Saturday, June 10, 2017

O sprecher: Diego Velázquez através do espelho


Las Meninas

No livro Traçando Madrid (1997), Luís Fernando Verissimo narra sua estada na cidade espanhola, sendo ciceroneado pelo espírito de Goya (espirituosamente da mesma forma que Malazartes em Gato Preto em Campo de Neve, de seu pai, Erico).

No capítulo cinco, encontramos o cronista no Museu do Prado. Dentre tantas pinturas que ele observa, Verissimo presta atenção no Las Meninas, de Diego Velasquez (óleo sobre tela, 1656).

O quadro mostra uma cena trivial. Velázquez em seu estúdio, no Alcazár, antigo aposento do falecido príncipe Baltasar Carlos. Os reis de Espanha observam seu trabalho quando a Infanta Margarida irrompe em cena com um séquito, como se buscasse um espaço no meio da composição.

Sobre Las Meninas, Ernest Gombrich (1999), pergunta: “o que significa exatamente tudo isso?”, Ele mesmo responde: “é possível que nunca o saibamos, mas eu gostaria de imaginar que Velázquez fixou um momento real de tempo muito antes da invenção da máquina fotográfica” (p.287).

À guisa de interpretação, ele diz: “talvez a princesa lenha sido trazida a presença de seus régios pais a fim de aliviar o tédio da pose para o retrato, e o Rei ou a Rainha comentasse com Velázquez que ali estava um tema digno de seu pincel”, explica.

Para ele, as palavras proferidas pelo soberano são sempre tratadas como uma ordem e, assim, é provável que devamos essa obra-prima um desejo passageiro, e que “somente Velázquez seria capaz de converter em realidade”.

Arriscando uma interpretação, Verissimo lança mão de um conceito de sprecher (conceito que roubo dele — e que provavelmente tenha sido invenção do cronista, já que não encontramos cognato em cinema ou estética) para tentar olhar além do mero observador. Mesmo que sobre a obra-prima de Velázquez existam aos milhares, é interessante pegar carona com seu olhar diante da pintura.

Para o autor do Analista de Bagé, o sprecher (ou o “orador”, em alemão) é a “figura que, num tableau ou numa cena de multidão, está olhando, por assim dizer, para a câmera, e que é uma constante na história da pintura”. Ele explica que o sprecher raramente é a figura principal do quadro: “Não é um queixudo habsburg retratado por Velázquez ou um arrogante burguês pintado por Rembrandt, que olham para o pintor e para a posteridade como se olhassem num espelho, e cujo olhar não ultrapassa o verniz”, explica.

Ele entende que o resultado é como se esse observador da obra fosse um coadjuvante que é colocado para “preencher o quadro” ou “equilibrar uma composição da tela”. Contudo, o sprecher se destaca por quebrar os demais personagens do quadro, que meramente ‘posam’. Ao contrário deles, o sprecher olha “para fora” do quadro como se olhasse para nós.

A teoria do sprecher como o personagem intrusivo que olha para fora parece ser corroborada por Luiz Roberto Lopéz, (1996, p. 101). No entanto, ele afirma que o personagem principal no Las Meninas é o espaço. Ele também entende que, ao olhar para a frente, o pintor olha para fora do quadro.

Já o rei e a rainha, para Lopez, são personagens ausentes, muito embora façam parte da composição. “fisicamente eles só existem como reflexos no espelho (…) é o espectador, postado diante do quadro, quem ocupa o lugar dos modelos reais”. Dessa forma, de acordo com o autor, “realidade e pintura se tornam uma coisa só e o expectador se transforma em parte do quadro”, conclui.

No quadro, Verissimo acredita que Velasquéz é o sprecher dele mesmo. "Las Meninas é uma pintura cheia de truques em que Velasquéz vai além da clandestinidade e nos pôe dentro do quadro, nos convida formalmente a entrar"(Verissimo, p.94).

Também parece concordar com Lopéz quanto à essa “troca” onde o observador olha “para fora” ao mesmo tempo em que o expectador é conduzido “para dentro”. “Ele, no quadro, está pintando um quadro, espiando detrás de uma tela. O que está pintando não fica claro, depende da interpretação”.

Para Verissimo, as meninas estão no primeiro plano, elas seriam o foco do retrato. Contudo, Velázquez está atrás delas, olhando por cima da cabeça delas, diretamente para nós. Ele observa o engodo do espelho ao refletir o casal real: “se a cena fosse real, hipoteticamente seríamos nós refletidos (algo parecido com o “engodo” do reflexo da Vênus no Espelho).

Dessa forma, segue o cronista, o Velázquez estava a pintar o casal quando, de repente, a infanta e as damas de companhia irrompem a cena, como num instantâneo (o que vai de encontro com a observação de Gombrich, de que Velázquez fixou o tempo antes do advento da fotografia). Ao mesmo tempo, todos nós estamos inseridos naquele instantâneo, “participando de tudo”, diz.

O mistério posto (Verissimo cita o teatrólogo e escritor inglês Sir Jonathan Miller) é que, se essa interpretação é correta, então deveria existir um retrato de Felipe IV e sua mulher. Essa pintura seria a “matriz” da cena; Las Meninas, por conseguinte, seria uma espécie de “fotografia de bastidores”, ou um “making of”.

Porém, se o artista espanhol estava retratando o casal (a pintura poderia ser um símile dos Esponsais dos Arnolfini, de Van Eyck, que foi grande inspiração de Velázquez. Miller dá a largada e lança uma provocação: se o pintor estava pintando o casal real, onde está a obra? (frase na verdade muitas vezes atribuída a Théophile Gautier). Verissimo responde que pintar fazendo uma pintura que nunca existiu talvez fosse um truque de Velázquez.

De remate, o cronista diz que, no fim das contas, não podemos nos queixar: “indiretamente, ele nos transformou em realeza e nos colocou na corte espanhola no século XVII sem precisarmos estar vivos naquela época e portanto mortos agora” (p.95).

Numa interpretação mais ousada, Verissimo pontifica que Las Meninas é uma reflexão sobre as relações entre arte e poder. Como o quadro é elaborado do ponto-de-vista do casal régio, Velázquez pintou-se não como ele se via, mas como seus patronos o viam.

A despeito de ser o pintor real, Velázquez era quase um criado (Felipe IV, como se sabe, chegou a condecorar o pintor; porém, nos espetáculos de corrida de touros, ele tinha que ficar na quarta fila, ao lado das criadas de quarto), e um intruso na intimidade do palácio.

O artista, nesse contexto, como observa o cronista, só existe e prospera em deferência do rei. “Mas pintando-se no ponto-de-vista do rei, Velázquez se coloca como rei(grifo nosso), pelo menos naquele momento da criação. Para Verissimo, pinta o próprio rosto como o rei o vê, mas pinta o rei refletido no espelho, portanto a imagem do rei pelo inverso, portanto, o rei errado”, conclui.


Narrativas

Voltando à teoria do sprecher de Luís Fernando Verissimo, poderíamos comparar o observador intrusivo dentro da composição da obra como efeito análogo ao que encontramos na “quarta parede”. Segundo Mário Lago (2011), ela é uma quebra de artifício, na qual o público olha a “verdade”, como que por meio do buraco de uma fechadura.

Ao mesmo tempo, Verissimo entende o sprecher é elemento voyeur na pintura. No entanto, entre ele e a plateia, existe o surpreendente contato (da quarta parede) que vira um foco desconcertante de atenção. “Estabelece-se um estranho contato, uma forma de cumplicidade [entre o espectador e o personagem da tela]”. Em Las Meninas, sendo Velázquez retratado olhando além da realidade da tela, ele quebra a ilusão divisória e “sai” do quadro querendo comunicar-se nos olhos do espectador além dos personagens do quadro, que simplesmente posam.

O olhar dele no nosso pode estar atravessando alguns séculos. Todos na pintura já morreram, o pintor morreu e continua ali, com seu olhar inquisidor posto no futuro. O único sobrevivente. Ou então está querendo nos dizer alguma coisa. Pode ser só uma mensagem do pintor. Só o que fica dos dramas e esplendores do mundo é esse contato mudo — que só perdurará enquanto houver olhos humanos para olhar o quadro e encontrar o olhar cúmplica do spretcher (1997, p.93)

Logo, de acordo com Verissimo, podemos entender que Diogo Velázquez, a um só tempo, teria feito uma inversão: um auto-retrato sob o ponto-de-vista do rei, colocando-se, disfarçadamente, em proeminência mas “protegendo-se ao colocar a Infanta Margarida em primeiro plano. De forma concomitante, com efeito, ele quebra a quarta parede da composição, explorando uma inusitada familiaridade com o espectador.

A quebra da “quarta parede” pode nos remeter á metalinguagem: em Las Meninas, além da primeira narrativa (o pintor retratando Felipe IV num quadro imaginário) há a ilustração de uma cena dentro da cena (a Infanta e seu séquito) e uma terceira cena, que é Velázquez flagrando-se no ato de pintar — o artista falando da sua arte ou, o pintor auto retratando-se como artista, onde esses vários planos concorrem ao mesmo tempo, num flagrante instantâneo.

Logo, abre-se a possibilidade de se pensar nessa intertextualidade entre o Van Eyck do casal Arnolfini (onde Eyck sutilmente pinta a si mesmo, embora no sentido de documentar o retrato, muito antes do truque do espanhol) e Velázquez, como se Las Meninas seja uma narrativa dentro de outra narrativa ambas dentro de uma terceira que emoldura as duas, que é metalinguística. Esta, por sua vez, nos faz pensar, enquanto tentamos entender o conjunto da obra, sobre o ato de pintar, ou o ato da criação.

Não indo muito longe, outro autor do Século de Ouro que lança mão da metalinguística é Cervantes. Numa cena dentre tantas no Dom Quixote, há a famosa história de dois inseparáveis amigos — Anselmo e Lotário.

O primeiro deles se casa e resolve fazer um teste de fidelidade logo depois das bodas, convidando seu amigo a ficar na casa dele com a esposa enquanto ele viaja. No fim, depois de tantas peripécias, o outro foge com a esposa e o marido traído, o curioso impertinente, vítima de sua mórbida curiosidade, comete suicídio (sintomático que nosso Machado de Assis não era indiferente a essa história do Cervantes quando ele resolveu escrever o Dom Casmurro).

Detalhe é que o cura devolve o livro ao dono da estalagem (a obra era de alguém que havia esquecido bagagem ali) e faz um comentário meio à guisa de crítica literária, achando a história ligeiramente inverossímil — porém não deixando de achar a história do triângulo amoroso muito “bem bolada”.

Então, a um só tempo, aqui nós temos também uma espécie de jogo de espelhos, onde há uma narrativa que abre-se dentro de outra (como lembra Borges ao referir-se às 1001 Noites) e, em seguida, um comentário a respeito dessa segunda narrativa, tudo concorrendo naquilo que Maria Augusta da Costa Vieira (2013) aponta no escritor espanhol, a sua tendência a experimentar formas de discurso, e gostar de “brincar com essas mesmas formas discursivas que existiam naquele tempo”.

Maria Augusta salienta que, com esse expediente, Cervantes desafia o leitor que, à primeira vista, não dá conta da complexidade de Dom Quixote. “Ele estimula o leitor para pensar o tempo inteiro sobre a própria arte da escrita”, diz ela.

Esse comentário a respeito da hipertextualização (aqui empregada mais no sentido de fenômeno intertextual) em Dom Quixote não passaria muito longe do que podemos apreender, nas artes visuais, de Velázquez? No Las Meninas também vemos esses dois expedientes: o de brincar com o espectador e o de estimulá-lo a pensar sobre a própria arte da pintura.

Finalmente, outro exemplo de hipertextualização podemos encontrar em Shakespeare. Como lembra Frank Kermode (2001) usa a metalíngua como efeito recorrente em seu teatro, (p.256). Nelson Rodrigues (1994) ilustra o fenômeno:


Você se lembra que, em Hamlet, acontece o seguinte: — de repente, o palco shakespeariano é invadido por um bando de comediantes e os recém chegados fazem piruetas, dão saltos mortais, dançam e declamam. A plateia fica atônita de beleza. É o teatro dentro do teatro, a poesia dentro da poesia, o sonho dentro do sonho (p 269)

Na cena II do 2º ato (2012), Rosencrantz informa ao príncipe da Dinamarca que uma trupe de saltimbancos chega a Elsinor. Halmet pergunta por que o grupo resolveu partir de Wittenberg e seu amigo informa que eles foram proibidos de atuar na Saxônia devido “ao que eles representam” (p.56).

Em seguida, Rosencrantz e Hamlet começam a debater a respeito de moda e protocolo na montagem teatral. Quando trava contato com a trupe, o filho de Gertudes debate com os atores desde a natureza do teatro quanto à sua representação no palco e suas contingências, ensaiam uma interpretação, ao mesmo tempo em que barganha a famosa interpolação que irá desmascarar o rei aos olhos de Hamlet.

No ato III, temos finalmente o teatro no teatro. Hamlet, que antes doutrinara a trupe, agora noutro plano é o voyeur do rei, descrevendo a reação do espectador singular. A plateia vê o teatro, o teatro no teatro e a peça sendo vista pelos olhos do sprecher da cena — o intrépido herdeiro do trono da Dinamarca, que faz com que nós sejamos cúmplices dele projetados como se víssemos os saltimbancos da coxia.




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Embora pareça movediço e carente de certa fundamentação teórica, o conceito de sprecher nos parece interessante no sentido de poder, na nossa opinião, amalgamar um conceito de arte visual com de linguística, onde pode existir mais coisas além do céu e a terra do que supõe o código.

Contudo, o conceito de Quarta Parede, oriunda do teatro e usado em escala fordista no cinema, é mais utilizado como expediente cômico, de forma a que haja, a título de chiste, uma quebra dos protocolos da representação cênica com o aliciamento de espectador.

No caso de Velázquez, é como se o pintor espanhol tivesse provocado o fenômeno, de acordo com Verissimo, de, ao mesmo tempo, atrair para si a realeza de sua arte ao colocar-se em primeiro plano de forma original, mas não com a intenção de comicidade, mas de fazer com que o espectador possa meditar sobre a natureza de sua arte, e da pintura em geral.

Isso faz com que pensemos nos vários planos que concorrem em Las Meninas e que nos fazem lembrar das palavras de Maria Augusta da Costa Vieira, que observa como, assim como Velázquez, seu contemporâneo Cervantes, também gosta de brincar com formas discursivas e colocar o leitor/espectador a pensar, quase que o tempo todo, sobre o próprio código a ser utilizado: a arte de pintar e a de escrever. O pensamento está ali, se exercendo o tempo todo. Daí decorre toda essa “mobilidade” da narrativa, que se desenvolve em vários planos. Ou, como dizia Montaigne: “quem perde a minha pista é o leitor desatento”.


Fontes consultadas:



CERVANTES, Saavedra, Miguel de. Dom Quixote: o cavaleiro da triste figura. 4. ed.
São Paulo: Scipione, 2010.

FILHO, Mário. Quarta Parede. Disponível em Acessado em 30/05/2017.

GOMBRICH, Ernst. História da Arte. LTC, 2001.

KERMODE, Frank. Shakespeare's Language. Penguin UK, Inglaterra, 2001.

LOPEZ, Luiz Roberto. Sinfonias e Catedrais. UFRGS, 1996.

RODRIGUES, Nelson. A Menina Sem Estrela. Coampanhia das Letras, 1994.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. LPM, Porto Alegre, 2012.

UNIVESP TV. Literatura Universal - Dom Quixote de La Mancha - Maria Augusta da Costa Vieira - Pgm 04. disponível em Acessado em 26/05/2017.

VERISSIMO, Luis Fernando. Traçando Madrid. Artes e Ofícios, Porto Alegre, 1997

5 comments:

Flávia said...

Oi Marcelo. Há muito tempo procurava esse texto do Veríssimo que guardei como recorte de jornal há muitos anos. Mas não lembrava a palavra que ele usava. Já tinha buscado outras vezes, mas ningém fala do sprecher do Veríssimo na Web. Obrigada!
Você é o mesmo Marcelo que discute As palavras e as coisas? https://www.incinerrante.com/textos/las-meninas-segundo-foucault.
Abraço, Flávia

Marcelo said...

Oi, Flávia, obrigado pelo comentário! O texto do Verissimo você pode achar no livro. Acho curioso que ele cita o conceito mas eu acho que ele inventou ele. Mas eu não sou esse Marcelo. Esse texto originalmente eu publiquei como artigo para acadeira de Arte e Literatura na cadeira de História da Arte na UFRGS. Abraço!!

Flávia said...

Obrigada... desculpe a insistência, mas vc não tem esse texto publicado em outro lugar? ou outra versão em que vc esteja identificado? Para que eu possa fazer jus à sua autoria? é uma citação muito pequena, num pé de página sobre o sprecher, mas estou quebrando a cabeça para fazer a refrência colocando como autor apenas "Marcelo" ou "Pato Macho! rsrs

Marcelo said...

naturalmente, eu a publiquei no meu Medium
]https://medium.com/@marceloxavier_36600/o-sprecher-diego-vel%C3%A1zquez-atrav%C3%A9s-do-espelho-c3c212f8ef8b

Flávia said...

valeu! Obrigada!