Sunday, November 11, 2018

Helter Skelter





Fazendo uma clipagem do que saiu sobre o relançamento do White Album. Duas coisas me chamaram a atenção.

Uma foi a repercussão de entrevista do Giles Martin tentando refutar a tese que os Beatles estavam separados durante o processo de produção do disco.

A outra é um texto do Rob Sheffild na Rolling Stone desse mês sobre uma epifania que ele teria tido ao ouvir a versão embrionária de "Good Night"

Martin disse que, ao ouvir todo o material, ficou com a impressão de que, a despeito de brigas entre os quatro, que ele entende que ocorreram, o resultado é um trabalho rico, que seria pouco possível num clima de guerra no estúdio.

Sheffild, ao ouvir o outtake da última faixa do álbum, que John Lennon compôs para Ringo, entende que a canção era, na verdade, uma berceuse para seu filho Julian. O processo de separação dele com a primeira esposa e a união com Yoko era público e notório.

Para Rob, John fez a música para o filho, mas sentia-se fragilizado em tocar ou cantar nela. O processo de elaboração do arranjo, diz ele, mostra, como diz Giles, um momento de união da banda, principalmente no momento em que todos fazem vocalizações juntos.

Claro que, num momento de celebração como este, não convém mexer em velhas feridas. Além do mais, a gente sabe que uma união num conjunto de rock não é um mar de rosas.

Mas é interessante voltar a Abbey Road em 68 lendo, por exemplo, o Complete Recording Sessions, do Mark Lewisohn que, ao contrário da maioria dos biógrafos, resolveu passar o dia-a-dia do quarteto a contrapelo.

É curioso notar que havia tanto otimismo quando eles decidiram embarcar para a Índia. Mesmo que musicalmente produtivo - eles compuseram quase a totalidade do repertório dos próximos discos, o corolário não foi bom, a começar pela comida, que provocou a deserção de Ringo.

Ringo que seria o pivô de uma separação da banda no meio da urdidura do Álbum Branco, mas a sua deserção do estúdio foi, na verdade, o cúmulo e um processo lento que, como mostra Lewisohn ao entrevistar o staff do estúdio naqueles tempos.

Na verdade, ele não foi o primeiro. No começo das sessões, o pai de Giles coordenava a banda mas, com o tempo, viu que eles eram indomáveis. Resolveu sair em férias, e deixou instruções para Geoff Emerick que, em pouco tempo, também largou o projeto.

Nesse meio tempo, por causa de demandas dos Beatles proteladas pela EMI, entre elas uma mesa melhor, fez com que eles, segundo Lewisohn acabassem, mesmo que sem querer, descontando no pessoal da produção. Ou seja, se havia briga entre os quatro, havia ali um cúmulo de situações estressantes - além do lançamento do selo Apple, no meio do ano.

Como qualquer baterista, Ringo era o músico mais requisitado (e sobrecarregado) de quase toda banda. Esse foi um fator de disensão entre ele e os quatro (embora, no Anthology, todos acreditassem que cada um deles, respectivamente, estava sendo subestimado pelos demais).

Ou ele era obrigado a trabalhar de maneira incessante ou, na parte de mixagem, ele realmente não tinha o que fazer nos estúdios. Ao mesmo tempo, o uso contínuo e constante de overdubs fragmentava o trabalho em grupos. Não era uma banda em estúdio, como nos velhos tempos mas, sim, grupos de trabalho enxertando tapes o tempo todo.

O próprio Eric Clapton, quando foi fazer sua parte em "While My Guitar Gently Wheeps", estranhou que, ao contrário do Cream, os Beatles passassem tanto tempo enfurnados gravando. Clapton dizia que ele e seu trio ensaiavam constantemente fora,  gastando pouco tempo em estúdio, como nas velhas bandas de jazz, que gravavam elepês sem mixagens ou ensaios, matando a sessão em poucas horas.

O processo de escolha de George em colocá-lo como músico de estúdio foi, também, como forma de fazer com que John e Paul prestasse atenção em suas canções. Como aconteceria novamente, quando ele convidou Billy Preston, a banda resolveu comportar-se bem.

A maioria das faixas mostra quem eram os produtores. Se Martin trabalhou com eles, sua participação data de 23 de agosto, justamente quando Ringo foi comprar cigarros e não voltou. Nesse meio tempo, tiveram que revezar-se em faixas como "Back in USSR". Ele retorna justamente na noite em que a banda apresenta-se no programa David Frost, e grava os promos de "Revolution" e "Hey Jude".

Por outro lado, se havia brigas entre os quatro, esse processo de compartimentação de trabalho protelou o que seriam as sessões do documentário Get Back, que foram a gota d'água do que vinha acontecendo há meses.

Ken Scott, que ficou encarregado de tomar conta dos rapazes com a defeção branca do politiburo da produção, diz que, quando ficou a sós ao ser apresentado à Paul McCartney, ele respondeu: "é você quem vai ficar conosco? Então tudo bem mas, se não quiser ficar, então foda-se".

Com os Beatles no comando, o disco ficou menos "refinado" se comparado às produções de Martin. Na filosofia deles, parecia haver sempre um ponto de não retorno. O próximo disco não poderia ser igual ao anterior.

A própria capa é a ausência de significação ou parece ser a significação pela ausência de algo ou "algos", isso algo que fica em aberto para o ouvinte (quando discos tinham capas e havia arte nelas, enfim).

Com isso, o restante das sessões foi cada vez mais autoral, mas as faixas parecem ser o tempo todo paródias ("Back In USSR") ou auto-paródias ("Glass Onion") humor negro dylanesco ("The Continuing Story of Bungalow Bill", "Happiness is a Warm Gun") ou imitação de outros estilos, como vaudeville ("Martha My Dear", "Honey Pie"), english blues ("Yer Blues", um gênero que passou ao largo da carreira dos Beatles) e hard rock (Helter Skelter"), quando não John imitando Paul em "Good Night" ou o contrário ("Why Don't we Do It on the Road?), talking blues ("Rocky Racoon"), folk ("Blackbird") e experimentalismo com música concreta ,ou seja, um disco liricamente ao avesso de tudo o que eles haviam feito.

 como que um prelúdio à carreira solo dos quatro. John compondo coisas cada vez com a cara dele, como "Yer Blues", "Julia" e "Dear Prudence" e Paul tentando ser o "one man band", George com seu lirismo indiano e Ringo entronado como um crooner.  Suas colaborações aqui pareciam já desenhar o que eles fariam com o fim da banda.

Scott fala que eles reclamavam constantemente do equipamento dos estúdios, o que os fazia requisitar o Trident, que tinha, na época, uma mesa melhor. Em dado momento, John teria descontado a raiva no staff mas, depois, voltou a si e completou: "desculpe, não e como você, é com eles (o pessoal da EMI).

A despeito do clima aparentemente alegre em Esher, quando da gravação dos demos do White Album, parece que ao entrar em Abbey Road, o estresse era realmente constante.

O que não quer dizer que não existissem afetos entre eles, como nas sessões de "Birthday", quando tudo virou celebração, com direito a drogas lícitas, ilícitas e muita loucura ou nas conhecidas fotos do Mad Day Out, a sessão de fotos (de junho de 68) que mostra os Beatles quatro meninos felizes por estarem juntos, como no começo da carreira, talvez pela última vez.

O Mad Day Out parece, na carreira deles,  um exemplo sintomático que, se havia amizade entre eles, havia a certeza que aquela era da inocência estava morrendo e eles não podiam fazer nada contra isso, a não ser, encarar a vida adulta. É possível que isso, no campo das conjecturas, fosse esse motivo inconsciente de cisão, um reencontro que era, na verdade, uma despedida.

Quando eles retornaram para fazer seu último trabalho, tanto os quatro quanto George Martin e Emerick estavam ali como que comissionados do que como um grupo.

Dessa vez, eles não eram a outra banda, a do Sargento Pimenta, mas estavam fantasiados de Beatles para seu canto de cisne.

Claro que é um processo triste que ocorreu na vida de todos eles, de todos os envolvidos no processo. E como disse acima, a celebração do meio século do disco não seria o momento propício para comentar desses 'baixos'. Mas, ao contrário, isso de certa forma nos conforta, pois mostra o quanto eles eram humanos e tão próximos da gente. Que venha outros 50 anos.


PS: o box irá agradar aos fãs em geral porque muita coisa que aparece como outtake era desconhecido até pelos bootlegers mais empedernidos. Outros fãs, mais roxos, irão estranhar mudanças deliberadas em certas faixas do disco original, como os mixes de "Wild Honey Pie" e de "Long, Long, Long". 

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