Monday, May 07, 2018

No tempo da Eldopop





Há um bom tempo eu tenho ajuntado bibliografia sobre história do rádio no Brasil, mais especificamente em FM.

Sobre isso observo que é ponto pacífico que o começo da frequência modulada se deu com o advento do modelo adotado pela rádio Cidade a partir de 1977.

De acordo com a maioria dos compêndios sobre o assunto, antes disso, o FM era apenas utilizado como música ambiente, como no caso da rádio Imprensa do Rio de Janeiro. Segundo André Guerreiro (1), por exemplo, até 1976, foi a única emissora que transmitia em FM, nesse estado.

Segundo o autor, a partir da experiência da Cidade, outras emissoras passaram a inspirar-se nesse modelo, como a Transamérica e a Joven Pan.

Esse histórico, à guisa de introdução à história do FM no Brasil, por sinal, é constantemente citado em várias monografias sobre o tema. Ou seja, sempre se repete essa mesma história: FM experimental música ambiente até 77.

Só para ver como às vezes a arqueologia pode mudar totalmente a visão que nós temos de mundo, puxando a brasa para o assunto rádio, de uns tempos para cá, apareceram no Youtube vídeos com gravações feitas em cassete da extinta Eldorado FM, do Sistema Globo, que existiu de 72 a 78.

A respeito da Eldorado, não existe uma pesquisa a fundo a respeito da aventura dessa emissora na história da radiodifusão no Brasil. Pelo menos é o que aponta a insidiosa repetição da mesma cantilena a respeito da história do FM no Brasil.

A partir dos registros dessa arqueologia radiofônica, que existe hoje não por conta dos arquivos do sistema Globo, mas sim por causa dos seus inúmeros ouvintes ao longo de quase uma década nos anos 70, podemos ter uma ideia do que foi a Eldorado.

Mais do que uma mera emissora de "música ambiente", ela foi a ponte entre o que havia de moderno ocorrendo no rock internacional dos anos 70 - que era apresentado aos ouvintes brasileiros em primeira mão muito antes dos discos saírem por aqui (2).



Além disso, a Eldorado copiava o modelo das rádios americanas que, naquela época, especializavam-se no modelo Album Oriented Rock (AOR) (3), ou seja, tocavam discos na íntegra, em geral, de rock progressivo.

Mais do que isso, a Eldorado tinha programação fixa, e com locução. O diretor da Eldopop, o DJ Big Boy apresentava, durante a segunda fase da rádio programas semanais, entrevistando bandas brasileiras, como O Terço e o Vímana. 

Mas o melhor era um programa semanal, veiculado aos domingos, às 17h, dedicado à música eletroacústica. Como a maior parte da programação da Eldorado era constituída de rock estrangeiro, havia a história, comentada por Carlos Townsend (4) no documentário sobre  Big Boy, de que a Eldopop era, por assim dizer - e é curioso de imaginar já que era uma coisa bem de época e que falava muito sobre aqueles verdes anos, uma espécie de trilha sonora para usuários de baratos recreativos e outros baratos afins, algo que estava dentro do imaginário da contracultura típica daqueles tempos de desbunde carioca.

Talvez para não ficar com a imagem de rádio de "doidões" ou com uma playlist totalmente dedicada a música estrangeira (com exceção do limite imposto de tocar produção nacional, o que era naturalmente cumprido), a Eldorado (por ter liberdade de sustentar uma playlist totalmente aberta)
pôde dedicar-se, já que ainda estava em estágio experimental, isto é, apenas com a obrigação de "ir para o ar", num determinado momento de sua história a apresentar um programa semanal de música eletroacústica, algo que nem uma rádio como a MEC ou as universitárias fariam ou fazem hoje.

Com a produção de Sérgio Araújo, Rodolfo Caesar (5), Vanderlei Gonçalves e J.C Barbedo, esse programa é/foi, talvez, uma efeméride sem precedentes na história do rádio por aqui. Com programas tipo documentário, toda semana a Eldopop contava a história da música eletroacústica, desde o começo, passando pela história de instrumentos, como o theremin e o sintetizador.

Mas mais interessante era notar que, além de manter uma programação que era quase que uma resistência ao mainstream do AM, a Eldorado divulgava músicos estrangeiros, como Iannis Xenakis, Pierre Boeswillwald e Bernard Parmegiani, do célebre Groupe de Recherches Musicales, fundado pelo pai da musique concrete, Pierre Shaffer, por exemplo. Além disso, os programas apresentavam a produção recente desses músicos, como o hoje conhecido De Natura Sonorum, de Parmegiani (pronuncia-se "parmegianí"), de 1975. 

O que quero dizer aqui é que, graças a estas gravações, hoje divulgadas na Internet, podemos ter uma noção do que foi a Eldopop, uma emissora que, diferentemente do que vemos nos compêndios sobre história do rádio, possuía programas fixos, apresentava mais do que mera música ambiente e, além de fazer a cabeça de muitos desbundados do rio de Janeiro dos anos 70, fez a de muita gente que foi despontar no FM nos anos 80.

A Eldorado que, por honra e glória de Big Boy, também foi uma das experiências radiofônicas que contribuiram para a entrada da música internacional no Brasil, principalmente do rock progressivo, a música da época, teve o seu ápice em junho de 77, quando o Genesis excursionou no Brasil, em shows memoráveis em São Paulo, Porto Alegre e Rio. Quando a banda de Phil Collins esteve no Maracanazinho, a  Eldopop transmitiu a apresentação (junto com a Mundial AM).

Porém, como um Moisés que não chegou à Terra Prometida, Big Boy, que foi a pessoa por trás dessa difusão cultural e, de certa forma, a pessoa que viabilizou a vinda do conjunto britânico ao Brasil, já não estava entre nós. Pouco mais de um ano depois, a Eldorado era extinta.

Esse é um esboço do que foi a Eldopop nos anos 70, uma história que pode parecer pequena e embrionária se comparada a de toda a trajetória do FM no Brasil, mais grande o suficiente para constar nos manuais de história do rádio em nosso país.


Notas:

(1) https://radiobrasilagf.wordpress.com/2015/06/11/o-surgimento-e-a-evolucao-da-radio-fm-3/ acessado em 7/5/1018

(2) Se é que saíam, já que a nossa incipiente indústria cultural não se interessava pelo fenômeno do rock, o que mostrava o descompasso entre o gosto musical do que se produzia em música jovem nos Estados Unidos e no Brasil, onde, nos anos 70, o gênero era considerado - e propagado pelas vinhetas como "underground".

(3) Big Boy de certa forma importou para o Brasil um modelo que já era comum quando a própria FM americana, também em formato experimental, a partir dos anos 60, rejeitava o single e tocava álbuns, em muitos casos, inteiros, cum uma playlist tanto eclética quanto totalmente aberto, indo de, por exemplo, Coltrane até Iron Butterfly, discos que jamais tocatiam nas AMs, estes sim, baseadas em paradas de sucesso e com a playlist fechada.

(4) Big Boy Show https://www.youtube.com/watch?v=5qq_z4ClEzI acessado em 7/5/2018.

(5) Caesar também estudou no Groupe de Recherches Musicales com Pierre Schaeffer.

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