Friday, October 15, 2010

A Última loucura de Kerouac


Hit the road, JK

Eu acredito que não fui o único, mas confesso que fiquei profundidissimamente (como diria Augusto dos Anjos) perturbado depois de ler o incensado On The Road, porque eu me projetei ao infinito no idealismo dos personagens, e uma forma livre de viver, integrada ao ambiente e sempre em movimento, vendo gente e mais gente, é algo incomensurável, é a vida que sopra no seu rosto.

Curioso é que depois eu li a biografia dele (a escrita pelo Yves Buin), e ele era uma pessoa diferente do Sal Paradise: parece que quando ele finalmente conseguiu a notoriedade que ele tanto perseguiu, ele virou nada mais, nada menos do que um cadáver adiado (como diria Pessoa). Não havia lido nada de novo dele, depois que sua obra foi finalmente recolocada em catálogo, embora não tivesse mais tanto interesse pela literatura beat como antes.

Claro que, pelo exercício da escrita, ou como fetiche de escrever, eu sempre releia trechos e trechos (& trechos & trechos & trechos & mais trechos) do Kerouac – até porque o exercício da releitura é algo interessante e ligeiramente subestimado pela imensa maioria dos leitores – mas não era bem isso o que eu estava prestes a dizer.

Li tudo o que me caiu em mãos até o Big Sur (LPM Editores, 192 páginas). Este livro é o testamento final (de vida e literário, já que a partir dali, seus textos foram perdendo todo o vigor de outrora) do Kerouac real, não é o jovem idealista a la Rousseau, alguém entronizado num santo vagabundo, em alguém transcendente. Era um bêbado chato e decadente de meia idade como qualquer um, que não conseguiu, mesmo depois do sucesso, encontrar uma finalidade para a vida. E também confesso que, conhecendo o idealismo ardente de sua obra máxima, como leitor de Ti Jean, foi doloroso ler isso.

Jack poderia se estabilizar como qualquer pessoa normal, ele tinha nome, poderia arranjar um emprego permanente de correspondente para qualquer jornal, mas a instabilidade emocional e a sensação de que a virtude foi morar nos puídos aposentos de sua proustiana memória o venceu.

Era alguém que entregou a vida em sua obra máxima, isso fora o fato de que a doença dele fez com que ele se tornasse uma pessoa perdida, reclusa, anti-social, dependente.Enfim, não existe felicidade no Big Sur, é o On The Road de cabeça para baixo, nada de glamour, nada de feliz, nenhuma paz, enfim, além de noitadas e bebedeiras.



A vida essencialmente calcada no desregramento que eu achava que era a essência da literatura beat não foi o que eu achei na aventura de Sal e Dean, por isso que eu idealizei e me projetei de verdade no livro. Aquilo não aspira uma eterna juventude; pelo contrário, aquilo é exatamente o que eu via de negativo, infelizmente relacionado ao Kerouac real. Buin escreveu que o discurso final do livro era quase uma descrição clínica de um delírium tremens — e de fato, talvez seja oexemplo mais notório de algo do tipo na literatura.

Quem realmente sabe que ele era uma esponja que absorvia quantidades colossais de vinho licorado, sabe perfeitamente que, naquele estágio da vida, aquele consumo ia enlouquecer qualquer cidadão. Por isso eu fiquei com a impressão de Big Sur como alguém que chegou no limite para o fim. Basta ver aquele trecho em que ele tenta carona e não consegue, tenta realizar uma marcha a pé da barraca do Lawrence Ferlingheti nos despenhadeiros do sul da Califórnia e não consegue, sendo obrigado a fazer algo que ele raramente fazia nas suas antigas viagens, pegar um ônibus...

Aliás, o próprio Cassady, que no On The Road é praticamente a espinha dorsal de qualquer movimento dentro do livro, que é uma ode ao velho santo vagabundo Dean, no Big Sur é uma figura apagada, ele e Jack não demonstram mais nenhuma afinidade, não amigos pela memória, contudo não demonstravam qualquer vitalidade, qualquer intimidade entre si.

Porém, pela qualidade literária que ainda restava na mente do Jack, é possível vislumbrar ecos de sua escrita meticulosa e fluída,e a capacidade em caracterizar personagens e descrever ambientes. Ou seja, o valor literário permanece porque a mente do Kerouac ainda funcionava O discurso final do livro é exuberante,mas é algo sombrio e lancinante, de alguém que como poucos, soube escrever como um Proust sobre a sua loucura final.

No comments: