Monday, May 14, 2018

Miserere Nóbis



Capa do disco 

                               


Esse ano o álbum Tropicália comemora 50 anos, e o movimento também chega ao seu cinquentenário. Mas lembro quando Caetano e Gil lançaram o disco que revisitava os 25 anos, em 1993. Naquela época, a maioria das pessoas pouco lembrava do que fora o Tropicalismo. O álbum há décadas estava fora de catálogo e o famoso livro do Augusto de Campos, Balanço da Bossa (1978), da editora Perspectiva, se não encontrava-se esgotado, era disputado a tapas e pescoções nos sebos.

O Balanço era um dos poucos ensaios escritos sobre a efeméride, que nasceu debaixo de ruídos de guitarras no auge da era dos Festivais, ainda em 1967, quando Gil defendeu (surpreendentemente quase a contragosto, como se soube depois) “Domingo no Parque” e Caetano Veloso “Alegria, Alegria” (segundo ele, na verdade uma tentativa de paródia frustrada de “A Banda”, como ele revela no Verdade Tropical (1997)).

Nessa mesma época, a Editora da Universidade havia publicado o livro Antropofagia e Tropicalismo (1993), que nos ajudou a conhecer um pouco mais, dentro de uma perspectiva teórica, a respeito dos pontos de contato entre os manifestos de 22 e 68.

O que se depreendia é que, esse período entre as duas antropofagias correspondeu diacronicamente à aplicação das proposições do modernismo no Brasil e a consequente revisão crítica do seu prospecto, a posteriori, num novo contexto, como diz Favretto (1979) onde o país entrava na realidade da indústria cultural. Essa, talvez, seja a ideia por trás da letra de Torquato Neto em “Geléia Geral”, faixa do disco, e que funciona como um manifesto musical do Tropicalismo.

Escrevo essas poucas linhas sobre o assunto aproveitando o ensejo dos 50 anos do lançamento do álbum que, junto com o livro da EdUFRGS, o disco dos 25 anos, reaparecia nas lojas em formado digital, pela Philips (depois Polygram).

Imbuído de curiosidade — a própria Bossa Nova, hoje tão cultuada, tinha sido também recém redescoberta no começo dos anos 90, com a publicação do livro Chega de Saudade, de Ruy Castro (1990) (que, por sua vez, rechaça veementemente a relação umbilical entre os dois movimentos, ao contrário do que postulava Augusto de Campos e Décio Pignatari), havia eu adquirido aqueles fascículos da Abril Cultural sobre a História da MPB (também escritos por Campos e Décio) e que muito falavam a respeito da tal “linha evolutiva” da Música Popular Brasileira e seus desdobramentos.

Hoje, a bibliografia sobre o assunto e farta, variada, e a produção acadêmica a respeito do tema também é considerável, sem contar que o Panis et Circensis virou leitura obrigatória do Concurso Vestibular da UFRGS, o que mostra que, pelo menos nesse caso, existe, além do reconhecimento da importância cultural e estética do álbum, há ainda o fator de que, mesmo que existem vozes contrárias, a canção brasileira também pode ser objeto de estudo.

Isso mostra como o tempo passou e, mesmo assim, o assunto passou da total “irrelevância” por parte da incúria e do desinteresse público ao reconhecimento acadêmico e, com o advento da Internet, o disco têm encontrado cada vez mais espaço para debates.

Debates que, pelo menos da minha parte, é um milagre que eu tenha chegado até esta linha falando sobre Tropicalismo. Desde o começo dos anos 90 até aqui, eu li tanto sobre o assunto (lembro de fazer um trabalho sobre o assunto na cadeira de Cultura Brasileira na Famecos, lá por 1996) que literalmente enchi o saco.

Mas acho relevante ainda comentar pelo menos duas coisas. Uma é ressaltar a crítica de Roberto Schwarz (1978), onde ele defende que, dentro de todo o refluxo que foram os movimentos de esquerda no pós Golpe de 1964, o Tropicalismo resultou em malogro, sendo apenas um mero tiro pela culatra reacionário, como que navegando nas mesmas águas irrefutáveis da cultura de massa. Mesmo que muitos discordem de Schwarz, sua análise é bastante curiosa e recomendo a leitura.

A outra questão é que, além das querelas políticas daqueles tempos, nas águas da semiótica e da história da música (áreas que Schwarz não analisa e explica por que), é possível notar que a herança do movimento reside, justamente, no fato de que o Tropicalismo tentava, de sua maneira, sair daquele maquineísmo e  descompasso que vivia a música no Brasil naquele tempo dos festivais. Pois era quando existia uma guerra quente entre engajados e alienados onde, na falta de outra esfera democrática em plena repressão, acabaram transformando palco  numa beligerantemente absurda arena política, e o debate sobre música caiu num corrosiva trincheira política, com sanguinolentas cargas de cavalaria vindo de todos os lados, cujo paroxismo foi a incrível vaia que Tom Jobim e Chico Buarque sofreram no Festival Internacional da Canção de 1968.

A verdade é que os engajados não eram tão revolucionários e os alienados (ou acusados de) não eram tão alienados assim. E o Tropicalismo, de certa forma, tentando atualizar o desatualizadíssimo cenário musical brasileiro com relação ao estrangeiro (ao abraçar o rock americano e inglês no momento em que este abraçava a avant-garde stockhausens, cages e outros movimentos, como a contracultura, que só iria aportar por aqui nos anos 70, de outras correntezas), buscava uma síntese daquilo que era a pós-Bossa Nova, a música de festival e o iê iê iê (boi), de mostrar como a luta contra a guitarra era um movimento engraçadamente ludista, e que, se formos observar, foi a partir dali que a MPB nasceria, com toda a licença a dor & a delícia de ser o que quisesse.

Tanto que, a partir dali, com ou sem relação direta dos tropicalistas, a Canção mudou: a MPB dos anos 70, em todas as suas vertentes e manifestações, mesmo que negando o Tropicalismo, é filho daquele disco. Daquele momento em diante, a MPB estava livre para adotar a guitarra e assemelhados, reelaborar gêneros antigos, como o samba-canção, que entrou em 'desuso' com o advento da Bossa Nova.

Essa síntese da canção explicaria, por exemplo, o surgimento do Clube da Esquina, de Belchior ou até mesmo de Cazuza, por exemplo. Depois do Panis, você podia, (como diria Caetano citando Gil, entrar e sair de todas as estruturas) Quem sai dessa análise de “linha evolutiva” e de cotejamentos entre 22 e 68 é o Luiz Tatit que, na sua teoria de mistura, parece debruçar-se mais na questão das influências na forma da canção do que em pragmatismos e possíveis pontos de contato entre Modernismo e Tropicalismo, tópico que foi exaustivamente analisado nos primeiros ensaios sobre o tema, desde o Balanço da Bossa, onde gente como Augusto de Campos estava mais afeito a macluhanismos e teoria da informação. 

Contudo, mesmo assim, o Balanço é um item indispensável para se poder pensar a Tropicália — de preferência tomando um grapete e escutando (se possível em vinil) o disco Panis et Circensis. Aliás, o Diego Grando tem um pequeno volume (2015) que analisa a bolacha muito melhor do que eu, então fico por aqui e passo a bola para quem sabe.


BIBLIOGRAFIA:


CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 3.ed., São Paulo, Ed. Perspectiva, 1978. (Col. Debates nº 3).

CASTRO, Ruy. Chega de saudade. Companhia das Letras, 1990.

FAVARETTO, Celso F. Tropicália: Alegoria, Alegria. São Paulo, Kairós, 1979.

GRANDO, Diego. Tropicália, Guia de Interpretação. Século XXI, 2015.

MALTZ, Bina TEIXEIRA, Jerônimo e FERREIRA, Sérgio. Antropofagia E Tropicalismo. Coleção: Síntese Universitária; 38, EdUFRGS, 1993.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-69. In: O pai de família e outros ensaios. Rio de Janeiro. Paz e Terra 1978. p 61-92).

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. Companhia das Letras, São Paulo, 1997. 


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