Thursday, April 27, 2017

The Georgia Peach


Little Richard

No último feriadão eu reli a autobiografia do Little Richard, escrita pelo Charles White, um DJ britânico. O livro saiu por aqui nos anos 80 (nos tempos heróicos da LPM, quando ela ainda era uma editora alternativa e muitos daqueles títulos daquele tempo há muito estão esgotados).

Lembro que eu achei o livro na época na Miscelânea, uma banca que ficava entre o MARGS e os Correios. Eu peguei o livro acho que porque eu estava cavando alguns discos de rockabilly da finada Brasidisc nos sebos de Porto Alegre. Naquele tempo, como se sabe, a internet ainda não existia e um livro como esse era uma chance única de conhecer aquela história. Mesmo publicações de música, revistas em geral, voltavam-se para coisas daquele tempo.

Eu, que era um fedelho de uns dezesseis anos, não gostava nem um pouco do que tocava no rádio (hoje eu tenho muita saudade das canções dos anos 80, quem diria?) e, em pouco tempo, era um fanático roxo por rockabilly e todo aquele material que foi produzido nos anos 50, como, por exemplo, a trilha do filme Loucuras de Verão.

Aquilo era o tipo de coisa que eu procurava em vinil naquele tempo. A gravadora que mais se especializava nesse catálogo era a Brasidisc. Lá por 87, eles lançaram uma coletânea, em parceria com as TVS/SBT, intitulada "O Melhor dos Anos Dourados". O lado A era anos 50 e o B, anos 60. Foi mais ou menos desse elepê que eu saí a à cata de outros discos similares, muitos com fonogramas de onde foram extraídos aquelas faixas do disco.

Desses, eu catei o Georgia Peach, do Little Richard. Achei curioso anos depois que esse disco, na verdade, era uma coletânea bem irregular, e que a primeira parte eram todas regravações que ele havia feito para a Vee-Jay, em 1964. Isso me deixou bem frustrado, e achei aquele material bem lado B do disco pouco ou nada interessante.

O engraçado é que eu não lembro seu eu comprei o disco antes do livro, ou um junto do outro. A verdade é que a tudo o que eu aprendi sobre rock foi na autobiografia do Little Richard.

Claro que, para um guri de 16 anos, aquele livro era um escândalo, tanto pela loucura e a insanidade da juventude dele, vestindo-se de mulher em espetáculos circenses, em vaudevilles ou até mesmo em minnistrels. E aquilo era a cultura daquela juventude pobre, entre a religião, a música gospel, o rhythm'n blues.

Richard bem que aprendeu muito sobre como ser um grande performer naqueles dias. A música, ele aprendeu nos tabernáculos: aquilo era uma segunda natureza. Nós, aqui no Brasil, não temos a menor ideia da influência da música gospel nos norte-americanos, principalmente nos habitantes do sul. Isso explica por que tantos artistas do rock dos anos 50 gravaram discos do gênero em todos os tempos.

Da Brasidisc, eu achei também o dance Album do Carl Perkins. Depois de ler o livro do Richard, sempre achei que tanto Richard quanto Perkins foram injustiçados em favor do Elvis. Ou, no caso do Richard, do Pat Boone que, a despeito de ter regravado muita coisa do Reverendo Penniman, sempre reconheceu a primazia do autor de "Lucille". Ao mesmo tempo, sempre achei que Perkins e Richard fossem dois expoentes de duas respectivas vertentes que, juntas, formariam o rock.

A música do Richard estava impregnada daquele soul que vinha dos spirituals, do gospel, e o R&B. Perkins era uma versão jovem do hillibily e do honky tonk. A diferença é que, como eles eram jovens, eles adaptaram aquele legado à sua maneira. O rockabilly cortava aquele ranço caipira a la Hank Willims, mas não a essência da coisa: a difernça é que eles trocaram a roupa de cowboy e os fiddle players pela bateria, algo impensável nos discos do Williams. E Richard, da mesma forma, adaptou a postura de palco (certamente influenciado por pastores, como James Cliveland, do lado religioso, e de Esquerita, do lado "secular" da coisa), somado a um senso de performance nunca antes vista. Richard era glitter antes do glam rock.

Na verdade, quando eu li o livro pela primeira vez, não conhecia tanto a história do rock a ponto de poder versar sobre essas coisas. Hoje, relendo o livro, ao mesmo tempo em que vejo Richard em Prince, no Creedence, em James Brown, em Hendrix, Otis Redding e em muitos outros, influências tanto óbvias quanto referentes, como no caso confesso (mas também óbvio) de Elton John.

Reler a autobiografia do Richard pois me fez retornar ao tempo da primeira leitura e fazer um contraponto com aquele passado e com a minha primeira formação como ouvinte.

Na verdade, lembro agora: eu comprei o segundo disco da trilha sonora do filme La Bamba. Até então, eu tinha a trilha de outro filme, no mesmo estilo, o "Conta Comigo" (que eu vi na Cinemateca Paulo Amorim, pois ele não saiu em circuito comercial), que tinha Chordettes, Buddy Holly, shirley And Lee, Coasters, coisas assim. eu me apaixonei por aquele tipo de música e não entendia por que aquilo não tocava no rádio. Parecia que os anos 80 fizeram de tudo para que as pessoas esquecessem aquelas músicas, e o fato de não existir, na época, uma forma de entrar em contato com aquilo (como hoje), fazia com que existisse um enorme hiato cultural entre duas eras, de músicas que estavam sendo progressivamente enterradas pelo tempo, e não era pelo fato delas serem ruins. Até porque, com o American Grafitti, houve um revival daquelas canções, cujo paroxismo certamente é o Grease.

Ou seja, sempre foram filmes que trouxeram aquelas músicas de volta. O La Bamba era outro exemplo, já nos estertores dos 80, de outro episódio onde uma fita recordava os anos 50. O próprio cover de "Donna" e "La Bamba" chegaram a tocar muito no rádio na época. Pois o segundo disco da trilha do la Bamba, o "2", era composto de faixas originais e que apareciam incidentalmente na história, como Skyliners, Chuck Berry e outros.

Pois a primeira faixa era "Readdy Teddy". lembro que eu fiquei muito impressionado com aquilo. Era a faixa do primeiro elepê do Richard, e a gravação de 1956, com o Earl Palmer na bateria. Aquilo era fantástico. Quem era aquele cara com aquela voz, que parecia voar como um foguete acima de todos os mortais, cantando aquilo. Meses depois (para ver como era sem internet) que eu descobri que Little Richard era negro. E, quando nós lemos os depoimentos da autobiografia dele, há um trecho com o John Lennon dizendo que ouviu "Long Tall Sally" através de um amigo e chegou a conclusão que 'aquilo' era muito melhor do que o Elvis.

Então, eu acabei acho que descobrindo os Beatles (que eu já conhecia, de um White Album que eu havia ganho de aniversário com 10 anos e que eu nunca ouvi porque nunca vi sentido nenhum naquele disco com capa branca e selo com uma maçã inteira e outra cortada no verso...) porque, quando eram garotos, como eu, os Beatles ouviam e gostavam do mesmo tipo de música que eu gostava. Ou seja, minha identificação com eles deu-se da forma mais estranha possível.

Quer dizer, a partir de "Ready Teddy" que eu descobri o Richard, achei o livro e o disco. O álbum da Brasidisc, bem oportunista, porque saiu na esteira do sucesso da minissérie da Globo, e chamava-se O Ritmo dos Anos Dourados. O disco abria e fechava com Richard. Foi então (agora recordo) que catei o Georgia Peach.

Mas notei que as faixas todas eram regravações. Na verdade, o livro explica: Richard lançou o primeiro trabalho pela speciality. Depois, ao converter-se, gravou um LP gospel muito subestimado, mas produzido pelo Quincy Jones. Logo, essas faixas do Georgia Peach eram da época da Vee-Jay (1964-65). O lado B tinha "Going Home Tomorrow", "Without Love" e "Going Home Tomorrow" (do Don Covay). Alguma coisa contava com Maurice James, o futuro Hendrix, na guitarra. Fiquei frustrado porque as clássicas eram regravações. Porém, hoje acho muitas delas melhores do que as originais.

O curioso é ver, do ponto-de-vista musical (para quem quiser saber de todos os bastidores bizarros da carreira dele, recomendo pois o livro), que, num primeiro momento, ele sofreu com a concorrência com artistas brancos, mesmo tendo sido o primeiro a quebrar com a barreira de público, integrando todos racialmente, pela primeira vez no rock.

O hiato religioso dele de 1958 até 63 foi contra a carreira dele no sentido que Richard perdeu muito do que surgiu na música naquele tempo: numa época em que músicos começavam a desbravar as possibilidades de estúdio, ele ainda era um cara do palco. Fazendo um paralelo com o Elvis: o Rei ficou de fora dessa 'revolução' enquanto estava "perdido" em Hollywood. Quando procurou retomar musicalmente o caminho dele, acabou optando pelo palco, e deixou-se levar pelo comodismo e pela total falta de ambição musical.

Richard, por sua vez, teve primeiro o "retiro espiritual" em seis anos que foram cruciais na mudança do mercado musical. Tanto que, quando ele retoma a carreira "secular", ele é quase atropelado pela onda da Invasão Britânica (que ele conheceu desde e começo, tocando com os então desconhecidos Beatles e Stones, mas nunca imaginou que eles fossem atravessar o Atlântico daquela maneira). Naquele mesmo tempo, a nova geração estava tomando conta dos estúdios e ditando suas próprias produções.

Enquanto isso, Richard tinha a virtude do palco, e precisava de um produtor que o ajudasse nisso. Ele mesmo diz, em determinado trecho do livro, que ele penou com péssimas produções que foram levando ele e sua banda numa irregularidade de mudança constante de selos (Vee-Jay, Mercury, Reprise, Okeh), e nunca conseguiu decolar, a não ser com um single nos anos 70, "Freedom Blues".

Outro fator que ia contra Little Richard: muitos que acreditavam em sua elevação espiritual como pastor passaram a rejeitá-lo. De roldão, muitas rádios do sul o baniram da programação (ao mesmo tempo em que ele não apresentava material consistente e constante), ao passo que outros disk-jockeys, numa época em que, também no sul, a audição era segmentada em favor de artistas negros de emissoras "negras" voltados ao público negro, e que preferiam o som da Motown, Stax, FAME e congêneres.

Richard defendia-se dizendo que não queria ser um Wilson Pickett, não queria ter a música dele associada a um mercado propositalmente tão restrito já que, desde o começo, ele não fazia distinção de cor no tocante ao seu público.

Por último, emissoras de tevê achavam sua performance, com suas roupas e atitude excêntricas demais para a televisão. Ele entendia isso como puro racismo. Mas, como diz o ditado latino, são tempos e modos e, hoje, é risível imaginar que o público se chocasse com a performance dele, comportada até demais com o que vemos agora (e que provavelmente nasceu a partir da própria transgressão perpretada por Richard, há seis décadas).

No fim das contas, ainda em paralelo com o Elvis, Richard optou por investir totalmente em shows em detrimento do trabalho em estúdio (a Reprise, que era uma grande gravadora, foi acusada por ele de não interessar-se em divulgar seus discos, muito embora ele tenha se dado conta de que, como não podia deixar de ser, o esquema de jabá nos anos 70 já tinha se transformado em uma segunda natureza da indústria cultural em todo o mundo) a partir de Las Vegas. Num segundo momento, ele de fato afundou-se num cotidiano de bebida e drogas que só não acabou com ele (como acabou com Elvis) porque ele voltou-se, mais uma vez, para a religião.

Na mesma época em que Charles White lançou o disco, Richard tinha voltado para o mundo da música. Ao mesmo tempo, passou a entender que o rock não era tão demoníaco e, finalmente pôde conciliar tanto música quanto religião (lembrando que a história dele vai até o começo dos anos 80 e o filme feito sobre a obra vai até o começo dos 60). Mas, pelos depoimentos, tanto dele quando de gente como Art Rupe e Bumps Blackwell, mais do que uma mera biografia, a obra ajuda a entender como era a indústria do disco e de entretenimento a partir do começo dos anos 50 (as primeiras gravações de Richard são de 51), e como as duas vertentes, a do rockabilly e a do rhythm'n blues se fundiram numa pororoca chamada rock. O exercício de investigar essas origens sempre faz com que a gente aprenda algo mais e é uma fonte inesgotável de debates — graças a Deus (ou a diabo) — sem fim.




PS: Curioso que, na mesma época em que saíram esses discos e o livro, foi quando as lojas de disco começaram a receber os primeiros compact-discs. Naquele fim dos anos 80 e por muito tempo ainda, era um ítem impossível de comprar, tanto o disquinho quanto o aparelho. E lojas, como A Discoteca, recebiam coleções tipo movie play de coletâneas de artistas de anos 50. Aquilo era uma loucura, mas era um sonho d (elirante)istante, porque eram importados e não sairiam no Brasil. Se saírem, eu não lembro de ter visto. A verdade é que isso era suficiente para ver que o CD estava fazendo uma espécie de reciclagem de décadas de indústria da música a ser retomada na era digital. Com a internet, isso ficou muito mais acessível. Mesmo assim, existe muita coisa de disco (e que colaborativamente é despejado em plataformas virtuais) ainda a ser redescoberta. Para ver que, como naqueles mesmos anos 80, onde o que se esperava em matéria de música (e arte em geral) era o último grito da moda. Agora a gente percebe que existe um baú escondido com música para a gente descobrir. Na era do disco, o que salvava eram as coletâneas. Agora é possível ter acesso a tudo de todo mundo. Ou seja, música não falta.

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