Saturday, September 10, 2011

Uma Pororoca Linguística


Neal Cassady (ou Cody)

Terminei de ler e recomendo o livro Visons Of Cody, do Jack Kerouac. Quer dizer, recomendo em termos, já que, como se sabe (ou não), esta é uma obra para iniciados ou em literatura beatnik ou para quem (pelo menos) não leu a sua (considerada) (aclamada) (obra-prima), On The Road. Salvo para quem não chegou a ler Kerouac e transa literatura de vanguarda, como o pessoal da área de Letras e Linguística, por exemplo. E, - é claro, para quem pode desembolsar R$ 70 e levar este livrinho (mais de 400 páginas!) para casa.


Tive meu primeiro contato com a literatura beat há bastante tempo, quando li uma versão em fotocópia do On The Road ainda dos tempos da Brasiliense.

Voltei a ler os beats e, principalmente o Jack Kerouac, a partir dos relançamentos da LPM Editores, a partir de 2004. Foi muito interesante retomar aquelas leituras ao mesmo tempo em que era possível travar contato com vários de seus livros que ainda sequer haviam sido lançados aqui no Brasil.

Depois de reler o On The Road, li todos os demais que aqui saíram: os Vagabundos Iluminados, Tristessa, Os Subterrâneos, Tristessa, o Livro dos Sonhos e Big Sur. Não cheguei a ler The Town And The City nem o manuscrito original do já citado On The Road, contudo.

Mas mais contudo ainda é que, pelo que eu pude ver, e mais ainda a partir de Big Sur, mesmo que a cronologia dos lançamentos originais ou os da LPM não tenham relação com a cronologia de vida do próprio Kerouac ao que se refere ao que ele chamaria de a redação maluca da tal Lenda de Douluoz, na verdade, assim como ele os concebeu e como podemos entender, seus livros devem e deveriam ter, respectivamente, a sua luz própria e a sua mensagem inclusa.

O problema é que Jack tinha vários entraves. O primeiro era a publicação de On The Road, livro que foi rejeitado por vários anos até quando ele foi ao prelo pela primeira vez, em 1957. A outra, a concecussão da sua obra como um espelho da vida de Kerouac e uma curva de vida, como se ele quisesse virar uma espécie de, como explica o Eduardo Bueno na abertura do livro saca - um chá com madeleines lisérgico, ou uma Recherche psicodélica.

Mas o que me impressinou mesmo foi que ele me deu a impressão (ou a medida) exata (na VERDADE) do que eu esperava encontrar justamente no On The Road. Ou seja, eu acreditava piamente que o Pé na Estrada era uma incursão muito louca por experimentalismo literário (saca) e ficção de aventura estilo Mark Twain.


O livro

Pelo contrário, achei On The Road um livro diferente do que seus detratores o chamavam na época de seu lançamento (Capote o chamava de 'datilografia'). De fato, para meu conhecimento imberbe, Kerouac era um escritor quase hermético em sua transgressão literária e em jogar no papel toda a loucura de um grupo de estudantes inteligentes o suficiente para terem uma visão poética de uma América que saía da II Grande Guerra e tentava solidificar os seus mitos fundadores e clichês aliados à política e os meios de comunicação de massa.

Kerouac mostrou seu grupo como um bando de bardos inteligentes, uns goliardos modernos vivendo á margem do American Way Of Life e elaborando uma vida hedonista turbinada à base de sexo, drogas e psicanálise, literatura, antropologia e história da arte. Eles eram os falsos caipiras: se vestiam como os oakies, andavam em vagões de carga, roubavam carros e dormiam em sacos de dormir debaixo do sereno do deserto do Oeste e ao som dos uivos dos coiotes mas liam Reich, Joyce porém sem soarem literatos.

Talvez essa seja a grande contribuição original dos beatniks, ou pelo menos do Kerouac: não postulavam uma postura hippie - já que o próprio rótulo beat e depois hippie acabaria transformando a própria transgressão num clichê um tanto batido e mais ainda hoje onde, a rigor, não é preciso ler Kerouac para conhecer um modo de vida que está modernamente instituido na sociedade moderna.


A grande sacada (saca?) é justamente essa visão technicolor daquele mundo real e sem nome. Muito embora isso (e é nessa parte que eu quero chegar) também tenha se instituído modernamente, mas porém num outro lado: no próprio jornalismo literário. Jack Kerouac nunca será taxado (embora amiúde seja) de o precursor do jornalismo literário, embora ele o seja. Não pelo fato de trabalhar o material real de forma literária como se literária fosse, mas por ser um dos primeiros a usar essa capacidade de, com um caderno de anotações, ser um grande observador e um grande recriador de ambientes e de caracterizações de personagens, saca?

E um desses personagens é seu amigo Neal Cassady (1926-1967). Cassady, que é o grande evangelizador de On The Road, a figura que conscientemente ou não acabou aglutinando aquela turma de vagabundos espertos e jogando todos eles nas estradas reais e literárias, por conicidência ou não, foi capaz de inspirar os melhores momentos de Kerouac em livro.

Não é preciso citar o já citado (só aqui umas 16 vezes) On The Road. Kerouac, como bom jornalista que foi (embora sem o saber o quanto), era a pessoa ideal para captar todas as nuances de um sujeito como Cassady (ou Dean Moriarty ou Cody) e ver que Neal tinha material humano suficiente para se torna ro arquétipo de si mesmo, o cowboy do asfalto, o Huckleberry Finn da Era Nuclear.

No On The Road, a ação gira em torno de Cassady. Porém, como se sabe, Jack teve que fazer várias alterações no texto original a ponto que seus editores o julgassem adequado para a publicação. O problema se seguiria depois, quando ele, Jack, se viu refém de seu livro. Seus editores queriam que ele mantivesse a fórmula: e foi o que se seguiu com os lançamentos posteriores - do The Subterraneans em diante.

Visions Of Cody, o elo perdido da Lenda de Duluoz, no entanto, era o mais nobre filho desgarrado. Do jeito que foi concebido, ou por assim dizer, o mais experimental e louca (e original) (& tresloucada) mente possível era impublicável. Vítima da censura dos seus editores, Kerouac tinha que andar na linha, escrever livros vendáveis.

Esse não era o caso de Visions Of Cody, que a rigor era o que (para Kerouac) (ou para mim mesmo) deveria ser On The Road. Nesse aqui, Jack o concebeu dentro da verossemelhança possível de um road-book. Porém, além de sua capacidade descritiva e de caracterizações, ele já é notável, além de sua prosa esponânea como um solo de sax do Charlie Parker doido de benzedrina ou de outras substâncias legais ou ilegais. ESSA era a vitalidade bop de Kerouac.

O verdadeiro Kerouac, portanto, não está num The Subterraneans, mas em Visions Of Cody, ESSE é o livro. O problema reside, justamente, em sua inacessibilidade ao leitor comum. Ou nem tanto, já que eu posso aqui estar fazendo um drama gigantesco, mas o fato é que tantoa concepção (esquetes de imagens joyceanas da vida noturna nova-iorquna quase que num flagrante em câmera contìnua pelos bas-fonds da boemia mal vestida e mal assistida da América profunda, Kerouac brinca com a linguagem; os primeiros capítulos de Visions devem ser lidos mais de uma vez. Aliás, várias vezes. E EM VOZ ALTA.

Falando em Cody, por sinal, o problema dos nomes dos personagens nos livros de Kerouac é outro embarafustamento promovido por seus editores. Como ele tinha que mostrar produçlão nova, tinha que criar novos nomes para velhos conhecidos nossos. Cody e Dean são a mesma pessoa, como Jack e Sal.

De resto, o livro tem um detalhe fundamentalmente curioso. Se em On The Road Jack quis caracterizar Cassady dentro de um contexto, vamos dizer assim, dentro do âmbito da ficção, em Cody Neal é captado em gravação.

Ocorre que Jack sabia que, por mais que se esmerasse com lavor de joalheiro para transpor seu herói para a máquina de escrever, a única forma de captar o transe de Cody seria através da gravação de sua fala, já que nem o próprio Neal tinha talanto suficiente para escrever - e naturalmente se ressentia muito disso. Cody como Moriarty procurou Sal para aprender a escrever enquanto Sal queria escrever sua prosa com o mesmo fluxo de consciência de Cody. nos Visions, podemos ter uma idéia (que naturalmente se perde na degravação e depois na tradução) do que seria a doideira de bater um papo com o mais bitura de todos os beatniks.

O estilo de diálogo (que não é nada lá muito vanguardista, já que Platão já sacava dessa parada) não era a novidade em si, muito embora é possível ver que ela é a matriz do texto bop de Kerouac, tanto na mímese que ele faz desse estilo quando do que ele mais tarde transpôs ao longo de sua obra: pode mos ver ecos desses diálogos na sua peça Geração Beat e esquetes de sua porralouquice narrativa de Cody no Livro dos Sonhos, amalgamando delírio e humor de forma bisonhamente surpreendente. Mesmo que em alguns momentos o texto de Kerouac soe excrescente e por demais excêntrico, ele serve como uma forma peculiaríssima de se fazer um pastiche de estilos literários como os de Proust e Joyce dentro da ficção convencional, numa forma de se subverter o código do comum de uma forma catarticamente criativa.

Mais do que isso, muito da subversão textual que nós vemos hoje, ainda mais quando o coloquial acaba ganhando a queda de braço ao quebrar lanças com o beletrismo e o nível culto de linguagem, é possível observar que o Kerouac mais corrosivo de Visões de Cody (na tradução de Guilherme da Silva Braga para a LPM) já vislumbrava essa pororoca linguística lá no ano em que ele terminou o primeiro esboço do livro, em 1952.

enfim, pata quem não leu Kerouac, recomendo o On The Road. E para quem já leu Kerouac, recomendo Visões de Cody, com todas as forças.

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