Monday, June 22, 2020

Pérolas para as Tartarugas


Capa do disco Homegrown, de Neil Young

Neil Young lançou Homegrown semana passada, depois de mais de quarenta anos de delay. O disco, segundo reportam matérias sobre o lançamento, teria sido protelado por conta de problemas pessoais do cantor e compositor à época. Young disse depois que o álbum era “confessional demais” e que ele estava numa encruzilhada em sua carreira musical, onde o êxito comercial de seus discos contrastava com uma dessatisfação com o plano pessoal, morte de pessoas próximas, como Denny Whitten e sua separação da atriz Carrie Snodgress – isso sem contar com as obrigações com o Crosby, Stills e Nash.

É possível ir além da mera resenha do disco e pensar que esse período criativo de Neil Young é, ao mesmo tempo, um grande quebra-cabeça cheio de paradoxos, idas e vindas. Esse período, chamado de “ditch trilogy”, seria a combinação dos álbuns Time Fades AwayOn The Beach e Tonight’s the Night. Hoje, esses trabalhos estão na conta provavelmente do melhor que ele fez, a fase que começa no After The Gold Rush e vai até o Comes a Time.

O fulcro desse trajeto é assombrado pela trilogia de discos que, como disse o compositor, foi o período em que ele lida com o sucesso e a incapacidade de fazê-lo. Ao mesmo tempo, precisa superar uma obra-prima como Harvest e encarar a estrada depois da trágica morte de Whitten, fato que devastou sua existência nos anos seguintes. Por mais inefável que seja esse período de elaboração desses traumas, com o tempo, ao superar isso, Neil acabou relegando esses discos para o segundo plano – e de tal forma que álbuns como Times... e o próprio On The Beach ficaram fora de catálogo mesmo depois do advento do compact-disc, no final dos anos 80.

O interesse pelo corpus da obra de Young aumentaria ao longo dos anos 2000, com a difusão causada pela Internet e o reconhecimento tardio de publicações como o 1001 Albuns You Must Hear Before You Die, organizado por Robert Dimery, que dá um destaque enorme para a produção do músico canadense ao longo dos anos 70. Para se ter uma idéia, pelo menos seis discos dessa época constam na lista do livro.

O que se deu por aí após a descoberta dessa Pompéia musical foi tentar restituir esses trabalhos de Young ao panteão dos clássicos do rock e, ao mesmo tempo, entender por que esses discos ainda restavam esgotados nas lojas e o virtual desinteresse do compositor em reeditá-los. No começo dos anos 2000, um grupo de fãs chegou a ensaiar um abaixo-assinado para que Neil e a Reprise relançassem On The Beach. Mesmo assim, discos como Time Fades Away só seriam relançados e, depois de muita querela, dispostos em formato digital.

O curioso nessa história toda é que, na época, esses discos hoje cultuados foram fracassos em termos de vendas. Após o êxito de Harvest, Young estava no cabo de guerra existencial de seguir compondo sucessos na mesma medida em que, mesmo produzindo incessantemente, ele seguia um descaminho que ia contra e a favor dos fãs. 

O corolário foi uma sucessão de trabalhos semi-produzidos (de forma compulsória) e brigas com os executivos da Reprise, que lutavam por mais discos como Harvest.
Como se sabe, a resposta de Neil foi Tonight’s The Night, que foi vetado. O segundo trabalho, On The Beach, viu a luz do dia mas chocou ouvintes e crítica, por ser o oposto do polido e eclético Harvest. Tonight... seria lançado na sequência e, da mesma maneira, venderia pouco. O próprio Hitchhiker, lançado em 2017, foi outro projeto que sofrera delay da gravadora que, com razão, acusou o trabalho de pré-produção. Era como se Neil Young, naquele momento, apenas pudesse fazer aquilo que ele estava se propondo a gravar – e da forma como vinha sendo gravado e nada podia ser feito a respeito.

Talvez, e por isso mesmo, esses discos da “ditch trilogy” ficaram como “malditos” para a gravadora, que não se interessou em relançá-los por seus motivos, e Young, da mesma maneira, contudo por motivos diversos. Se formos tentar encaixar Homegrown nesse complexo quebra-cabeça, veremos que, a rigor, ele está plenamente cifrado nessa estética da trilogia maldita de Young: canções de arranjos simples, em sua maioria, voz, violão, bateria e steel guitar. Independente do que o compositor alega hoje (e havia dito à época, para a Rolling Stone), a tese do lado “confessional” das letras explicaria o delay do álbum em parte.    

Se fosse apresentado em 1975 da mesma forma como foi lançado em 2020, das duas uma: ou a gravadora iria fazer enormes objeções ao produto acabado, ou o disco iria ser lançado e restado na bacia das almas a que Tonight’s The Night e os demais foram relegados. Obviamente que o disco não é ruim, muitíssimo pelo contrário, é, talvez, até, menos bêbado que On The Beach e Tonight juntos. Mas é de se entender os motivos de uma gravadora numa época em que mesmo artistas consagrados (como Neil, ou Elvis ou Dylan) precisavam prestar contas ao departamento comercial. Diferente de hoje, quando qualquer lançamento de luminares do rock já nasce clássico e com cinco estrelas da crítica de largada. 

Homegrown aparentemente dava mostras de ser um grande projeto, ambientado a partir de várias perspectivas, com sessões de gravações diversas, com músicos e arranjos idem. Como diz Young em sua autobiografia: 

Quando chegamos a Nashville, fizemos uma série de sessões com Levon Helm e depois com Karl Himmel, além de Kenny Buttrey na bateria numa das faixas. Elliot Mazer estava na sala de controle. Tim Drummond e Ben Keith tocaram em todas as faixas. Foi muito bom. Foi o início de um álbum inteiro que eu estava segurando, chamado Homegrown. Eu compunha tanto naquele tempo que era difícil acompanhar tudo e fazer um registro completo. O processo criativo estava ficando um pouco fora do controle porque eu tinha músicas demais para gravar. Na época em que Homegrown devia ser lançado, preferi lançar Tonight’s the night , porque todos nós escutávamos os dois, e Tonight’s the night , embora já tivesse quase dois anos, parecia mais adequado para o momento. Eu tinha adiado o lançamento, achando que não era uma boa hora. Além disso, tinha a sensação de que precisava acrescentar mais alguma coisa, para dar perspectiva. Acabei encontrando aquelas faixas e o disco ficou completo. Agora, ao escutá-lo, não tenho tanta certeza quanto àquela decisão. Às vezes, algumas coisas custam para sedimentar (pp. 220-1). 

O problema de Homegrown foi que, por vários motivos, ditos ou não ditos, foi para a gaveta. Se lançado há em 1975, teria a mesma sorte dos demais elepês de Young daquele período. Ia passar por um apagamento de décadas até ressurgir como clássico nos dias de hoje. O problema é que, como sabemos, nenhuma gravadora em sã consciência não lança discos para a posteridade.

No fim, o álbum não foi lançado mas muito do que iria constituí-lo saiu em parte a posteriori (mal comparando, como aconteceria com o Smile, dos Beach Boys): “Star of Bethelhem” aparece no American Stars’n Bars; “Love Is a Rose” na coletânea Decade. E muito do que foi gravado na fase de produção do disco, cerca de trinta canções, apareceria em outros discos. Ou seja, se todo o output fosse reunido num álbum imaginário, talvez Homegrown tivesse sido um verdadeiro magnum opus na carreira de Neil Young. No fim das contas, o que restou para a versão de 2020 foi o projeto escanhoado em 12 (geniais) faixas ("Vacancy" poderia estar no Harvest perfeitamente), quase no mesmo formato de seus pares, On The Beach e Tonight...

As faixas previamente lançadas já davam o tom do que seria Homegrown. O que faltava era pagar para ver. Nesse meio tempo, da mesma forma que a obra de Neil Young foi sendo plenamente recuperada e relançada, sem os ranços de outrora, é possível, hoje, colocar as últimas peças do quebra-cabeça da “ditch trilogy” e ouvi-la, como no final de novela interminável, porém, com um final feliz.    

Referências:

Neil Young. A Autobiografia. Globo, Rio de Janeiro, 2012. 




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