Saturday, September 25, 2010

500 REAIS


A Ponte de Azenha


Patrício, não me avexo de uma heresia;
mas era Deus que estava
no luzimento daquelas estrelas

Simões Lopes Neto





É aquela história que a minha vó já dizia
: se você quer que alguém faça alguma coisa, por Tutatis, peça para quem tem bicho-carpinteiro, hypocrite lecteur, mon semblable, mon fere; para maturango, não peças nada - jamais. Escute.

Minha história é a seguinte. Meu chefe mandou me confiou um envelope pardo com R$ 500 para que eu depositasse na conta da empresa. Problema é que me pediram para comprar uma passagem para Itaqui, na Rodoviária. Tudo isso numa sexta-feira véspera de feriadão (era Semana Farroupilha).

Eu, como sempre, com panfletos, chaves, troco de todo o tipo nos bolsos, saí correndo, mala de garupa às costas e tudo (sempre que me vêem de mala de garupa, me perguntam se eu sou de Uruguaiana, não sei o porquê, mas azar)

Fui primeiro na Rodoviária. Uma fila enorme, muita gente. Comprei as passagens. Depois, tive que ir numa lotérica e, antes, parei numa lanchonete para beber algo. Bebi uma, duas, três cervejas. Já estava quase no clima do feriado.

Quando era quase quatro da tarde, eu entrei na agência. Revirei a mala, bolsos, e nada. Cadê os R$ 500? Olhava para os clientes para lá e para cá, alheios à minha confusão de idéias. E eu revirava de tudo o que é jeito os meus bolsos. Mala de garupa, Mala de garupa, bolsos, bolsos da jaqueta de brim. Nada.

Perdi os R$ 500. Só tinha o troco das passagens e mais um dinheiro que eu carregava sempre comigo. Tudo passou pelo meu pensamento lívido como aquele fim de tarde: todo o trajeto. Fila, Rodoviária, loja, ônibus, lotérica, Rodoviária, lotérica, fila. Onde eu esqueci aquilo, meu Deus?

Meu Deus. Certo é que, onde quer que fosse, eu havia perdido tudo para sempre. Era dinheiro, apenas dinheiro e nada mais do que dinheiro. Quem achou desapareceu na poeira do tempo, por mãos excusas e inocentes. Eu estava ficando pálido de desespero.

- Você está bem, meu filho? – Perguntou uma velhinha.

- Eu fiz besteira, minha senhora, fiz besteira, eu perdi dinheiro do meu chefe – balbuciei. Preferia antes que o diacho me levasse com suas botas, mas agora, o que vai ser de mim?

Fiquei com aquela sensação de quem quebrou algo e fica imaginando que, há poucos minutos antes, estava tudo bem na santa paz de Deus. Fiquei também pensando como a vida, num pequeno movimento, faz tudo cair por terra como um castelo de cartas. Não, eu também tinha parte nisso, e muita.

Eu fui displicente em guardar aquele valor (fiquei vagando em meus pensamentos). Eu fui negligente e irresponsávele não percebi que isso podia acontecer, mesmo sabendo que já fiz coisa do tipo antes. Me odiei por me permitir cometer novamente tamanho ato pueril, ainda mais guardando algo que alguém havia confiado em mim. Pior: quem vai acreditar que eu perdi? Vão achar que eu roubei & menti que perdi para ficar com os R$ 500...

Eu andava na rua à parte, eu não fazia parte da euforia da multidão. Pássaros psicodélicos de 150 kg voando, camundongos de chumbo e girafas coloridas viadutos vomitando carros, brigadianos disfarçados de cavaleiros da Távola vendendo cachorros-quentes para hippies imundos na rua, a Dama do Lago singrando as águas solitárias do Guaíba, as ondinas wagnerianas nuas a correr pelo Cais na cidade dourada da liberdade e as suas santas irmandades aguardando o Fim enquanto entrelaçavam seus cabelos dourados diante da Fonte do Porto sob o manto de esmeralda de um exército de gafanhotos que consumiam o bulício e a loucura da tarde enquanto o Guaíba ria pelos cotovelos e o vento uivava pelo alto dos edifícios de rocha pura e a Mboiotatá devorava olhos de luz pelo Largo da Conceição afora, etc.

Subi toda a Conceição enquanto via as pessoas felizes. Desci o Rosário até o Bonfim, cruzei com um bando de tropeiros que levava a sua cavalhada para o Acampamento Farroupilha, cruzei a João Pessoa e fui descendo a Azenha quando começoua chover forte. Em duas quadras, só minhas cuecas estavam ainda secas. A água havia entrado em meu Allstar furado. Toda a desgraça da minha vida aziaga chovia com aquela chuva sdobre mim. Não me sentia em lágrimas, tamanha era a choradeira que caía do Céu.

Iam me acusar de roubo! Ladrão! É exatamente isso o que eu sou, um ladrão barato, um batedor de carteiras do Polícia em Ação que se vende por nada e que põe toda a sua virtude fora por uma ninharia! Não, por Deus! Eu perdi o maldito dinheiro, meu Deus! Isso não! Não posso ser réu de juízo por algo que eu não fiz! Mas quem vai diabos vai acreditar em mim? Em quem eu posso confiar, agora? Onde eu vou conseguir dinheiro para repor isso, meu Deus?

Pensei em morrer ou me matar. Cheguei debaixo das palmeiras imperiais da Azenha e fiquei olhando a fúria das águas lamacentas quase a transbordar furiosamente em seu curso no Dilúvio...

Subi na ponte. Ningém podia me ver ou reconhecer, a chuva transformou a paisagem noturna em luzes de faróis e carros apressados correndo de volta para casa. Fiquei parado na mureta da Ponte da Azenha, ali onde os farroupilhas outrora invadiram a cidade, mas agora debaixo de uma chuva torrencial. O Dilúvio agora serpenteava hectolitros de lama, galhos de árvores, cadáveres de cachorros e estofados. Eu ia dar um salto ornamental para o fim do meu sofrimento.


Então bradei:

Pereça o dia em que nasci.

E a noite em que foi dito: uma criança masculina foi concebida! Que esse dia semude em trevas! Que Deus nas alturas não se incomode mais com ele! Que as trevas e a obscuridade se apoderem dele, que as nuvens o envolvam, que eclipses o apavorem, que a sombra o domine! Que esse dia não seja contado entre os dias do ano, nem seja lembrado entre os meses. E que seja estéril essa noite para todo o sempre, Amém.


Então eu me lembrei dela. Seus cabelos castanhos, sua pele ebúrnea, sua verruguinha na bochecha direita, sua voz pueril, do seu riso engraçado quando eu falo as minhas besteiras, doseu cálido olhar suave quando me olha, do seu Allstar branco, da sua adorável teimosia, do óculos dela colado com fita isolante Scotch, do seu sorriso que sempre me faz sorrir em minha alma profunda. Eu tenho que vê-la novamente, MAS ANTES TRNHO QUE acabar com todo esse drama tolo que eu me meti.

Um vira-latas (branco com as patas e o olho esquerdo carimbado de preto) me viu pendurado e, dado o insólito da situação, me fitou do rés-do chão da calçada abanando o rabo lentamente, com a cara pingando chuva.

Deus existe. Ele certamente estava naquele momento em que eu desci da ponte. Ele fez aquele vira-latas me sentir um tolo ali na ponte. Minha mala de garupa agora era um filete de pano encarcado no ombro.

Voltei para casa em fúria comigo mesmo: a culpa é minha, eu vou contar a verdade, e vou dizer que vou arrumar o dinheiro de volta, e com juros. Se isso aconteceu, foi para que eu aprendesse e não repetisse tamanha negligência nunca mais na minha vida. Ia, sei lá, arrumar um emprego de telemarketing nem que seja por dois malditos meses, para juntar a grana, depois assino a rascisão e dou baixa na carteira, ou, sei lá, continuo, azar. Havia uma solução. Sempre vai existir uma solução.

Cheguei em casa noite escura num estado de penúria. Meu pai me olhou sem me ver, e disse: “a janta está pronta”.

Entro no quarto escuro, tiro os tênis ensopados, abro as cortinas e acendo o abajur. Na minha escrivaninha, o envelope de papel pardo. Surpreso, abro o envelope. Lá estão os R$ 500.

Fiquei rindo como um tolo. Meu pai aparece de soslaio no marco da porta: “aconteceu alguma coisa?”.


- Graças a Deus não aconteceu nada - respondi.

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