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Capa do disco |
O último 16 de agosto
marcou a passagem dos cinquenta anos do lançamento do primeiro disco da série Bale da Pesada (Big Boy e Ademir Lemos), pela gravadora Top Tape. O álbum foi
lançado oficialmente também num domingo, no Canecão, local onde os bailes começaram a se
popularizar. A temporada, que começou em 12 de julho, se estenderia até o fim
de agosto e depois ganharia o subúrbio.
Como diz Hermano Vianna em seu estudo sobre o funk e soul no Brasil, a história
dos bailes da pesada começa no final dos anos 60. Nessa época, algumas casas
noturnas da Zona Sul do Rio começam a apostar cada vez mais em som mecânico.
Uma delas foi o Le Bateau, em Copacabana. Localizada na praça Serzedelo Corrêa
com Hilário de Gouveia, a boate atraía a joie de vivre da juventude bem nascida
e bem vestida carioca ao som de coisas como Johnny Rivers, Chris Montez e Miriam Makeba, entre outros sucessos pop da época.
Com Ademir nas picapes, as noites do Bateau, a partir de 1969, passaram a tocar o que de melhor era lançado nos Estados Unidos em matéria de soul, mais precisamente de um gênero que se estabelecia: o funk. Além do Bateau, havia Missiê Limá, na Sucata, na Gávea, também tocando as novidades do som dançante ianque em terras brasileiras. Curiosamente, como observa Hermano Vianna, foi a partir da Zona Sul que o funk ganharia os subúrbios, a Baixada e o resto do país. Ou seja, a trajetória do funk carioca, quem diria, em parte, nasceu na altura do Posto 3.
No começo dos
anos 70, com a facilidade do acesso ao crédito, houve um aumento no consumo de
equipamentos de som, desde para uso doméstico quanto para som profissional. A
indústria do ramo se desenvolvia no Brasil nessa década, também estimulado pela
demanda por discos. No caso do Rio, como observa Hermano Vianna, o disco
importado era uma commoditie possuía enorme demanda a partir de lojas
especializadas, como a Billboard, em Copacabana. Esses discos, que eram
procurando tanto por colecionadores quanto por disc-joqueis, serviam numa
transversal entre consumidores em geral e produtores de emissoras de rádio e
equipes de som. E ter acesso às novidades do funk e soul naquela época era
sinônimo de distinção na cena musical. E Big Boy, que estava nessa fronteira
cultural entre o mundo do disco e o rádio, se tornaria o produto mais bem
acabado dessa nova ordem.
Surfando no sucesso nas picapes do Bateau, Ademir lança, no começo de 1970, uma coletânea, que leva o nome da boate. O disco, lançado pela Top Tape, era uma novidade no Brasil: long-plays temáticos de baile, com seleção de músicas dançantes e customizando uma casa noturna era algo que simplesmente não existia. As próprias coletâneas de rádio, que se popularizam nos anos 70, também. Johan Cavalcanti fala que a música gravada em disco se consolida no rádio no final dos anos 60, baseada em canções pop e românticas, voltadas ao público jovem em geral. As principais emissoras desse segmento foram a Mundial AM e a Tamoio (no Rio), Difusora e Excelsior AM (em São Paulo).
Ele diz que, na esteira do sucesso
dessa nova programação, essas emissoras foram pródigas em explorar o sucesso
das canções mais pedidas e executadas a partir do lançamento de coletâneas em
vinil. “Além do consumo das canções que gosta, dizo autor, “o ouvinte consome a
própria proposta de programação da emissora, que é levada de modo resumido para
um álbum, que retrata sua programação de um determinado momento”.
A parceria
entre rádios e gravadoras rendeu dezenas de discos temáticos de emissoras, como
Sua Paz Mundial ou Excelsior, a Máquina do Sucesso. Além de vender a marca da
empresa, esses álbuns entraram na onda avassaladora da difusão do pop
internacional no Brasil, uma tendência que chega ao ápice nos anos 80. Já
coletâneas de sucessos pop eram raras nos anos 60. Muitos devem se lembrar da
série As 14 Mais, da CBS. No entanto, essa coleção era feita estritamente a
partir de fonogramas da gravadora.
Num primeiro
momento, Ademir Lemos, que já fora figurante de programas de televisão,
investia na carreira de discotecário no Bateau. Com o sucesso do funk e
contando com a parceria do selo Top Tape, ele lança, em meio de 1970 um disco,
que pode ser considerado um marco do gênero. Baseado em temas mais tocados na
casa, o disco recebe publicidade de Big Boy, que já mantinha um programa diário
na Mundial do Rio e tinha uma coluna em O Globo. A capa do disco – Le Bateau Ao
Vivo (que, na verdade, não é), aparece em primeira mão na coluna Top Jovem de
Big Boy do dia 3 de abril de 70. Em 27 do mesmo mês, ele anuncia o lançamento
do disco na própria boate, anunciando a presença de Fábio, Jorge Ben e Wilson
Simonal. O disco, segundo o radialista, já roda na programação da rádio
Mundial, com destaque para a faixa “My Baby Loves Lovin’”, do Joe Jeffrey
Group.
Discos
pau-de-sebo como o As 14 Mais da CBS existiam desde o começo dos anos 60 no
Brasil. E seleções de pop jovem também, como o Juventude em Brasa, da Odeon
(1964) ou as séries de bandas de baile fantasmas como Ed Maciel, Os Versáteis ou a Som Bateau – em
geral gravadas por conjuntos de estúdio, embora focada no pop que fazia sucesso
das pistas de dança daquele tempo. Porém, a partir do Le Bateau Ao Vivo, além
de um produto customizado por um discotecário, há a homologia entre o DJ e uma
rádio de segmento jovem. Na mesma época (abril de 1970), Big Boy também entraria
para o ramo da discotecagem: a partir de maio, ele também passa a promover
bailes, inicialmente na Tijuca (Uruguai Tênis Clube) e Gávea (Umuarama Clube).
Em julho,
surge a oportunidade de discotecar no Canecão. O objetivo era ocupar as tardes
de domingo, horário em que a casa não funcionava. A primeira festa, ocorrida no
dia 12, pôs 3 mil pessoas. O disco Big Boy e Ademir, lançado pela mesma Top
Tape, navega no sucesso do empreendimento, que lotou a casa noturna entre os
meses de julho e agosto.
Com o fim
abrupto do contrato com o Canecão, provocado pela boate e o disco, começa um
novo capítulo na história dos bailes da pesada, na história do funk e na
história do disco: o circuito agora sai da Zona Sul e ganha o subúrbio:
Guadalupe, Rocha e Tijuca, e depois a Baixada Fluminense, Petrópolis e Niterói.
Em pouco tempo, outras equipes de som se destacariam na cena dos bailes
cariocas, como a Revolução da Mente, Atabaque, Uma Mente numa Boa, Black Power,
Soul Grand Prix e a Furacão 2000.
Já o primeiro disco Baile da Pesada renderia vários desdobramentos. No final de 1970, Big Boy lançaria o seu próprio álbum da série da Pesada, seguido pelo Baile da Cueca (1972) e Big Boy Show (1974). No começo de 71, a Equipe lançaria Hórus falou e disse: Grilação Mundial. A seleção, produzida por Big Boy e Pedrinho Nitroglicerina, seria trabalhada nos estúdios da Som Livre. O disco, um compósito da proposta dos discos dos Bailes e seleção de sucessos viculados pela emissora, entraria para a história como a primeira coletânea de rádio de segmento jovem a sair no mercado.
Ao fazer pesquisa em sebos, é possível encontrar os discos produzidos por Big Boy ao longo dos anos 70. São eles Big Boy e Ademir Lemos (1970), O Baile da Pesada (1971), O Baile da Cueca (1975), The Big Boy Show (1976), And the Beatles Were Born (1977) e uma parceria com Rômulo Costa, o primeiro álbum da Furacão 2000 (1977), que saiu depois de sua morte, naquele mesmo ano.
Lançado em 1970, a primeira coletânea
do Big Boy, ainda em parceria com Ademir, pode causar estranheza para quem é de
hoje. Na verdade, ele seria estranho até mesmo para quem o ouviu na época.
Afinal de contas, ali ele apresenta, pela primeira vez, Kool and the Gang, The
Meters, Canada Goose e The Buoys. Sem nenhuma exceção, os artistas presentes no
disco não eram conhecidos no Brasil. A maioria deles, caso do Kool and the
Gang, que iria ser mundialmente conhecido na era Disco, haviam lançado apenas
um ou dois compactos, e em selos obscuros e alternativos, como o Dee-Lite, a
gravadora do Kool and the Gang.
O mais interessante é que, naquele
tempo, não havia ainda a febre de coletâneas despejadas no mercado como
aconteceria no final daquela década. Mais: os artistas presentes no elepê
sequer tinham representação com algum selo no Brasil. Isso quer dizer que o
álbum é rigorosamente pirata. Ele saiu aqui pela Top Tape, que começava ali uma
parceria de anos com Big Boy. Não saberia dizer como eles conseguiram os
masters para a prensagem.
O que se sabe é que Big Boy
conseguia, através de várias conexões, cópias desses compactos. O álbum pode ter
sido fabricado a partir desses singles. Como esses grupos não tinham
representação aqui e mal eram conhecidos, o fato do disco ser bootleg ou não
passou batido. E além disso, o DJ, já programador e apresentador na rádio
Mundial, tocava essas faixas, tanto no seu programa vespertino quanto no
matinal Show dos Bairros que, apesar do que viria se transformar no final dos
anos 1970 e anos 1980, tinha uma programação pop e jovem.
Ou seja, Big Boy agenciou um tipo de
música (o funk que ele tocava nas boates Sucata e Canecão) influenciando uma
gravadora daqui (a Top Tape) a pôr ela no mercado e difundi-la no rádio pelas
ondas da Mundial.
Mais conhecido, o álbum Baile da
Pesada (1971) repetiria a mesma fórmula, amalgamando pop e funk, com artistas e
grupos desconhecidos no Brasil (e muitos deles ainda com relativo sucesso nos
Estados Unidos), como The Mardi Gras (de Nova Iorque, porém acabou fazendo mais
sucesso na Europa, com o single “Girl, I’ve Got News For You”), Bobby Bloom,
Katie Love, The Happenings, The Bluejays, Paul Davis, Great Jones, entre
outros. Big Boy introduzia compactos que recebia de fora, e montava a
coletânea, cujas faixas tocavam na Mundial.
Em O Mundo Funk Carioca, Hermano Vianna explica que, no começo, discos propriamente “de balanço” eram raros. Big Boy de certa forma instaurou um movimento que já acontecia naquele momento: os DJ de festas já estavam antenados ao que estava acontecendo em matéria de balanço em outras partes do mundo, mais especialmente nos Estados Unidos, a fonte do soul e do funk, gêneros que estavam, por assim dizer, entrando no cardápio musical das gravadoras, casas de espetáculo e rádio brasileiras naquele período.
Em tempos muito pré-internet, o grande capital do disc-jóquei
era o material que chegava de fora, quase sempre através de voos
internacionais; os comissários e aeromoças se transformaram em deales do que
ele chama de época da “transação de discos”. Essa demanda era bastante
disputada entre os DJs e a exclusividade desses lançamentos era o seu capital
social. E descobrir o novo som dançante era a grande corrida do ouro desses
discotecários.
Para um comunicador como Big Boy,
isso funcionava para os dois lados: tanto para o seu trabalho em rádio e
jornal, quanto para o repertório que ele podia trabalhar e pautar nas pistas de
dança. Ou seja, as atividades andavam de mãos dadas e o corolário disso foi
que, numa penada, ele serviu ao rádio, ao pautar a costumização de discos “assinados”
por emissoras (como o E Hórus falou e disse: Grilação Mundial).
Quanto à indústria dos bailes e seu público,
com os álbuns “de balanço”, como no caso da série Baile da Pesada. A partir
daí, já é possível perceber os processos de segmentação nas decisões de programação
das emissoras, como suas interfaces com as gravadoras que, cada vez mais,
passam e ver no rádio um espaço
importante em termos de visibilidade e rentabilidade. Porém, no caso de Big Boy
e o começo dos bailes, em 1970, ainda podemos dizer que vivia-se a aurora de
todo o circuito da cultura que iria de desenvolver a partir de então.
Referências
TOP JOVEM. O Globo. Rio de Janeiro: 3 abr. 1970, p. 8.
TOP JOVEM. O Globo. Rio de Janeiro: 27 abr. 1970, p. 11.
TOP JOVEM. O Globo. Rio de Janeiro: 26 mai. 1970, p. 13.
VIANNA, Hermano. O Mundo Funk Carioca. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
VAN HAANDEL, Johan Cavalcanti. Mapeamento das
Emissoras de Rádio e Gravadoras Envolvidas na Produção de Coletâneas de
Sucessos Internacionais nos Anos 70. In: Rádio
no Brasil [recurso eletrônico]: 100 anos de história em (re) construção /
organizadores Vera Lucia Spacil Raddatz ... [et al.]. – Ijuí : Ed. Unijuí,
2020.
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