Saturday, March 05, 2016

Something Happened To Me Yesterday


Vista do palco



Consegui um ingresso de pista nos 49 do segundo tempo (jogo apitado pelo Carlos Simon) com um amigo stonesmaníaco, o Cristiano. A gente se encontrou num bar da Cidade Baixa e, com ele, uma trupe, dois ingleses e um argentino, mais uma turma daqui com gente de Sampa e de João Pessoa, dos tempos dos orkontros. Imagine viver o atavismo do Orkut. Eu falei que era incrível, um orkontro além do orkut, além do tempo e do espaço.

Já havia algo diferente no ar. Os Rolling Stones estavam na cidade. A gente ia dormir na mesma cidade dos Stones. Mais um motivo para encher a cara. passai a noite/madrugada de terça bebendo pelos Stones e lembrando de tanta coisa. do meu primeiro disco. Daquele vídeo pirata VHS que eu tinha do Ready Steady Go! onde eles tocavam "Under My Thumb" e eu ainda não sabia o nome da música. Ou de todos os shows em vídeo, de todos os discos e de sentir uma saudável inveja corrosiva de toda aquela gente vibrando diante dos Stones. O que mais falta para um fã dos Stones além de assistir a um show dos Stones?

O mais engraçado era depois a gente se enturmando enquanto ia á pé para o Beira-Rio e eu entabulando um papo com os ingleses, que bebiam cerveja prá caramba. Para um deles, o Tony (?) eu tentei explicar, entre goles triunfais de cerveja, que deveria existir alguma explicação mística para que eles resolvessem colocar Porto Alegre no mapa da turnê. Afinal de contas, em todos os pontos da Olé Tour nos demais países, a banda optava sempre pelas grandes cidades, e a gente estava (eu tentando traduzir) longe demais das capitais.

Ou não. daí eu tentei franquear a tese de que, assim como é notória a doença dos argentinos pelos Stones e por rock, alguém pode ter soprado à Mick que, estando situados na mesma região do prata, e sabendo-se notória (está em disputa) o gosto dos habitantes do estado mais frio do brasil pelo gênero que eles notabilizaram, é possível que eles tenham observado uma certa possibilidade logística em destacar a capital dos gaúchos no mapa internacional dos Stones.

na frente do Beira-Rio, na hora de entrar, começou a chuva. Logo depois, a trupe separou-se, a turma da platéia (nós) e os que iam de cadeira, etc. Mas eu só me dei conta de que eu ia ver os Stones quando, depois de ziguezaguear naquele cercadinho da entrada do portão e da revista debaixo de chuva, eu entrei no gramado e a gente foi chegando perto do palco...

Meu Deus, eu quero viver eternamente aquele momento, é como estar 24 horas apaixonado. de repente, tudo faz sentido, até as lacunas da vida fazem sentido, até aquela chuva torrencial (igual á do Jumpin Jack Flash), ficar observando os trejeitos cool do Keith e do Ronnie tocando, ver a paciência de bodisatva das baquetas do Charlie e o Mick, um gigante, o maior entretainer de todos os tempos.

Keith tem uma postura relaxada no palco. Não precisa esmirilhar suas guitarras para o público. Às vezes, acerta algum acorde maluco e deixa o resto do serviço sujo pára Ronnie que, por sua vez, ele, sim, tem que desdobrar-se. Afinal, em certos momentos, ele tem que dublar as partes do Mick Taylor.

Keith é um sujeito peculiar. eu tentava entender seus acordes, em parte indecifráveis por contas dos nós nos seus dedos (suas mãos parecem as do Manga), em outra por conta das suas afinações. em "Honky Tonk Woman", ele dedilha preguiçosamente o que seria a corda Lá da sua Tele, mas na afinação dele, ao tocar a corda solta, ressoa um sol maior que, junto com o cowbell (tocando pelo Chuck Leavell. Aliás, sempre sobra para o cara do teclado). Richards faz todas aquelas poses que a gente fazia com a vassoura diante do espelho quando ainda não sabia tocar violão; ele dá uma gavetada, de repente, solta a guitarra á tiracolo e canta gesticulando para a plateia como se estivesse contando uma anedota entre uma baforada e outra.

Porque levar essa marca, essa reputação, essa banda nas costas, com todo a expertise de quem tem quilômetros e mais quilômetros de rodagem em palco, mais do que idolatrá-los, você sente um orgulho danado por eles, porque eles são ao mesmo tempo sobreviventes de uma era do rock, são os sacerdotes de uma arte inefável e tão em desuso hoje em dia e, ao mesmo tempo, são artistas, são músicos, são profissionais do sonho de milhares e milhares de pessoas. A gente só consegue ter essa epifania depois de anos de vida e de ter a chance de tê-los ali tão perto, tão amigos da gente quanto os nossos próprios camaradas de show, derretendo de tanto rir e chorar e cantar e perder a voz na plateia.

A primeira surpresa foi emendar Let's Spend the Night Together com Ruby Tuesday, de volta ao pré-psicodelismo dos Stones. Depois, para quem esperava um show meramente burocrático, cada música era um motivo para um impromptu total. Eles tocaram 20 minutos de Midnight Rambler de forma alucinante. Parecia que não tinha fim: quando parece que ia acabar (a música é quase uma suite) eles puseram mais energia e mais velocidade, o Charlie se recuperou de ter saído de freio do mão puxado no Let's Spend the Night Together, que ficou meio enrolada. Mas Ruby Tuesday a gente comemorou como se fosse um gol da classificação nos descontos, e de bola parada debaixo de chuva (a chuva era real). A partir dali, e Miss You, também, pura improvisação na música. E Sympathy for The Devil? Baixou o capiroto ali, ainda mais que o Beira-Rio, com as reformas, virou uma enorme encruzilhada, aquelas imagens do cão foram perfeitas para fazer um vodu em pleno show, o Mick Jagger aparece todo de vermelho, fantasiado de cardeal do fim do mundo? Todo mundo em transe WOOOOOOOOO WOOOOOOOOOO.

Se Mick e Keith têm uma relação discreta entre si, depois de tantos anos, hoje eles passaram da obrigação de aguentarem-se um ao outro. Os dois já atingiram a perfeição do mito. São os falsos deuses, castor e Pólux do rock.

Creio que assisti e ouvi a tudo que pude a respeito dos Rolling Stones ao vivo. Porém, posso dizer que nada se compara a ter a oportunidade única de vê-los ao vivo. Acho que uma pessoa que já esteve num show da banda pertence a um seleto clube de bem-aventurados...

Na verdade, tudo o que você conhece sobre os Stones não é nada antes de tê-los diante de si, rodeado de uma multidão ululante e sedenta por rock. é mais do que uma experiência religiosa. Agora eu sei como a minha avó se sentiu quando viu o Papa. Você ainda não viu nada.

Mais do que isso: toda a ciência que você tem sobre eles muda a partir de então. É a transfiguração do Monte Tabor. Você volta para casa como o Moisés do Cecil B. de Mille descendo o Sinai com as Tábuas. Você é outra pessoa. Você está pronto. Seu olhar ficou diferente. Você não vai ouvir mais os Stones da mesma forma.



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