Sunday, August 30, 2020

Doctor Sax

 

Charlie Parker
Charlie Parker


Pensei em escrever alguma coisa aqui sobre Charlie Parker. Depois, me recordei que já escrevi alguma coisa aqui sobre Charlie Parker. Mas como são 100 anos do nascimento dele, pensei em escrver de novo alguma coisa aqui sobre Charlie Parker. 
Lembrei do documentário Ken Burns' Jazz, que passou na tevê no final dos anos 1990 no canal GNT, você deve ser lembrar. O capítulo 5 se chama "Risco". Ele vai de 1945 a 1933 e pega o período da história norte-americana do final da 2ª Guerra Mundial e o começo do rock'n roll. 

A ideia de risco passa pelo próprio arquétipo do artista trágico. Ken Burns pega Bird como o exemplo máximo de artista trágico, de vida curta embora totalmente dedicada a causa de sua música. O documentário naturalmente não pretende nem ser moralista, nem ser em encômio para um tipo de divinização desse exemplo de personalidade que, por sinal, chegou ao seu paroxismo no rock.

Mesmo assim, é impossível não pensarmos em Parker forma dessa esfera trágica e mitológica. Ele é o herói trágico por excelência. Em seus hercúleos trabalhos, Charlie Parker, nascido em Kansas City, Misouri, no coração dos Estados Unidos, em 29 de agosto de 1920, amansou os cavalos aporreados do bebop a um custo muito alto: é como que se ao internalizar o artista, ele se investisse de tudo o que faz parte desse processo, o delírio, a loucura, o excesso, a música antes de tudo, um desejo de absoluto como valores tão caros à ele e quase uma profissão de fé artística.

Ken Burns mostra que as bandas de swing estavam em decadência depois da guerra. Negros que lutaram na Europa pela liberdade voltaram à realidade da miséria, do racismo das Jim Crow laws e da exclusão nos Estados Unidos. A música que tanto Parker quanto Dizzie Gilespie irão desenvolver nesse contexo seria como uma resposta a esse estado das coisas. O bebop retomava o ideário da renascença do Harlem, lutava contra a estereotipação do negro, a perseguição e a violência.

O bebop surgiu como uma reação ao antigo jazz, branco e massificado, para voltar-se para o público negro como uma nova experiência musical. Era um jazz mais para ouvir do que para dançar. Isso explicaria, em parte, a sua impopularidade e o estranhamento por parte dos ouvintes. Em parte porque o gênero nasceu mal assistido, em plena guerra, onde o lockout da indústria fonográfica e o esforço de guerra representaram uma barreira para o mercado musical como um todo.

Em segundo lugar, o bebop tentava firmar-se como alternativa ou resistência no campo do jazz. Por outro, ele começava a disputar espaço gradativamente para o pop. Sem falar que, pelo fato de adotaram uma postura política e de contestação, eram acusados, em pleno contexto da Guerra Fria (inclusive por circunspectos detratores, como Benny Goodman), de "comunistas".

Além de quebrar lanças contra o antigo jazz, o bebop, ao postular uma postura combativa à segregação racial e as leis Jim Crow, atacavam baluartes do gênero como Louis Armstrong, para eles, o perfeito estereótipo do artista negro docilizado pelo estabilishment e que era acusado por eles de fazer música para agradar a platéia branca. Enfim, da mesma forma que buscava espaço no campo, o bebop também fazia inimigos. E, por causa disso e além disso, parecia pregar no deserto.

Gillespie provavelmente, como diz Burns, moveu mundos e fundos como elemento difusor e integrador da cultura do bebop para o grande público. Mas mesmo assim, até por conta do próprio ethos de boppers como Parker, o bebop sempre pareceu um movimento outsider: eles não tinham espaço nos meios de comunicação, não gravavam em grandes selos. E era anti-comercial.

Mas era revolucionário: ele recriava os temas melódicos em pontilhismos, em desconstruções, em wits musicais, subvertia as regras de performance e de audição, não era mais para dançar, era para escutar. Mais do que uma nova linguagem, era um novo ambiente sonoro, com outra decoração e com outra mobília. Era Stravinski provocando uma histeria coletiva na platéia. O bebop podia te botar para correr mas, depois, queria que você voltasse para ouvir, pensando, o que é isso?

Ken Burns ressalta a questão do risco porque esse passo a frente do bebop era como se você recebesse uma dádiva, mas nessa missão estivesse a sua húbris. Você teria o dom mas pagaria o preço por querer ser um dos deuses. Aqui nós entraríamos na esfera do mito.  O problema nisso residia no fato de que havia um romantismo belamente trágico em torno dessa imagem do orfeu decaído do jazz. Essa imagem preexistia no imaginário do jazz; basta lembrar de Bix Biderbeke, onde a genialidade, os abusos e a tragédia andam de mãos dadas, mas o desfecho final parece seguir o desejo dos deuses e os inescrutáveis caprichos do destino.

Parker me fascina por essas coisas todas e porque sua imagem é de um homem de ternos bem cortados, de uma performance impecável, mas que tinha um gorila pendurado em seu pescoço como se fosse uma aura invisível para quem não o conhecia. Quem era de seu grupo não apenas conhecia esse gorila como também o tinha em seu tiracolo, era a heroína. A droga o transformou num homem que trocava o dia pela noite, a vida pelo vício, mas sempre de forma impecável.

Mas, na verdade, parecia um homem da calçada, da rua, que conhecia as veleidades das ruas, como um flaneur pouco a pouco das circunstâncias, enfim, uma pessoa complexa, mas ordinária, um hércules-quasímodo que havia passado três anos estudando música 15 horas por dia e conhecia mais de música, principalmente os clássicos, mais do que muitos dos frequentadores mais empedernidos do Carnegie. E aquele histórico parecia desaparecer quando ele aparece, a se assemelha a mais um, como um de seus pares. Mas não quer dizer que ele não fosse aberto a outros estilos e tendências: ele seria capaz de ouvir de Hank Williams às Variações Goldberg. Bird estava há milhas à frente de seu tempo.

E, de fato, como toda a cena, pregar no deserto significava não ter reconhecimento além da própria comunidade de músicos, não aparecer nos jornais ou em capas de revistas norte-americanas de grande circulação. Os boppers eram reconhecidos, porém, na Europa, que sempre foi uma espécie de valhacouto dos heróis esquecidos do jazz ianque. Parker nunca gravou num grande selo, ele era um músico dos músicos. Era o cara dos pubs do circuito Harlem e do Village.

Era uma música mercurial, onde as pessoas assitiam a um saxofonista como eles como se fossem ter uma experiência espiritual, ou, quase, uma hierofania. Isso explicaria toda a devoção e o delírio e o cult following dos beatlinks que, à sua maneira, talvez fossem e foram os seus primeiros críticos e os primeiros estetas do bebop. Kerouac ou Ginsberg estavam para Bird como Nerval ou Baudelaire estavam para Watteau. Mesmo odiado por muitos jazzistas, eles foram os seus primeiros evangelistas. O que para muitos poderia parecer mera auto-indulgência e extremo individualismo para eles era uma demanda pelo sagrado, pelo caminho da iluminação. Músicos como Parker eram para os beats como bodisatvas e a música deles era a verdadeira manifestação do sagrado. 

Quando Bird teve a chance de fazer um disco numa grande gravadora, o With Strings, na Verve, foi desancado pelos puristas. Na verdade, ele queria muito mais, mas suas relações com a indústria fonográfica eram lacunares. Sua vida era a noite, sua música se consumia no palco e no êxstase das drogas, mais precisamente a heroína. Bird tinha um longo histórico de abusos de drogas, e que começaram quando ele tinha 16 anos. Na época, ele sofreu um grave acidente de carro, que lhe deixou sequelas, como dores pelo corpo. Um médico o indicou morfina. Esse foi o gorila que se dependurou em Parker pelo resto da vida. O médico que atendeu Charlie já morto achou que ele tinha entre cinquenta ou sessenta anos. Tinha apenas trinta e quatro anos incompletos.

Porém, ao mesmo tempo que o gorila da heroína era um contrapeso e um caminiho sem volta, como mostra Ken Burns, a droga também era um fator de distinção social no mundo do jazz. Pertencer ao seu clube lhe emprestava essa distinção, mesmo que fosse a sua ruína. Porém, o tempo parava, o tempo era a noite, e a vida era o palco, e se vivia pela próxima dose. Parece clichê do rock? Pois nassceu muito antes. Creio que assim como o espírito libertário dos hippies estava em forma de semente nos beatniks, o etos ro astro do rock já existia no jazz. No entanto, assim como ao mostrar esse etos, o documentário mostra o outro lado da história - como no caso de Bix, que morreu num delirium tremens. E muitos sucumbiram às drogas, Anta O' Day, Chet Baker, Stan Getz e o próprio Miles, em meados dos anos 50.

E sustentar esse gorila fazia com que você vivesse em função do vício durante o dia e da música pela noite adentro, essa era a casa onde eles habitavam. O dia-a-dia de Bird era um cotidiano de junkie e a capacidade de administrar o médico e o monstro dentro de si era a sua vida. Dominar a música e a vida junkie era para Parker era como domar cavalos selvagens, e entrar nesse esporte incluia viver uma vida como a de Bird. Como disse a viúva de Parker, Chan, você entra num caminho sem saída, o vício pode sair do corpo mas não sairá jamais de sua cabeça. Os demônios estarão sempre esperando por você.

A romantização da vida do jazz, encorajada pelos próprios músicos que viviam essa vida era mais forte. Muito antes do rock, essa romantização da vida de calçada já existia no jazz e o bebop provavelmente foi o paroxismo disso. Sempre que olhamos em retrospectiva, vemos tantas vidas interrompidas de tantos músicos que arderam como estrlas cadentes e parece que vieram a este mundo apenas para dar o fogo aos homens e pagar o preço de sua húbris, essa é a aura do jazz. O bebop não podia viver sem isso, o uso de drogas mudou a performance, a percepção, tudo o que está hoje associado ao rock começou, de certa forma, com o bebop.

Agostinho, no Doutrina Cristã, interpretava o roubo do ouro dos egípcios pelos hebreus (Êxodo) simbolicamente não como roubo mas como o retorno do que era deles. O mesmo ele dizia do saque da filosofia grega por parte dos patrísticos como ele. Verdades pagãs não devem ser temidas. Ao contrário, dizia ele, a herança daqueles filósofos deveria ser retomada culturalmente deles que seria, segundo Agostinho, injustos possuidores. O pagão era injustamente detentor daquela cultura porque eles se serviam mal daquilo, usando no culto de "deuses falsos".

Músicos como Charlie Parker compunham deliberadamente saqueando temas que eram standards do jazz branco e recriavam, de forma crítica e criativa, aqueles temas que, no fim das contas, eram deles e foram confiscados pelos brancos. Ele não inventou isso mas o bebop foi fértil nisso. E o bebop como cultura ou subcultura enxergava o mundo dessa forma. Ele se queria libertário, contestador, anti-estabilishment. Era o anti-swing. Parker tem vários temas onde ele saqueia o swing branco e transforma em bebop. Isso é revolucionário. Guardadas as devidíssimas proporções, acho que a música no bebop, e o estilo composicional do Charlie Parker passava por uma ótima parecida. Ele é o Santo Agostinho do jazz. É uma tese de boteco, mas acho que poderia render um pouco se fosse ampliada, fica de sugestão para um próxima postagem.

Pena que o grande parto do bebop foi mal documentado, já que a indústria do disco estava fechada na época da guerra e os discos não compartimentariam extensas jams. Acho que o melhor do Parker não foi gravado ou é pirataria gravada ao vivo e que depois foi oficializada com o tempo, como o Jazz at Massey Hall. O que foi oficialmente é uma amostra, ou o que nos restou de toda a sua passagem meteórica pela história do jazz.  



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