Sunday, July 19, 2020

O Largo

Largo dos Medeiros em Porto Alegre (foto: Virgílio Calegari, colorizada pelo projeto Cores da Memória)

Essa foto é bem curiosa. É um flagrante do Virgílio Calegari, que deixou várias imagens da Porto Alegre do começo do século passado. Aqui podemos ver a esquina da Andradas com a General Câmara, no coração do Centro.

Muita gente que olhar a cena hoje deve ficar pensando que ela mostra algo como um acidente, um atropelamento, uma briga ou algo do tipo, dada a quantidade de gentre aglomerada na esquina. No entanto, se você ver bem, não existe gente apinhada nas janelas, ou seja, aparentemente, esse ajuntamento em plena luz do dia é algo normal.

E, por incrível que pareça, era. Importante notar, ou contextualizar aqui, antes de mais nada, que essa esquina era um pára-raios: do outro lado da praça Senador Florêncio, ficava o Grande Hotel, onde muitos políticos moravam. Ao seu lado, ficava a Federação, a imprensa oficial, o Correio do Povo, já nessa época, nas mãos de Dolores Alcaraz Caldas, um jornal de grande distinção na cidade e no Estado

Era a época dos cafés cantantes, das choperias tipicamente alemãs (Nilo Ruschel fala sobre elas em seu livro Rua da Praia *), do turfe (muito antes do futebol), do transporte fluvial de passageiros (a Varig só apareceria a partir dos anos 30), de uma relação mais próxima entre Porto Alegre e a região do Prata. Nessa época, o porto era a entrada da cidade, ligação principal do pequeno burgo açoriano (já cada vez menos açoriano) com o resto do mundo. 

E, nessa esquina da foto, ficavam as grandes confeitarias da Rua da Praia, a Schramm (que tinha dois andares, café cantante e espaço para festas, num prédio onde parte dele foi mal e mal mas ainda sobrevive) e a Central (ligado ao cinema, de mesmo nome, e que marcou época), do outro lado da rua na foto. E a própria General Câmara, como vocês devem lembrar quem leu Os Ratos, do Dionélio Machado, era a rua dos tabelionatos, das bancas de advogados, escritórios em geral - era o cérebro da cidade No topo da Ladeira, naturalmente, tanto ficava quanto hoje ainda fica o coração político da urbe.

Ou seja, independente da hora ou do dia, praticamemente essa esquina catalizava todo mundo que vivia o dia no Centro que, naqueles tempos, antes da descentralização de Porto Alegre, era A cidade (até hoje, quando a gente conversa com pessoas que moram em bairros afastados, é possível ver que existe uma tendência a chamar o Centro de "Porto Alegre").

Nas suas memórias **, Carlos Reverbel, que viveu essa transição da Porto Alegre antiga e a atual, dizia que o primeiro surto modernizador da cidade foi com a Revolução de 30. Importante lembrar que 1930 é o ano do Viaduto da Borges, avenida que, de certa forma, foi a primeira perimetral no burgo açoriano. Com ela, agora havia uma ligação direta entre o cais e a zona sul, sem ser preciso contornar a península do centro.

O viaduto provocou um bota-abaixo em cortiços no caminho, abriu outras artérias, desde a antiga Rua Nova (depois Andrade Neves) até a André da Rocha Ambas eram, até então, regiões de baixa renda, cheia de cortiços e lupanares. Ou seja, a Borges mexeu o centro, e abriu o largo onde hoje fica o prédio do Guaspari-Lebes, com a abertura da José Montauri (para descer a Andradas, até então, a única forma era ou pela Uruguai ou a Marechal Floriano).

Aliás, diz Reverbel, Porto Alegre viveu anos de imobilismo com o intendente Montauri - tanto que a distribuição de energia elétrica pela cidade só começaria de fato na administração Otávio Rocha (1924), interventor que foi responsável pelo viaduto, que leva seu nome, inaugurado pelo seu sucessor, Alberto Bins (1928). É Bins o prefeito nomeado que mudou a cara do Centro, ou seja, da avoenga Porto Alegre de então. 

Carlos Reverbel fala que a Andradas era a vitrine da cidade Nela, diz ele, havia lugares reservados a determinados grupos ou pessoas, como lugares em teatros. Observe que colocação interessante: quando vemos a foto lá em cima, podemos começar a entendê-la. "formando inúmeras rodas de palestras, em geral, animadas por afinidades eletivas, essas pessoas entretinham-se em tertúlias ao ar livre, qur podiam se repetir diariamente, o mais das vezes com o expediente pautado pelo horário comercial".

Segundo ele,  as rodas eram diárias e operavam em tempo integral, com os participantes revezzando ao longo do dia. Algo que seria possível comparar com a rotatividade daa do Brique da Redenção, porém diárias, e formadas nas escapadas do dia, intervalo de almoço, fim de tarde. As rodas, diz Reverbel, ficaram famosas justamente nesse ponto aí da foto, na esquina da Andradas com Ladeira, no que a municipalidade mais tarde pasou a chamar de Largo dos Medeiros.

O jornalista conta que assim como as rodas se tornavam antológicas, seus personagens também. Havia tipos que trabalharam como caixeiros, viajavam e retornavam ás rodas de conversa ainda com o pó da esteada para retomá-las como se nada tivesse acontecido. Papos de três meses eram retomados e se misturavam às últimas notícias.

O Largo era, mal comparando, a ágora da cidade. Era onde as pessoas não apenas se encontravam como ficavam sabendo das últimas. Além do Correio e da Imprensa Oficial, na Caldas Júnior, havia ainda o Diário de Notícias, que ficava na época (até o empastelamento, em 1954) logo na subida da Ladeira.

Notícias que apareciam no antigo placar que o Correio mantinha na frente do seu prédio, na época de eventos como a 2ª Guerra (numa época em que as redes sociais eram impossíveis de se imaginar) corriam a praça e logo eram repercutidas pelos presentes, o que faz entender a atração pelo Largo por parte dos porto-alegrenses. "quem deixasse de frequentar a Rua da Praia ficava por fora da vida da cidade e corria o risco de ser zerado na sociedade local", diz Reverbel.

Nas rodas do largo, misturavam-se desde um contrabandista de camisas argentinas com algum procer, um intendente ou até um governador. Diz Reverbel que, numa destas rodas, Getúlio Vargas teria sugerido a criação de um semanário feito aqui no Rio Grande do Sul, para um grupo de jornalistas Pouco tempo depois, diz ele, surgia, quem sabe por ideia do governador, a Revista do Globo.

Em matéria de política, diz Reverbel, tudo passava pelo largo. Tanto que a conspiração que desandaria na refrega que ocorreu na esquina da altura do Exército no começo da Revolução de 30 na capital já era sabido de muitos na esquina da Ladeira. Era a tarde do dia 3 de outubro de 1930. Muita gente saiu do largo direto para a Capital Federal, e muita coisa mudou.

No entanto, o hábito das tardes na esquina da Ladeira continuaram por muito tempo. Com o tempo, aquela geração foi se dissipando no tempo e no espaço. A própria região foi mudando - o Cinema Central foi demolido, o Grande Hotel pegou fogo, o Diário foi transferido para o 4º Distrito, o porto perdeu importância depois do muro, as pessoas foram saindo das ruas e das janelas, o êxodo rural transformou o footing onde todos quase se conheciam de obas e olás numa enorme fauna de gente anônima, com ambulantes e pedintes, a conurbação foi criando outras microrregiões, novos pequenos centros, a cidade foi crescendo e se descentralizando.

Na época do Regime Militar, provavelmente veio o golpe de morte: era proibido que pessoas se reunissem na rua. Mas o fim, de fato, ocorreu quando a Prefeitura resolveu construir o polêmico calçadão. Hoje, ninguém se lembra ou sabe que, um dia, aquela esquina era o umbigo do universo do burgo açoriano que Carlos Reverbel falava para lembrar da Porto Alegre de sua juventude, quando veio de Quaraí para ser jornalista na capital.

Hoje, se eu me postar na esquina da Ladeira com Andradas e fizer um "fala-povo" com os transeuntes perguntando onde fica o Largo dos Medeiros, ninguém saberá responder, mesmo estando parado no próprio lugar. Como dizia o próprio Reverbel, na sua coletânea de crônicas, Barco de Papel: a Porto Alegre de antigamente hoje só existe nas páginas do livro de saudades escrito por Nilo Ruschel (lançado pelo Instituto Estadual do Livro nos anos 1970). Ou seja, só restou na memória.


* Nilo Ruschel. Rua da Praia. Porto Alegre: IEL, 1971.

** Carlos Reverbel e Cláudia Laitano. Arca de Blau, memórias. Porto Alegre: Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1993.  

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