Wednesday, June 13, 2018

O Primeiro Compositor

Perotin


Na Idade Média, a identidade de um artista era anônima. Não apenas nas artes plásticas como na música, por exemplo, o destino da imensa maioria daqueles criadores que viveram até a Renascença era permanecer desconhecido. Como diz Luiz Roberto Lopez, no seu livro Sinfonias e Catedrais, o artista da fase românica era anônimo pois a arte era parte da devoção coletiva e não prerrogativa individual.
Ou seja, em parte, como era do espírito da época, a importância da arte estava na obra em si, não no seu autor.
Além disso, durante muito tempo, e naquela época isso não era diferente, não havia diferença, por exemplo, entre um compositor e um simples artesão. Na verdade, até o Iluminismo, os conceitos de gênio ou de artista eram diversos do que se poderia supor naquelas priscas eras.
Mesmo na época de um Haydn, mesmo que tivesse boas relações com os Eszterházy mas, no fim das contas, ele usava o libré e ceava com os criados. Como se vê, os tempos eram diferentes.
Tantas obras que nasceram no começo da era moderna e que para sempre permanecerão anônimas, artistas que dedicaram a vida inteira à arte ou à escultura e que sua fatura artística perpetuou-se mas o seu nome não. O que dizer daqueles mosaicos bizantinos? Os belíssimos mosaicos da Basílica de São Vital, em Ravenna, por exemplo, quem os criou?
Na música, não seria diferente. Muito da primitiva produção era anônima. Cantochões, os cantos gregorianos, mesmo que fosse necessariamente hieráticos e esquemáticos, havia um compositor por detrás daquelas peças. Todos, pelo menos até a aurora da polifonia, permaneceram desconhecidos.
Parafraseando a introdução dos livros do Asterix: todos? Não. Houve um deles, que foi contemporâneo do início da construção da Igreja de Notre Dame, cujo nome foi eternizado por um detalhe fortuito, o seu nome é Perotin.
Até o século IX, a música europeia viva a chamada monofonia. A grande revolução polifônica iria ocorrer a partir do século 13, com a ars nova. Perotin foi o precursor dessa prática, com a ideia de organizar as vozes, inicialmente na proporção de três mais uma, sendo três delas 'rápidas' e uma lenta.
A polifonia (com o advento do Organum) seria também o momento da substituição do tetragrama pelo pentagrama.
No começo da polifonia, as vozes cantam e trocam sílabas juntas, o texto lido ganha mais compreensão e, se comparada à ars antiqua, ele poderia ter maior extensão.
Na ars nova, elas se agrupam em duplas (2+2), porém sem um território específico para cada uma das respectivas vozes. Se na monofonia (canto gregoriano, etc) a mensuração era ternária (ainda não existia o "compasso"), a partir do Organum, a mensuração passa a ser binária e com o aumento da velocidade da música.
A palavra-chave da nova música é "organização", organização de vozes. O Organum, atribuído a Perotin, foi a forma de reestruturar a música polifônica a partir dali.
No organum, o tenor ( o que 'retém' a música) era a voz principal, que entoava a melodia composta sobre um tema já pré-estabelecido, de certa forma como um atavismo do canto gregoriano. A partir dali, o compositor trabalhava a melodia nas vozes (em duas ou em quatro) que acompanham a principal em melisma, ou seja, várias notas para uma mesma sílaba de texto. No Organum de quatro partes, por exemplo, as vozes organizam se de forma rítmica sobre o canto estático do tenor.
Esta era a forma como a polifonia foi desenvolvendo-se no começo do século 13 ou, se pegarmos como referência a Escola de Notre Dame, no período de tempo que a catedral fora construída. Dessa forma, Perotin e a polifonia estão necessariamente ligados à história de Notre Dame, construída entre 1163 e 1345.
É necessário salientar que a produção musical, nesse período, estava vinculada à Igreja. Muitos desses compositores – ou artesãos da música em geral – trabalhavam música litúrgica para as missas.
Como muitos viram em O Nome da Rosa, de Umberto Eco, todo o serviço religioso estava regulado por horas canônicas. A música produzida para o serviço religioso, por sua vez, era elaborada e executada para uma determinada hora, data ou ou período religioso.
Nascido em 1160, o mestre da escola parisiense, como um Moisés moderno, ele não viu o prédio ser finalizado. Porém, nasceu com ela e viveu durante a construção da Igreja.


Poderíamos fazer um paralelo entre a ars antiqua, o cantochão, e a ars nova, que surge com Perotin na Escola de Notre Dame - não gratuitamente, já que trata-se de uma igreja gótica, para traçar um paralelo entre essa passagem na história da música com seus pontos de contato com a arquitetura. 

Assim como a utilização de vozes paralelas e melismas, ao contrário do ambrosiano monótono, nesse período observa-se a mudança do antigo românico, estruturação da austeridade monástica, como diz Lopez, para o gótico. Ao invés de oprimir, o novo estilo convida o espectador para o espetáculo da vida, com a variedade que uma catedral gótica apresenta: rendilhados de pedra, flechas elevadas, capitéis estilizados. Contra a contrição do românico opôs-se uma nova arte exuberante.
Foram atribuídos à Perotin quatro peças, o Viderunt Omnes e Sederunt principes V. Adiuva me domine (que é entoado no final d' O Nome da Rosa), o Posui Adiutorium e um Nativitas.
O famoso Sederunt, (possivelmente composto em 1199, ou seja, sessenta anos depois da independência de Portugal, com a dinastia de Borgonha!) que Eco descreve de forma literária em seu famoso romance, por exemplo, era executado no período do advento (que são as quatro semanas anteriores ao Natal), e estava relacionado à Santo Estêvão, o primeiro mártir da Igreja Católica. O dia do santo é 26 de dezembro; logo, esse organum de quatro vozes era tradicionalmente executado nesta data.
Analisando o estilo do Organum, alguns musicólogos atribuem ao compositor parisiense outras nove peças, entre elas, uma Dum Sigillum Summi Patris.
O leitor há de se indagar: como é que, no meio de tantos artistas, o nome de Perotin permaneceu?
Um estudante inglês teve aulas com o mestre, cujo nome já era certamente conhecido além do Canal da Mancha. Com os subsídios, ele escreveria um tratado de música medieval e conviveu com Perotin entre 1270 e 1280. Mesmo assim, pouco se sabe da vida do criador do Organum como se, através desse estudante, soube-se tanto a respeito da escola de Notre Dame.
O que se sabe é que, através desse mesmo pesquisador inglês, é que, mesmo decorridos quase meio século da morte de Perotin (e Leonin, mestre deste), eles ainda eram bastante conhecidos e famosos na França e em parte da Europa. por conta disto, o Anônimo IV, sem o saber, deu nome ao que chamaríamos de "o primeiro compositor". 
Claro que não poderíamos deixar de lembrar da Santa Hildegarda Von Bingen (1098-1179), com a diferença de que ela fazia (e muita) música religiosa profana, isto é, música que não era produzida propriamente para a Igreja. Isso aliás nos permite dizer que, com efeito, existia uma produção profana religiosa, isto é, feita para "fora da igreja". Da mesma forma que muito da música profana daqueles tempo, com a registrada em códices, como a Carmina Burana, eram, também compostas por religiosos, contudo, estas sim, profanas não-religiosas.
Por ironia do destino, se o jovem aprendiz permitiu que a posteridade soubesse quem foram os mestres daquela notável escola parisiense de polifonia da Idade Média, o seu nome, como o de tantos, também permaneceu desconhecido: o musicólogo do século 19 Edmond de Coussemaker, ao escrever sobre o episódio, porém, referiu-se ao pesquisador inglês como o "Anônimo IV". O anônimo que perpetuou o nome de Perotin. 







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