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Darius Milhaud |
O pintor Paul Gauguin amou a luz da Baía de
Guanabara, o compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela e um certo
Darius Milhaud certamente também quando chegou ao Rio em pleno Carnaval de 1917. Milhaud, um dos maiores compositores eruditos
do século passado, membro dos pândegos Les Six, aluno de Vincent d’Indy e
professor de Dave Bruebeck, Burt Bacharach e tantos outros, quando pisou nas
pedras fatigadas do cais Pharoux, era assistente do embaixador Paul Claudel.
Darius já estava acostumado com o bulício do
dia-a-dia de uma grande cidade portuária: afinal, ele nascera em Marselha, em
1892. Mas o que ele encontrou aqui foi algo diferente. Afinal de contas, era o
Carnaval de 1917! Enquanto fazia o trajeto do Centro até o Flamengo, tropeçou
em centenas de foliões, que coloriam o caminho com seus confetes e suas buchas de
alguma substância líquida a jogar nos transeuntes.
O Carnaval de 1917, como lembra Ruy Castro, foi um
tríduo momesco histórico. Aquele foi o Carnaval de “Pelo Telefone”, o grande
sucesso do ano. O samba, gravado no ano anterior, por Baiano, difundiu-se pelas
ruas na base do boca a boca (ainda não existia rádio no Brasil). Até então,
segundo ele, os festejos eram mais tocados do que cantados. Pela primeira vez,
uma música era literalmente o carro-chefe das comemorações daquele fevereiro.
Ele, um compositor erudito, logo encantou-se com a
alma encantadora das ruas, como diria João do Rio, mas também com seus cafés
cantantes e teatros. Darius também conheceu o tango brasileiro e o maxixe nos
serões do Odeon, apenas para ver Ernesto Nazareth executando suas pequenas peças
que, a um só tempo, pareciam miniaturizar toda aquela brasilidade da música
carioca nas 78 teclas carcomidas do piano do cinema, que seria eternizado com
um chorinho de Nazareth.
Milhaud também descobriu a efervescência cultural da
música clássica no Rio, das apresentações no Municipal, o Teatro Lyrico e o
Liceu Francês até a Praça Tiradentes com suas revistas e as casas de partituras. O futuro autor
de Saudades do Brasil transitou entre a música de rua e a erudita. E, pálido de
espanto – como o soneto de Bilac, não conseguia entender por que aquela
brasilidade latente na cidade não interessava aos compositores clássicos do
país. Enquanto a Europa já havia
exaltado suas raízes nativas em música e despertado suas paixões nas
nacionalidades musicais, como os russos, Smetana, Grieg e tantos outros, o
Brasil não havia descoberto o Brasil.
Aliás, Milhaud deve ter percebido, nos dois anos em
que morou no Rio de Janeiro, que no seu campo de atuação musical, havia ainda
um excesso de reverência à música européia do século 19, uma música que o
próprio velho continente já havia deixado para trás. Mais: no Brasil, ainda se
fazia música de inspiração italiana. Os compositores brasileiros compunham em
europeu italiano. Até mesmo Wagner, que os franceses como ele, chegaram a
conhecer bem e rejeitar idem, parecia um desconhecido em terras brasileiras. Enquanto a brasilidade sacolejava em maxixes
furibundos nas ruas, a naftalina dos teatros ainda cheiravam às óperas de Verdi
e Rossini.
Mal sabia ele que se houve compositores que
iniciaram esse longo e tortuoso caminho da música nacional. Podemos lembrar de
Brasílio Itiberê, com sua Sertaneja. Quem começou a mudar esse estado de coisas
fora Alberto Nepomuceno. Em 1895,
apresentou uma série de canções cantadas em Português. O evento foi alvo de
críticas. Muitos não aceitavam o canto lírico na língua do vate Luís Vaz de
Camões. Também incentivaria o jovem Heitor Villa-Lobos em seus primeiros vôos condoreiros.
Porém, estávamos em 1917 e o Brasil ainda cantava ópera em italiano.
Essa era a idéia que Darius tinha dos compositores
daqui. Em seu julgamento, gente como Villa, Nepomuceno e Henrique Oswald
formalmente ainda estavam na última água do Romantismo europeu. É possível que ele não tenha tido acesso à
toda a produção de Alberto Nepomuceno, da mesma forma que Milhaud pensava que
aquela sonoridade das ruas do Rio era o mais puro e autêntico folclore. A
verdade é que nem o autor de O Garatuja era tão romântico, e nem tudo o que ele
escutava nos mafuás tratava-se, com efeito, de música folclórica, por sinal,
uma classificação bastante problemática.
Até se pensarmos que a citada “Pelo Telefone” estava
na fronteira entre a música de criação coletiva e a autoral. Ela, a um só
tempo, podia ser as duas coisas. Milhaud chegou num momento histórico
importante: o Carnaval de 1917 foi o momento em que a própria música popular se
profissionalizava, aparecia a primeira sociedade de direito autoral para a
produção de teatro, a SBAT, fundada por Chiquinha Gonzaga como um apelo dos
compositores para o registro do que já possuía valor comercial.
Ruy Castro questiona, por exemplo, se Darius chegou
a meter a mão na graxa, ou, numa perspectiva antropológica, foi a campo – ou apenas
viu a banda passar, como testemunha ocular da história. Ao que parece, em suas memórias, o compositor
francês parece não ter tido contato com os ranchos carnavalescos da época –
protótipos do que seriam as escolas de samba, a partir da década de 1930 ou até
mesmo as famosas casas de baianas na Praça Onze, berço de “Pelo Telefone”. A
questão é que, de acordo com seus relatos, Milhaud possa ter perdido de ter
feito uma verdadeira etnografia. Claro que não devemos culpá-lo; ele não veio
aqui para isso. Mas, em dois anos, ele não chegou a ver um João da Baiana
tocando o seu prato-e-faca nos fundos da casa da Tia Ciata ou coisa parecida?
Ao travar contato com Nazareth, quis conhecer de perto a sua produção musical?
Ou a sua “etnografia” foi algo estilo Debret, só voyeurizou a coisa toda?
O que parece é que Darius levou do Brasil, além das
recordações e saudades, algumas partituras e discos do que ele ajuntou aqui e a
impressão de que aquilo que ele entendia como a paisagem musical carioca seria
algo como uma amostragem do vasto folclore autóctone. E que, salvo algumas
pouquíssimas exceções, existia uma distância de várias baías da Guanabara entre
a produção erudita e popular e, mais do que isso, um descaso ou desinteresse da
primeira pela segunda, a matéria-prima do que se poderia chamar de brasilidade.
E isso iria decerto continuar por muito tempo.
Caberia a uma geração nossa equivalente à dele, Milhaud, mudar essa
situação, nem que fosse à força. É o caso de Francisco Mignone. Instigado por
Mário de Andrade, deixou as italianices verdianas de lado e passou a compor “em
brasileiro”. E Villa-Lobos, que ele certamente viu florescer nas décadas
seguintes como a figura de proa desse projeto.
O curioso é que, em seu amálgama de motivos
brasileiros, Darius misturou maxixeiros “de rua”, como José Monteiro e Eduardo
Souto, até peças de gosto popular criadas por pares seus, como “Galhofeira”, de
Napomuceno e “Tango Brasileiro”, de Alexandre Levy. Ou seja Milhaud, em Le
Boeuf sur Le toit, foi testemunha desse momento singular: a profisisonalização
da música de rua, o começo do brasilianismo no campo erudito, a partir de
então.
Existe a história de que Villa-Lobos teria levado Darius a um terreiro ou coisa parecida. A verdade é que o autor do Trenzinho do Caipira fez isso com Ronald de Carvalho. Quem Villa iria levar para os mafuás da Lapa e arredores seria outro estrangeiro – Leopold Stokovski. Mas esse, como se sabe, já vinha com segundas intenções. Mas essa é outra história.
Referência:
Ruy Castro. Metrópole à beira-mar: o rio moderno dos anos 20. Cia das Letras, 2019.
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