Wednesday, November 14, 2018

Sonata de Outono



Acordo súbito de madrugada com o ruído do telefone. Achei que fosse hora de acordar, mas eram apenas duas e meia.

Pego o telefone, pronto? Era Beatriz. Me deu a dolorosa nova às duas e meia da manhã, depois de uma ligação do Antônio, soube de um nosso amigo comum: meu amigo Ricardo morreu atropelado saindo de Taquara quando vinha de surpresa para o casamento (casamento da Beatriz, marcado para o feriado), teria dito Antônio, responde Beatriz, aos prantos.

Mal conseguia falar. Ouvia ao fundo as vozes da irmã dela e da mãe, eis que o noivo dela pegou o gancho. Nervoso, tentou me contar o que ouviu que tinha ocorrido. Disse que o Ricardo parou o carro na estrada e estava tentando ajudar um homem que estava preso nas ferragens em outro acidente quando foi colhido por um caminhão bi-articulado. Teve morte instantânea, confirmada pela Polícia Rodoviária.

Me levanto me sentindo pesado, quase fora do meu corpo, do tempo e do espaço. Tento tomar café, sei que não vou mais dormir mesmo. Resolvo ligar para um amigo comum nosso mas, por um ato falho, acabo ligando para o número de Ricardo.

Ele atende. "Fala, xará (ele sempre me chama de xará, não sei o porquê). Estou na estrada, daqui a pouco eu chego". Espero amanhecer. Ato reflexo, escovo os dentes. Depois, faço espuma para a barba.

Me olho no espelho mas vejo Ricardo. Ele me ri e puxa conversa: "sabe, cara, é engraçado, Há coisa de uns dez anos atrás, eu tinha outra vida, vivia em função de futilidades, enfim, bobagens. Depois que me apaixonei, foi como se toda a minha vida anterior tivesse perdido o sentido.

Foi como se eu, depois dos trinta, tivesse virado adulto. Mas, ao mesmo tempo, me senti inseguro. Sabe? Parecia que eu estava entrando num outro mundo, onde eu queria ser uma pessoa melhor. E eu fiz de tudo para ser uma pessoa assim. Mudei de vida, joguei fora todo o peso extra daquela vida anterior. Mas tinha muito que aprender. Precisava provar para mim e para ela que eu a merecia, era uma batalha pessoal minha.

Mas nosso romance foi breve, e nós nos separamos. Em 2008, lembro que fui no casamento de um parente em Pelotas.

E eu era aquela pessoa posterior, pronta para a festa da vida, com beca e tudo, mas eu me sentia como se eu estivesse vestido como noivo para um casamento onde eu era apenas um convidado. Eu era o único sozinho naquela noite.

Mas eu estava feliz. Me sentia abençoado porque, mesmo só, ela estava dentro de mim, em meu pensamento. Eu ainda estava apaixonado. Tempos depois, eu a procurei, mas ela estava com outro. Então fui embora. Consegui um emprego em Taquara. Peguei os restos de mim. Lembrei do Rilke.
Eu até dei um exemplar para a Bia.

Ela disse que ia ler, mas não deve ter lido. Certamente emprestou o livro para alguém que nem deve ter lembrado de devolver. Você já leu o Cartas a um Jovem Poeta? Leia, é um livrinho curto, mas muito bonito.

Ele fala ao soldado coisas como ter coragem em sentir-se sozinho, de sentir o estranho que mora em nós. Algo assim, muito bonito, parecia até que ele havia escrito aquelas cartas para mim. Era como eu estava me sentindo naquela época. Lá eu li alguma coisa, um verso, onde ele diz: duro é mudares de vida. Não, não é bem isso. É algo assim... não lembro. Bom, o tempo passou, eu nem senti, eu havia mudado de vida.

Era até engraçado, não me via voltando no tempo. e se eu voltasse, a Bia estaria lá. Mas eu voltava em meus sonhos, e nós andávamos juntos nos mesmos lugares de sempre. Aqueles lugares não tinham sentido nenhum. Mas depois que andamos juntos, eles sempre me evocavam ela. Era sempre uma lembrança doce mas dolorosa, mas boa de sentir.

O tempo passou, eu me lembro de ir naquele casamento, eu era o convidado e ao mesmo tempo me sentia o noivo abandonado no altar. Sabe, xará, se quer saber, vou ser sincero com você. Eu sempre sou sincero com você. Não sinto mais nada por ela.

Sinto apenas que gostaria de sentir de novo aquela sensação avassaladora da primeira paixão. Eu não vou sentir aquilo nunca mais. Não que eu não vá conhecer outra garota e gostar dela. Mas aquela paixão pela Bia, da forma como foi, eu não vou sentir aquilo nunca mais, aquilo acontece uma vez na vida, é como uma epifania.

Termino a barba. Tive que trocar de aparelho porque o que eu peguei estava cega.
Encontrei Luiz, um amigo comum nosso, cedo pela manhã, num café, no centro. Ele sabia do casamento da Bia, falei do acidente. Ele ficou consternado. ia encontrar Ricardo amanhã, já que ele ia passar o feriado na capital. Juntos iam "relembrar os velhos tempos" do tempo da faculdade.

Falou: "como a vida é estranha, não é? De repente, um infortúnio desses acaba nos juntando. Concordei. Nos despedimos, eu fiquei na mesa do bar. Uma senhora senta na mesa ao lado com a filha.

Então chega Ricardo, senta na minha mesa.

Olha para os lados. Sorri: "eu sempre vinha com a Bia aqui. Não, na verdade, a gente veio aqui só uma vez. Ela estava terminando a monografia dela da Pedagogia. A gente marcou de ir na Eduardo Hirtz ver um filme do Bergman, o Sonata de Outono. Eu estava sem dinheiro, era um garoto perdido e pobre que tinha muito o que aprender...

Ele continua:

"Ela estudava, era bolsista, tinha conta em banco, eu tinha sido assaltado na semana anterior e estava sem documentos. Eu não era ninguém e me espelhava nela, achava ela adulta, resolvida, eu era mais velho do que ela mas tinha muito o que aprender. Ela não iria querer um cara como eu era, não é mesmo? Não tinha dinheiro nenhum mas dei o Rilke para ela de presente, foi aqui mesmo, nesse bar. Faz tanto tempo!

Lembro que antes a entrada era por ali e tinha uma máquina registradora daquelas antigas (aponta para o balcão)...sabe, ela pagou o meu café. Me senti envergonhado. Se me virassem de ponta-cabeça, só cairia o óculos. Mas estava tão feliz de estar com ela.

Depois, voltei muitas vezes aqui sozinho, só para lembrar daquele momento. Depois daquele dia, este é um dos lugares mais bonitos do mundo...".

Paguei o café e fui descendo a Andradas. Entusiasmado, Ricardo continuava explicando os lugares onde eles iam juntos, o sebo, a casa de cultura, o museu, a praça.

Antônio me deixa recado no telefone. Retorno o contato, ele me liga. Diz que o enterro vai ser no São Miguel às cinco da tarde. Por deus, que fim! Subo para o expediente da manhã mas souberam da história e me mandam para casa, não estava em condições de trabalhar mesmo.

Olhei o relógio. Eram apenas dez da manhã, um mormaço de novembro. Não sabia o que fazer com aquele dia pesando nas minhas costas. Entrei no Tuim, e fiquei bebendo até o meio-dia. Tinha bebido demais para um dia de semana, fazia um calor insuportável, mas estava me sentindo leve.

Subi a Andrade Neves até a Duque, estava procurando outro lugar para beber cerveja. Àquela altura da manhã, o centro estava repleto de gente, filas, ambulantes, tráfego.

Ricardo me disse que, dois anos depois, eles haviam retornado contato mas, depois que Bia se formou, era como se ela tivesse estabelecido outras prioridades. Achou que era uma fase dela, porém Bia foi se afastando, mas ele custou a entender, se tivesse entendido, não teria sofrido tanto, mas, como ele disse, ele a amava como um amor pueril, e foi um caminho sem volta, não iriam se falar nunca mais.

Era difícil de acreditar, diz ele, falando para mim mas como quem quisesse convencer a um interlocutor que era, na verdade, ele mesmo.  "É assim que as coisas são, não é? Se não, então como haveria de ser? Todo vínculo, disse ele, é um caminho para o sofrimento".

Admirei-me do seu novo espírito metódico. Ricardo havia mudado, trabalhava, sentia-se responsável, independente, e sempre dizia que foi a Bia quem mudou ele e ele era muito grato à ela. Porém sofria, porque o rompimento deles havia sido um ponto sem retorno e o tempo os havia afastado definitivamente.

Dizendo isso, ele parecia exorcizar os fantasmas dele, e isso me deixava feliz por Ricardo; mas eu sabia que ele não havia mudado. Ele queria um dia encontrar uma oportunidade de revê-la, como amigo, e contar essas coisas, e dizer o quando ela foi importante para ele. Então o casamento da Beatriz seria o momento oportuno, pegou a estrada para Porto Alegre, a fim de fazer uma surpresa.

Resolvi não ir ao enterro. Nada fazia sentido naquela hora do dia.  Eu estava cada vez confuso e aterrado, e fazia muito calor. Desci a João Pessoa e vi que tinha sessão no cinema universitário. Era um ciclo do Bergman. Ia passar o Sonata de Outono. Pensei: dane-se, vu ficar aqui e vou ver o filme.

Depois de muita demora, e muito calor, muito embaraçado, o senhor da projeção explica que o ar condicionado da sala estragou, então a sessão teria que ser adiada
.
Mais confuso, voltei à rua, atravessei a João Pessoa. Vi o Van Gogh aberto.  Entrei e, na penumbra, no fundo do salão, longe do estéril turbilhão da rua, pedi outra cerveja. No meio da garrafa, toca o telefone. Era o Luiz, do velório: "cadê você, cara? Tá todo mundo aqui!". Eu: "estou chegando". Agora eu teria que ir.

Saio até a calçada, com o peso do dia nas costas, olho para o curso da avenida, até a cordilheira do morro da Polícia contra o azul fatigado da tarde. Fui até a fila dos táxis,


Ali estava Ricardo à minha espera.

Parecia mudado: mais jovem, alegre, muito bem penteado, muito bem trajado, com um avoengo terno preto e uma flor branca na lapela, como um Proust santo. A corrida foi breve.
No caminho, tentou lembrar de algo como um trecho do Rilke enquanto a Redenção corria devagar do meu lado da janela.

"Por que não pensar que a nossa divindade não é aquilo que está por vir, o que se encontra... não não é isso". Pensou. E tentou novamente: "o que impede de projetar o nosso nascimento nos tempos que estão por vir, de modo a que pensemos a viver a nossa vida como um hino, ou um dia quente e doloroso na história de uma grande gravidez? Tudo o que acontece conosco é um grande começo".

Então chegamos. Luiz tinha razão. Ricardo tinha muitos amigos, estavam todos ai, foi muito comovente.
Ficamos ambos olhando tudo em silêncio. Então perguntei:

- Para onde você vai?
- Vou dormir. E você?
- Não sei - respondi-lhe.
- Adeus, então, xará (mal tentava eu disfarçar as lágrimas).

Porém, antes de partir, estalou os dedos.
- Ah, lembrei daquela citação completa do Rilke.
- Qual é?
- Na verdade, é do Torso Arcaico. É assim: "se não fosse assim, seria pedra e não mera pele de fera, seus limites não encontraria desmedida, como estrela, pois ponto ali não há, que não te mire. Força é mudares de vida".


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