Friday, September 11, 2020

O francês no telhado

 

Darius Milhaud


O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de Guanabara, o compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela e um certo Darius Milhaud certamente também quando chegou ao Rio em pleno Carnaval de 1917.  Milhaud, um dos maiores compositores eruditos do século passado, membro dos pândegos Les Six, aluno de Vincent d’Indy e professor de Dave Bruebeck, Burt Bacharach e tantos outros, quando pisou nas pedras fatigadas do cais Pharoux, era assistente do embaixador Paul Claudel.

Darius já estava acostumado com o bulício do dia-a-dia de uma grande cidade portuária: afinal, ele nascera em Marselha, em 1892. Mas o que ele encontrou aqui foi algo diferente. Afinal de contas, era o Carnaval de 1917! Enquanto fazia o trajeto do Centro até o Flamengo, tropeçou em centenas de foliões, que coloriam o caminho com seus confetes e suas buchas de alguma substância líquida a jogar nos transeuntes.

O Carnaval de 1917, como lembra Ruy Castro, foi um tríduo momesco histórico. Aquele foi o Carnaval de “Pelo Telefone”, o grande sucesso do ano. O samba, gravado no ano anterior, por Baiano, difundiu-se pelas ruas na base do boca a boca (ainda não existia rádio no Brasil). Até então, segundo ele, os festejos eram mais tocados do que cantados. Pela primeira vez, uma música era literalmente o carro-chefe das comemorações daquele fevereiro.

Ele, um compositor erudito, logo encantou-se com a alma encantadora das ruas, como diria João do Rio, mas também com seus cafés cantantes e teatros. Darius também conheceu o tango brasileiro e o maxixe nos serões do Odeon, apenas para ver Ernesto Nazareth executando suas pequenas peças que, a um só tempo, pareciam miniaturizar toda aquela brasilidade da música carioca nas 78 teclas carcomidas do piano do cinema, que seria eternizado com um chorinho de Nazareth.

Milhaud também descobriu a efervescência cultural da música clássica no Rio, das apresentações no Municipal, o Teatro Lyrico e o Liceu Francês até a Praça Tiradentes com suas revistas e as casas de partituras. O futuro autor de Saudades do Brasil transitou entre a música de rua e a erudita. E, pálido de espanto – como o soneto de Bilac, não conseguia entender por que aquela brasilidade latente na cidade não interessava aos compositores clássicos do país.  Enquanto a Europa já havia exaltado suas raízes nativas em música e despertado suas paixões nas nacionalidades musicais, como os russos, Smetana, Grieg e tantos outros, o Brasil não havia descoberto o Brasil.

Aliás, Milhaud deve ter percebido, nos dois anos em que morou no Rio de Janeiro, que no seu campo de atuação musical, havia ainda um excesso de reverência à música européia do século 19, uma música que o próprio velho continente já havia deixado para trás. Mais: no Brasil, ainda se fazia música de inspiração italiana. Os compositores brasileiros compunham em europeu italiano. Até mesmo Wagner, que os franceses como ele, chegaram a conhecer bem e rejeitar idem, parecia um desconhecido em terras brasileiras.  Enquanto a brasilidade sacolejava em maxixes furibundos nas ruas, a naftalina dos teatros ainda cheiravam às óperas de Verdi e Rossini.

Mal sabia ele que se houve compositores que iniciaram esse longo e tortuoso caminho da música nacional. Podemos lembrar de Brasílio Itiberê, com sua Sertaneja. Quem começou a mudar esse estado de coisas fora Alberto Nepomuceno.  Em 1895, apresentou uma série de canções cantadas em Português. O evento foi alvo de críticas. Muitos não aceitavam o canto lírico na língua do vate Luís Vaz de Camões. Também incentivaria o jovem Heitor Villa-Lobos em seus primeiros vôos condoreiros. Porém, estávamos em 1917 e o Brasil ainda cantava ópera em italiano.

Essa era a idéia que Darius tinha dos compositores daqui. Em seu julgamento, gente como Villa, Nepomuceno e Henrique Oswald formalmente ainda estavam na última água do Romantismo europeu.  É possível que ele não tenha tido acesso à toda a produção de Alberto Nepomuceno, da mesma forma que Milhaud pensava que aquela sonoridade das ruas do Rio era o mais puro e autêntico folclore. A verdade é que nem o autor de O Garatuja era tão romântico, e nem tudo o que ele escutava nos mafuás tratava-se, com efeito, de música folclórica, por sinal, uma classificação bastante problemática.

Até se pensarmos que a citada “Pelo Telefone” estava na fronteira entre a música de criação coletiva e a autoral. Ela, a um só tempo, podia ser as duas coisas. Milhaud chegou num momento histórico importante: o Carnaval de 1917 foi o momento em que a própria música popular se profissionalizava, aparecia a primeira sociedade de direito autoral para a produção de teatro, a SBAT, fundada por Chiquinha Gonzaga como um apelo dos compositores para o registro do que já possuía valor comercial.

Ruy Castro questiona, por exemplo, se Darius chegou a meter a mão na graxa, ou, numa perspectiva antropológica, foi a campo – ou apenas viu a banda passar, como testemunha ocular da história.  Ao que parece, em suas memórias, o compositor francês parece não ter tido contato com os ranchos carnavalescos da época – protótipos do que seriam as escolas de samba, a partir da década de 1930 ou até mesmo as famosas casas de baianas na Praça Onze, berço de “Pelo Telefone”. A questão é que, de acordo com seus relatos, Milhaud possa ter perdido de ter feito uma verdadeira etnografia. Claro que não devemos culpá-lo; ele não veio aqui para isso. Mas, em dois anos, ele não chegou a ver um João da Baiana tocando o seu prato-e-faca nos fundos da casa da Tia Ciata ou coisa parecida? Ao travar contato com Nazareth, quis conhecer de perto a sua produção musical? Ou a sua “etnografia” foi algo estilo Debret, só voyeurizou a coisa toda?

O que parece é que Darius levou do Brasil, além das recordações e saudades, algumas partituras e discos do que ele ajuntou aqui e a impressão de que aquilo que ele entendia como a paisagem musical carioca seria algo como uma amostragem do vasto folclore autóctone. E que, salvo algumas pouquíssimas exceções, existia uma distância de várias baías da Guanabara entre a produção erudita e popular e, mais do que isso, um descaso ou desinteresse da primeira pela segunda, a matéria-prima do que se poderia chamar de brasilidade. E isso iria decerto continuar por muito tempo.  Caberia a uma geração nossa equivalente à dele, Milhaud, mudar essa situação, nem que fosse à força. É o caso de Francisco Mignone. Instigado por Mário de Andrade, deixou as italianices verdianas de lado e passou a compor “em brasileiro”. E Villa-Lobos, que ele certamente viu florescer nas décadas seguintes como a figura de proa desse projeto.

 Já em Paris, Darius pegou aquelas lembranças e transformou tudo num vatapá musical, chamado Le Boeuf sur Le toit, ou O Boi no Telhado. A inspiração veio de um dobrado, gravado em disco em 1918, e de autoria de José Monteiro. Junto com esse tema, Milhaud criou uma suíte com aquelas canções e maxixes que ouviu aqui. A peça, hoje bastante conhecida, pode impressionar muitos na primeira audição, pensando tratar-se de uma peça de autoria brasileira. Mas não: ele misturou desde “Apanhei-te, Cavaquinho”, de Ernesto Nazareth até o “Corta-Jaca”, de Chiquinha Gonzaga, que fez grande sucesso na Europa e foi, como se soube depois, largamente plagiada.

O curioso é que, em seu amálgama de motivos brasileiros, Darius misturou maxixeiros “de rua”, como José Monteiro e Eduardo Souto, até peças de gosto popular criadas por pares seus, como “Galhofeira”, de Napomuceno e “Tango Brasileiro”, de Alexandre Levy. Ou seja Milhaud, em Le Boeuf sur Le toit, foi testemunha desse momento singular: a profisisonalização da música de rua, o começo do brasilianismo no campo erudito, a partir de então.

Existe a história de que Villa-Lobos teria levado Darius a um terreiro ou coisa parecida. A verdade é que o autor do Trenzinho do Caipira fez isso com Ronald de Carvalho. Quem Villa iria levar para os mafuás da Lapa e arredores seria outro estrangeiro – Leopold Stokovski. Mas esse, como se sabe, já vinha com segundas intenções. Mas essa é outra história.


Referência:

Ruy Castro. Metrópole à beira-mar: o rio moderno dos anos 20. Cia das Letras, 2019.  



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