéia do que era rock, o que era Woodstock, o que era festival. Ele era aquele cara. Ele cantava? Quando comecei a ouvir rock, o gênero para mim era algo bem comportado, de artistas de terno e gravata cantando em duetos ou em trios. O Jimi Hendrix era aquele cara lá que eu fui associar ao rock mas achava que ele só tocava instrumental e usava uns trajes meio estranhos. Depois me disseram que ele morreu de drogas. Também me diziam que ele vivia drogado, estava sempre dopado. Eu, que gostava dos Beatles da época do iê iê iê jamais sonhava que eles tomassem drogas. Um dia, me contaram que eles usaram maconha quando receberam a medalha da rainha. 

Caí das nuvens. Odiei para sempre a pessoa que me disse isso.  Eu tinha aquela visão idílica do rock e os meus heróis da música eram limpos. Mais tarde, notei que havia o pessoal do rock comportado e o pessoal cabeludo e barulhento. Tinha até um que comia morcego. Eu não podia aceitar mas era como se o rock fosse um território. Havia o meu território e havia o outro. Os Beatles tiveram aquela fase hippie e tal, e eu aceitava isso deles. Mas os outros? O rock para mim era os Beatles no iê iê iê e os Stones da fase do Brian Jones. Depois eu vi o Jimi Hendrix. Na tevê de novo. Na verdade, quando eu era guri, não havia internet e isso só aparecia na tevê. Ele tocava fogo na guitarra e tocava as cordas dela com a língua. Eu me perguntava: o que esse cara tem? Qual é o objetivo disso? Não bastava apenas tocar a guitarra? 

Pensei comigo: cara, não pode isso, eu não (não lembro as música, apenas da cena) tenho como ouvir isso. Um dia eu ganhei uma leva de elepês, já tinha uma coleção enorme de discos em casa. Entre eles, havia dois dos Doors, o Sticky Fingers dos Stones e a trilha do Sem Destino. Esses discos foram muito importantes para mim porque, a partir de então, eu comecei a ir além daquele território do rock onde eu habitava. Foi a partir dali que eu comecei a ouvir o resto da discografia dos Stones, ouvir Stepenwolf, Byrds e toda aquela turma do country-rock. Ali eu já era adulto o suficiente para entender o rock. Mas, naqueles tempos, ainda antes da internet, havia muita coisa que existia mas você não tinha acesso. 

Discos estavam fora de catálogo, gravadoras aqui não se interessavam em lançar catálogo antigo, ainda mais de gente dos anos 60, que parecia interessar apenas a velhos. Kinks por exemplo. Existiu uma coletânea brasileira, lançada nos anos 80, que era simplória mas, dado ao fato de que ela saiu apenas uma edição aqui, era item de colecionador. Você via o álbum uma vez nos sebos. Em geral, discos raros já chegavam nas lojas reservados -  você nem via ele na estante.  Rock antigo era assim: era preciso ter grana e ir todo dia bater perna nas lojas para garimpar. Esses discos que eu ganhei, por exemplo, foram cair no meu colo por obra do acaso – até porque, na verdade, eu não iria sequer disputá-los. Mas quis o destino que eu os ouvisse. Enfim, eu passei a desbravar o lado escuro do que era o rock para mim a partir de então. 

O disco do Easy Rider, por exemplo, fez com que eu fosse tentar descobrir qual era a original de “I’m Only Bleeding” e descobri que era do Bob Dylan. Foi quando eu comprei o meu primeiro disco dele. E havia naturalmente “The Weight”, quando descobri a The Band, além dos Byrds (era a primeira vez que eu tinha um disco com uma faixa dos Byrds). E o Experience. Lembro de um amigo que era parceiro de garimpagem em sebos da cidade. Ele detestava Hendrix. Ele era da minha turma do rock dos tempos do iê iê iê. Ele corneteava o Hendrix e esse lence dele estar sempre drogado. O dono da loja tinha um pôster gigantesco com o Jimi tomando chá numa mesa (daquela última sessão de fotos dele, em 1970) e ria, dizendo que tinha fita ou coisa parecida naquela xícara de chá. Sempre havia aquele estigma de ligar Hendrix às drogas – como se todo mundo no mundo artístico não usasse drogas – mas, justamente porque ele morreu viveu e morreu por causa delas, há exatos 50 anos.  

Isso também me afastou bastante dele, por preconceito de associá-lo, ele e sua música, apenas às drogas. Assim, Hendrix sempre foi aquele cara que eu não ouvi e não gostei. E, como se não bastasse isso, como me reportei antes, ele estava no rol de artistas do disco que estavam esgotados nas lojas de discos ou na mira dos colecionadores mais fanáticos. Mesmo que você quisesse ouvi-lo, não achava os discos. Até pedir no rádio para tocar era difícil porque, assim como os discos estavam fora de catálogo, em geral, as emissoras ou não tinham o disco ou estava quebrado ou extraviado ou riscado e não podia ser tocado no ar. O que podia acontecer era que um colecionador colaborasse num programa de alguma rádio alternativa e rolasse um especial com Hendrix, ou Who, ou Kinks, enfim, aquelas bandas que não tocavam no rádio e, em tempos pré-internet, inexistiam no imaginário da galera por causa da seca de discos na praça. 

Essa é a verdade: muita gente não ouvia Jimi porque não tinha como. Quando eu ganhei a trilha do Sem Destino, eu tive a experiência (como diria ele) de colocar o elepê no prato da minha eletrola e ouvir aqueles quatro minutos surreais de “If Six Was Nine”. Aquele meu amigo tinha também o disco, achava maravilhoso, mas dizia: “tirando “If Six Was Nine”. E imitava o Hendrix cantando. Eu ria e achava aquilo um absurdo mesmo mas, depois de tanto ouvir, eu fiquei com a pulga na orelha. Então o cara aquele de roupa cherokee ou coisa parecida e de bandana na tevê canta. Achei que ele só tocava e incendiava a coitada da guitarra. Mas acho que todo esse estranhamento e essa torcida contra o Jimi fez com que eu pensasse em catar de qualquer jeito um disco dele. 

Um dia, eu gravei quase duas horas de programa no rádio, acho que era na Cultura: lá por 1997, tinham relançado os discos do Hendrix em CD. Na época, CDs eram caros e eu levei um ano ouvindo a fitinha até finalmente ganhar o disco, uma coletânea do Hendrix. Eu pus aquilo pra tocar e era no tempo dos players de mesa ainda. Eu fiquei de rédeas caídas com o “All Along the Watchtower”. Fiquei apaixonado, meses furando aquele disco pensando, bicho é o paroxismo do rock, é o futuro. Eu me sentia uma pessoa melhor. Era aquela paixão avassaladora que você deixa de lado todos os outros discos da sua coleção para só ouvir aquilo. 

Parece que o destino conspirava para que, desde quando eu vi o Jimi naquela cena sem áudio na tevê até aquele disco existisse uma conexão lógica dos fatos que me levassem, como se algo me dissesse ou eu dissesse para mim mesmo: um dia eu vou ouvir isso, não sei por quais caminhos a vida nos leva para cá ou para lá mas aquele momento vai existir, e então eu descobri o Jimi Hendrix. Esse momento da descoberta, de você escutar um disco com os ouvidos atentos, aquela audição especial, que não é da música no rádio, e você e o disco, esse é o verdadeiro contrato de audição. É quando você pode dizer que teve a experiência. “Are you experienced?”, alguém pode me perguntar. “Yes, I have”.

Na mesma época, por causa desses relançamentos, os colecionadores passaram a desovar os antigos álbuns de suas respectivas coleções nos sebos. Foi quando eu pus as mãos, pela primeira e única vez, no Are You Experienced brasileiro. Era mono mas aquele pequeno prazer do disco na sua vitrola, a capa do lado, aquelas músicas lá, “I Don’t Live Today”, "Red House" ou "Maniac Depresson" e a bateria expressionista a la Elvin Jones do Mitch Mitchell, alma gêmea do Hendrix, era a trilha dos tempos do curso de jornalismo, onde a gente já estava experimentando outras coisas mais loucas, como diagramar, redigir laudas de rádio e fumar maconha em cima das árvores escondido dos guardas no campus da PUC. Hoje eu não ouço mais Hendrix como eu ouvia naquele tempo. E nem tenho mais a minha coleção de discos. Eu tive aquele Band of Gypsies americano mesmo, capa dupla, uma das capas mais lindas de rock de todos os tempos. Tive quase todos os discos do Jimi. 

Tudo se foi. De vez em quando eu rodo algum vídeo no You Tube. E, veja você, os discos dele estão todos aí, a um clique de distância. Se a internet tem alguma coisa de útil, entre tanta porcaria, essa coisa é isso. Os ouvintes do futuro não vão viver a seca do tempo do vinil. E esse é mais um motivo para que se ouça Hendrix, hoje, de preferência, no volume máximo.


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