Tuesday, September 01, 2020

Fita ou quando a música tinha dois lados

 


Segundo os almanaques, num dia como hoje, em 1963, na Alemanha, a o cassete foi apresentado ao grande público. O formato, na verdade, segundo consta, ainda era bastante incipiente em seus inícios, mas no final dos anos 70, já era popular o suficiente para que praticamente suplantasse o long-play em vendas já na década seguinte. As grandes vantagens da fita eram a portabilidade e a possibilidade de gravação caseira ou a pirataria de arquivos de áudio. O CD, que morreu também, era a promessa da síntese do long-play e da fita, dada a sua respectiva portabilidade. Contudo, a vida útil do disco digital foi menor que a do ciclo do vinil e do cassete, que teve uma existência maior, provavelmente por causa da pirataria de camelô. Quando o CD foi parar na calçada, aí foi a vez da fita partir dessa para melhor.  

 A portabilidade serviu para popularizar as fitas. Primeiro nos carros e, depois, com o walkman. Hoje parece absurdo, mas a gente comprava álbuns em formato cassete nas lojas, e colecionava discos em fita. Eu, por exemplo, tinha a coleção completa do Dire Straits em fita. Mas a verdade é que, para um colecionador que se quer colecionador, a grande mídia era o vinil. O disco a gente mostrava para os amigos, e tinha orgulho de mostrar a coleção emparedada em decks e estantes. A fita? Bem, a fita era legal, em alguns casos, tinha qualidade de som melhor que o disco (como no caso dos Beatles, por exemplo), mas ter uma fita original era como não ter nada. Afinal, era possível fazer cópias caseiras. O disco era simbolicamente a prova de que você tinha a gravação- matriz.

Quando à possibilidade de gravação caseira, a fita teve tudo a ver com a época de sua grande popularidade. O seu auge, principalmente no Brasil, ocorreu quando as FMs se segmentavam, mais precisamente em busca do público jovem. O FM jovem puxou as vendas de walkman, e a venda de walkman colocou as emissoras de rock e pop no seu auge em matéria de difusão de música. Seria possível dizer que eles são a cara dos anos 80. Quando eu era piá, como eu falei num post ali embaixo, eu escutava radinho de pilha. Ora, radinhos de pilha em geral não tinham FM.

O walkman foi o rádio que popularizou o FM. Como diz Renato Ortiz, analisando o mercado fonográfico, o mercado de venda de discos se desenvolve em função do mercado de aparelhos de reprodução sonora. A grande corrida do ouro foi nos anos 80: entre  1967 e 1980, diz ele, a venda de toca-discos no Brasil cresceu em 813%. E o rádio,e a tevê, naqueles tempos pré-internet eram a plataforma de lançamento de sucessos. O FM se fez nos anos 80 e tudo o que a gente poderia pensar em matéria de música passava pelo rádio musical, algo que não acontece hoje, a não ser em algumas bolhas em mercados musicais de nicho.

Foi no final já dos anos 80 que as fábricas de som começaram a investir cada vez mais em systems mais simples, mirando um público menos audiófilo, como o dos Garrard-Gradiente anos 70. A grande época do FM foi a da segunda metade dos anos 80 até o final dos anos 90. E a fita tinha uma importância grande não apenas para os ouvintes como para quem fazia rádio.

Para os ouvintes, ter um rádio-gravador, toca-discos ou walkman com gravador, era a possibilidade de gravar a programação musical das rádios, principalmente a da madrugada, e deixar para tocar como se fosse uma coletânea. E havia a grande moda da época, que era o hábito de gravar as música preferidas direto da programação ao vivo. Das duas, uma: ou a gente gravava o horário nobre das emissoras como a Atlântida, Universal FM ou a Cidade, para copiar os sucessos da semana ou as mais pedidas ou então ligava para o locutor ou o pessoal da programação para pedir aquela canção ou justamente uma faixa que a gente não tivesse em casa e eles em geral tinham no acervo.

Com o tempo, a gente sabia qual a rádio que era mais colaborativa e paciente conosco nessa tarefa de gincana, qual era a que tinha o acervo mais “quente” ou aquela que a gente sabia que só tocava jabá (do bem ou do mal), e vivia restrita aos promos, aos discos pagos para rodar na programação todo dia. Nesse caso, havia aquela distinção de rádios jovens, que era algo possível naqueles tempos – anos 80 ou 90, que era a entre as emissoras comerciais e as alternativas.

Nas alternativas, sempre rolava algum programa temático, onde eles tocavam um disco clássico na íntegra, um bloco com um lançamento mas executando as lados B para os ouvintes ou, melhor ainda, alguma novidade de fora que chegava em fita através de um piloto ou comissário ou turista. Como se sabe, existiu por muito tempo uma defasagem entre os lançamentos de discos no exterior e, depois, aqui no Brasil.

Naqueles tempos, quando a internet era mal e mal usada apenas para fins militares, conseguir uma cópia de algo como os primeiros discos do Cure (isso no começo dos anos 80, antes deles estourarem de fato e, inclusive, virem tocar no Brasil e no auge), furando tanto a exclusividade das gravadoras daqui quanto a ditadura massiva das grandes rádios comerciais, a fita foi um expediente que permitia esses arroubos, esses pequenos levantes e, claro, levavam os ouvintes à loucura.

Eu lembro de ter caixas e mais caixas de sapatos de fitas, onde eu separava as que eu usava para gravar coisas do rádio e as que eu usava para copiar discos, em geral raridades e pirataria. Mais tarde, com a moda do double deck em systems e em toca-discos, a mania de cópia de discos chegou ao paroxismo. Isso foi mais ou menos na mesma época da popularização do CD no Brasil, a partir de 1989. O auge do compact disc iria perfazer praticamente uma década firme. Nesse meio tempo, a fita foi perdendo força nas lojas. Não lembro de quando, mas, quando o CD virou um artigo totalmente popular, ainda mais na época do 1.99, a fita perdeu espaço, restando ainda, por algum tempo, nos camelôs.

Meu último contato com cassete foi quando eu fiz estágio na Feplam como operador de rádio na Educadora 1340. Os programas, que eram produzidos e apresentados pelos alunos de áudio e de locução da fundação, eram todos gravados em fitas. Era mais prático gravar nesse formato do que em rolo. Isso foi em 1994, ou seja, mal estava-se introduzindo nas grandes rádios o expediente do registro em DAT. Mesmo quando eu fazia programas na faculdade, a gente gravava em fita. No curso de operador, a gente aprendia a manusear rolo, mas já era também uma mídia em desuso, apesar de ser bastante usada, principalmente na Guaíba, que usava o rolo para marcar o sinal das horas. Hoje, toda aquela modelo de operação mudou totalmente. Eu guardei várias fitas dos meus tempos de operação na 1340 AM mas, com as mudanças e, pelo fato de eu já não contar mais com toca-fitas, acabei colocando tudo fora. Junto foram fitas que eram históricas, coisas de rádio que eu havia gravado há anos, e que eu insistia em guardar comigo.

É pena, pois, o que era mera brincadeira (gravar programação de rádio) hoje representa uma fonte de pesquisa para se estudar a história do rádio no Brasil. Diferentemente de mim, muita gente guardou muita coisa dos anos 80, dos anos 70, e essas fitas, que originalmente permaneceram nas coleções das pessoas por uma questão afetiva, podem hoje nos permitir conhecer como foi o rádio brasileiro no passado, uma memória que, por sinal, é tão mal tratada e aviltada.


Referência

Renato Ortiz. A Moderna tradição brasileira - Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988. 

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