Thursday, November 22, 2018

A Tempestade: pós colonialismo e o 'Brasil invisível'


Batalha da Guanabara, 1560

A adaptação de Otello, o Mouro de Veneza para a ópera por Verdi (1887 libreto de Arrigo Boito) sempre nos provoca a atenção por causa da sua abertura, que se dá em meio a uma tempestade, e essa cena, como um começo, me parece de um efeito dramático impressionante.
É bem sabido que Verdi (1813-1901) era um grande fã do bardo inglês. Tanto que, segundo consta, em sua vila, sua biblioteca se resumia a uma cópia do Lohengrin, do Wagner, e a obra completa do autor de Hamlet.
O que me chamou a atenção foi que, sabendo dessa influência do Shakespeare no compositor da La Traviata está plasmada em sua obra. Além de Otello, Verdi montou Macbeth (1847) e Falstaff (1893), sua derradeira obra, baseada nas Alegres comadres de Windsor e Henrique IV partes I e II.
Na verdade, esse nariz de cera é porque areditamos que essa abertura de Otello, fruto do libreto, foi inspirada, de certa forma, no primeiro ato de A Tempestade (1610-11).
Verdi não adaptou essa que é o canto do cisne do dramaturgo elisabetano. No entanto, dentro das possibilidades poéticas da recriação artística, dentro da teoria que Volcato (2007) chama de palimpesto, poderia estar dentro das diversas influências da peça shakespeareana, motivo de debate desde hoje.
Em sua tese, Volcato vai mais além das chamadas teorias pós-colonialistas, que observam como a escritura de A Tempestade se relaciona com uma época em que a Europa havia não apenas descoberto o novo mundo como repercutivo, através da imprensa (ou de livros) um considerável número de escritos que lidam com o imaginário da era das descobertas.
A teoria do "palimpesto" não tem o objetivo de buscar citações manifestas dentro da peça mas, sim, analisar todo o contexto histórico, tando da era dos descobrimentos, sua repercussão no Velho Mundo (textos como De orbe novo, de Erasmo, ou de Peter Marty e Montaigne, (Sobre os Canibais).
Mais do que isso, o autor pretende em sua tese preencher o que ele entende como "lacunas" que existem nos estudos sobre as influências de Shakespeare em A Tempestade. A sua teoria é a de que o autor inglês conhecia as biografias tanto de Carlos V quanto de um personagem conhecido dos brasileiros, Nicolas Durand de Villegagnon.
Villegagnon, personagem que teria sido redescoberto tardiamente pelos franceses, antes de fundar a França Antártica, em 1554, já era cavaleiro da Ordem de Malta, diplomata, almirante da Bretanha (afundado vários navios ingleses na região) e foi uma espécie de condottiere (mercenário) ao ajudar nobres católicos escoceses a resistir contra a Inglaterra, além de ser responsável pelo rapto da pequena Maria Stuart (futura mãe do rei James, fato que não passaria despercebido por Shakespeare) para a França.
Como observador de campanha, ele acompanhou Carlos V em sua vitória sobre Argel, tendo escrito um relato sobre a expedição, Carolus V Imperatoris Expeditio in Africam ad Argeriam, que foi amplamente difundida na Europa em várias linguas.
Para Volcato, muitos desses relatos sobre guerras e naufrágios dialogam com a concepção de A Tempestade, mesmo que a ilha de Próspero fique em lugar diverso (nas caraíbas).
Ele demonstra que, a despeito de que os primeiros estudos sobre a peça façam uma leitura "metalinguística" (uma peça falando da representação de uma história, algo recorrente em Shakespeare), teorias pós-colonias vêem o enredo como engendrado à todo aquele imaginário.
Caliban, por exemplo, seria anagrama de "canibal", o discurso de Gonçalo sobre uma utopia de um novo mundo ou da relação de Próspero com Ariel e Caliban, personagem que é interpretado por muitos analistas como o protótipo do autóctone irascível, Ariel é vista como o espírito do bom selvícola.
Contudo, além de tais estudos, que fazem parte do quabra-cabeças do palimpesto que está por trás de A Tempestade, Volcato entende que imagens, fatos, geografia, muitas coisas da peça estão interligadas à Carlos V e Villegagnon.
Falando em Mary Stuart, Volcato diz que, mesmo que não seja possível querer cobrir toda a cronologia. Se ela foi raptada com três anos (1545). Se somarmos dize anos, temos 1557, ano da segunda chegada de Villegagnon na França Antártica.
Quando Próspero e Miranda chegam à ilha, Ariel foi libertada depois de doze anos. Com quinze anos, Miranda pretende desposar Ferdinando, filho de Alonso, rei de Nápoles. Com a mesma idade, Mary casava com o delfim filho de Henrique II, que foi o rei que mandou Villegagnon para estreposto colonial no Brasil.
Ao mesmo tempo em que busca revelar tais indícios, o autor tenta demonstrar que Shakespeare, dentro da sua própria agenda, estava omitindo elementos do novo mundo (do Brasil ou da América como um todo) por não ver razão em descrever um novo mundo que não era inglês, embora tratem-se de especulações a respeito dessa 'invisibilidade' da América, que parece falar mais pela "ausência" no texto.
Já sobre o pequeno texto de Carolus V Imperatoris Expeditio in Africam ad Argeriam, Villegagnon observa o uso primitivo de algeirs (depois a terra de Sycorax) ou a constante utilização da palavra "tempestade" no relato.
Os cvaleiros de Malta, por sua vez, são mencionados cinco vezes, entre eles Ferrante Gonzaga, vice-rei de Nápoles. Ele, entre outros, a mando de Carlos V comandou o ataque à Argélia em 1541 e, invetido por Carlos, conquistaria o título de governante de Milão até 1554.
Passagens de Villegagnon, por sua vez, teriam similaridades com o retorno de Túnis e uma tempestade que seria aquela que Shakespeare criou no começo de A Tempestade. Ao contrário da peça, muitos pereceram nessa tempestade, e Villegagnon foi testemunha dessa efeméride.
Muitos diálogos da peça, ao mesmo tempo, parecem representações de personagens europeus, no entanto, como observa o autor, parecem falar de uma outra realidade, que ele entende que parecem inspirados pelos relatos sobre geografia, modos descritos pelo frei André Thevet, cosmógrafo do rei da França, quando em missão nas cotas brasileiras.
Já respeito de possíveis relações de nomes ou lugares em Shakespere, muitos críticos mesmo entendendo que o vate inglês não fosse muito preciso com relação à geografia (como nas alusões em Noite de Reis, por exemplo), há muitas possibilidades, no campo das cogitações, de que a ilha de Próspero, dadas as leituras do autor de Rei Lear de André Thevet e de que o protótipo da ilha de Villegagnon seja a França Antártica.
MaIs: nomes de personagens como Ferdiiando e Alonso mais parecem nomes de nobres detentores de cargos nas américas ou de reinos ou ducados da Baixa Europa, numa curiosa hibridização dos personagens em sua caracterização.
O que o autor acredita é que, desde o século XVIII até hoje, os estudos focam o imaginário do local onde a peça ocorre fica nas caraíbas, ou no Mediterrâneo, mas nenhum cogitou o Brasil.
Sobre a escravidão, Volcato entende que, na épca de Shakespeare, a prática havia sido tornada corrente naqueles tempos, mas não se desenvovera nas colônias inglesas senão de forma embrionária, pelo menos na época do bardo elizabetano. Logo, Ariel seria o tipo de "escravo" ou seja, um servo que trabalhava para um senhor por um determinado tempo.
Ao mesmo tempo, ele entende que havia, ao longo do no século XVII, um discussão a respeito de como a sociedade da época via a prática da escravidão, ora legitimada por fontes (como a Política de Aristóteles), ora quesionada pelo fato de não possuir nenhuma base legal, e essa questão estaria, de certa forma, poste em debate em A Tempestade, na figura de Caliban e Ariel.
Um exemplo que Volcato julga sintomático dessa 'invisibilidade' do que seria essa possível localização da ilha de Próspero como situada em terras sul-americanas ele busca em The Tempest Critical essays de Patrick Murphy.
Este autor liga Montaigne ao trecho de Ferdinando como um personagem cuja caracterização parece estar numa feitoria (citações de Miranda e Ferdinando sobre pilhas de madeira para consumo ou fogo), provavelmente especializada no corte e expotação de madeira (presumivalmente o pau-brasil). Do contrário, por que haveria de, no enredo, Caliban de ser tão necessário para o corte de madeira num país tropical como o Brasil (daí a razão do título da tese de Volcato).
Por fim, o que é o cerne do seu pensamento aqui é entender e problematzar, junto com possíveis paralelos históricos na esxritura da peça, essa recorrente 'sublimação' da imagem da experiência da exploração européia em terras sul-americanas, experiência que fora transcriada de forma subliminar na pena de Shakespeare (a partir de todas as possíveis fontes disponíveis na época sobre o tema dos descobrimentos, em crônicas e livros em geral, disseminados pela Europa) e da forma como essa visão européia foi, durante muito tempo e a partir dali, tratada de forma "subliminar" (como uma 'espiral de silêncio', usando uma figura da teoria de comunicação, um desagendamento temático proposital ou negligente), e que isso não pode ser mais negligenciado depois de analisar-se a figura proeminente de Villegagnon e da França Antártica nesse quebra-cabeças.
Próspero, como místico e nobre, em sua ótica parece possuir elementos do lado “negro” de Agrippa, escritor místico ligado à Carlos V, com elementos de Villegagnon em seu respectivo lado negro, como o Caim das américas (relacionado signicamente com Caliban), dado à suas polêmicas religiosas entre o catolicismo e calvinismo na França Antártica. Ambos, aliás, divididos entre credulidade e ceticismo.

Sobre questões do novo mundo e a teoria da invisibilidade do Brasil, Volcato diz que, assim sendo, se essa invisibilidade foi criada, reproduzida e perpetuada na peça, conscientizar-se desse fenômeno nos permite exorcizar esse elemento oculto. Da mesma forma, diz ele, ser capaz de reproduzir a possibilidade da existência desse Brasil invisível em A Tempeestade é perceber que temos em Shakespeare 'ecos' não apenas os primeiros americanos nativos mas os primeiros escravos afriicanos também.
Quando ao trabalho, diz o autor, além de dar conta da existência até a presente data de lacunas na percepção dos críticos e também até a respeito da nossa compreensão do processo criativo do bardo inglês e seu manejo de fontes e (seus processos criativos), relações com a realidade histórica da época ora manifestas ora ocultas e, mais especificamente, entende Volcato, sobre o nascimento de A Tempestade, sua pesquisa pode contribuir para que o Brasil “fique menos invisível para os críticos mais insignes de William Shakespeare”.


BIBLIOGRAFIA:
VOLCATO, José Carlos Marques. Pilling up logs in a brave new world: Brazilian invisibility abroad the genesis of Shakespeare's The Tempest. PortoAlegre, 2007.
SHAKESPEARE, William. A Tempestade. Tradução de Beatriz Viegas Faria. LPM, Porto Alegre, 2002.


No comments: