Thursday, April 14, 2016

Por Favor, Sucesso


Matéria da Folha sobre o 1º Musipuc


Em 2001, humildemente participei da produção de um livro, intitulado Gauleses irredutíveis (1). O livro (que deveria ser relançado, pois teve apenas uma edição, de apenas 2 mil cópias), segundo seus autores, tinha como foco o boom representado pelo lançamento do disco Rock Garagem, (Acit, 1984). A estrutura, por sua vez, era inspirada no Mate-me Por Favor (2), que havia sido recém lançado pela LPM.

Na produção, eu transcrevi dezenas de fitas de entrevistas (muita coisa fui recordando recentemente, ao reler recentemente o livro — agora na íntegra e que, por incrível que pareça, não tenho mais há tempos) de um monte de gente. esqueci de muitas passagens de coisas que foram editadas e não entraram na edição final do Gauleses, mas muita coisa ficou na minha cabeça desde então.

Uma delas é um trecho de uma entrevista de um conhecido músico, que começou sua carreira nos anos 70. Em dado momento, ele abriu um parêntese na entrevista. e fez uma crítica interessante: falou que, nos anos 80, a mídia em geral simplesmente se esqueceu de todo o movimento musical que surgiu nos anos 70 em Porto Alegre.

Segundo ele, essa mídia (ou boa parte dela) teria abraçado o rock gaúcho (que, a partir da Blitz, em 81, foi a resposta regional a um movimento que iniciou-se no Rio e em São Paulo) e, vamos dizer assim, meio que "virou as costas" para todo aquele pessoal que fazia a música na cidade antes.

Depois, ele pediu para que isso ficasse em off (e talvez sequer entrasse de qualquer forma no corpo do livro). Na verdade, era uma queixa de como ele sentia em ter quebrado lanças num movimento coletivo que fez história e que, de repente, aquilo tudo tivesse sido relegado às calendas e às gavetas da história. Porém, à guisa de parêntese (também) como se sabe, não é de bom tom brigar com a mídia, seja ela qual for (não tenho mais os originais, então a minha citação fica por conta da minha memória).

Claro que, enquanto a produção toda dos Gauleses foi tomando corpo, o olhar do livro também buscou um começo do rock dos anos 80 passando desde o Liverpool até os tempos da chamada Frente Gaúcha de Música Popular, e os festivais do diretório Acadêmico da Arquitetura (o DAFA, nos tempos da agitação universitária na Esquina Maldita). Porém, existe, na bibliografia em geral, uma carência de dados referentes aos anos 70 em Porto Alegre — e, com todo efeito, isso também se dá pelo próprio contexto da época: desde problemas logísticos para poder gravar (por parte dos conjuntos e artistas) até o pouco interesse que havia no Brasil a respeito de música jovem.

Isso explicaria, em parte, o porquê de como o rock gaúcho dos anos 80 e todo o movimento que veio com ele, apareceu como uma resposta a uma década culturalmente reprimida e mal assistida e, por muito tempo, pouco ou mal documentada, ou com um arquivo morto ainda prestes a ser desvendado.

O caso aqui não é a questão de brigar com a mídia ou não ou as razões de (ou as razões da mídia), mas entender opinião daquele entrevistado como um dado curioso. De fato, do muito que se fala e se escreve sobre música porto alegrense e rock gaúcho em geral, o cânone sempre gira em torno dos anos 80. E os anos 70?

........

Se olharmos em retrospectiva, existe hoje uma bibliografia que fala sobre o assunto em algumas obras. A primeira que me lembro é a biografia da série Esses Gaúchos sobre Carlinhos Hartlieb (3). Mais recentemente recordo dos livros do Claudinho Pereira (4), do Pedro Sirotsky (5), da dissertação de mestrado de Marilene Nascimento de Souza sobre o Musipuc (6) e a biografia da Continental (7).

Todos esses títulos nos emprestam subsídios sobre tema. Porém, não existe um livro — e aqui eu começo a imaginar um livro (SPOILER: daqui por diante, é papo de boteco) como o do Ruy Castro sobre a Bossa Nova. Não um emaranhado cadenciado de depoimentos, mas uma grande reportagem, que pudesse delimitar um período de tempo que compreendesse esse movimento musical de Porto Alegre.

Eu imaginaria um começo: o 1º Musipuc, no fim de 71. O fim, provavelmente o paroxismo musical dos 70 (e o canto do cisne ou o fim e o novo começo), que foi o Cio da Terra, em outubro de 82. Por coincidência ou não, 82 seria o ano em que o rock (ou BRrock) começava a mudar a mentalidade dos donos de rádios e gravadoras.

É possível que não exista nenhuma teoria da conspiração por detrás (será? Hummmmm...) dos porquês da mídia dos anos 80 optar pelo rock em detrimento da MPG setentista: talvez seja apenas o começo de um ciclo e o fim de outro. Fato é que, se música jovem era quase um "mercado" de nicho por aqui antes, a partir dos 80, nessa virada de década, o ponto-de-vista mercadológico mudou — guardadas as devidas proporções, por favor — como acontecera com a Jovem Guarda, nos anos 60. De repente, o mercado fonográfico virou um pau de sebo visando o público jovem.

O que ficou de fora — e, de certa forma, havia um certo preconceito, aí é possível entender a fala do nosso amigo entrevistado, contra aquela coisa meio bicho-grilo que vinha com aquela cultura da MPG. Por isso que acho que o cerne do debate é pensar justamente essa troca de paradigmas, essa mudança. Mas, para isso, ainda faltaria pelo menos tentar juntar mais peças desse quebra-cabeças que foram os 70 (a própria expressão "deu prá ti" já continha um certo cansaço do que foram os anos 70, ditadura, censura e resistência contra a "invisibilidade" cultural da cidade).


............


Se fôssemos imaginar a estrutura desse livro a la Ruy castro, poderíamos delinear o percurso do tempo começando — justamente — com o Musipuc, em 71, que foi promovido pelo CASTA da PUCRS, mas que foi realizado no Theatro São Pedro. No ano seguinte, teríamos a Feira de Som, com apoio do cursinho IPV e o Diretório de estudantes da PUC.

O catalisador daquele movimento esparso seria a rádio Continental 1120. Ela iria repercutir no éter (como se dizia romanticamente na abertura do Bier Show, do Cascalho) muitos dos nomes que iriam fazer sucesso regional e nacional: os Almôndegas, Zé Flávio, etc. Até o auge dessa transa entre a emissora e o 'movimento' (sem esquecer as Rodas de Som, de Carlinhos Hartlieb, no começo de 1975), que foi o Vivendo a Vida de Lee. Como o DJ do programa (assim como J.B Shueller, da rádio Porto Alegre e ex-programador da 1120) foram jurados do Musipuc na terceira edição, eles decidiram gravar e lançar a "patota" a partir do estúdio B da Continental.

Ou seja, uma rádio segmentada para o público jovem descobriu que havia uma mina de ouro que não era explorada ou era ignorada por quase toda a proto indústria cultural da região. Logo, artistas locais chegariam ao estatuto de estrelas, mostrando suas canções no rádio (rodando todo dia mesmo sem que nenhum deles tivesse um contrato com algum selo ou gravadora), já com a sua respectiva base de fãs, que enchiam as apresentações, promovidas pela 1120 sob os auspícios do anunciante, a Lee, que investia pesado (no mesmo seguimento jovem, vendendo calças de brim com a grife propriamente dita, já que ela só chegava aqui importada e, mesmo assim, dada à lei de reserva de mercado, inexistia no mercado brasileiro) no país e, mais precisamente, no Rio Grande do Sul, via MPM Propaganda (que tinha a conta e investia na Continental).

O programa, por sinal, inicialmente utilizava várias vinhetas importadas dos Estados Unidos (alguns estão no disco Lee Original Country Music, que marcou época por aqui) e tocava músicas que tinham a ver com o mundo de Lee ianque (geralmente, country americana, ou britânico, uma versão pop farofa do outlaw, diriam as más línguas). A partir do Musipuc, o espaço foi compartilhado com números de artistas como Inconsciente Coletivo, Cálculo 4, Hallai Hallai, Byzarro, Mantra, Mercado Livre, Bobo da Corte, Utopia, Em Palpos de Aranha, além dos já conhecidos, como Almôndegas, Hermes Aquino e Fernando Ribeiro, entre outros, muitos outros.

Importante destacar, contudo, que muitos deles já tocavam na superquente antes do advento do programa do Mr. Lee. "Até Não Mais" já se tornava um sucesso local pelas ondas da 1120 a partir de 1974, por exemplo.

A apelo do produto da Lee é interessante: prega uma imagem bicho-grilo, bem ao estilo da publicidade da época (lembram do reclame da Pepsi, "Só tem amor quem tem amor prá dar..."), que era bem elaborada, com vinhetas que misturavam a imagem do apresentador com as qualidades do produto, natural, feito do algodão "das mais velhas plantações" (como na vinheta traduzida em Português na Continental).



A música, em geral, tinha pontos de contato com a trilha típica do drop out dos anos 70 (prá não dizer desbunde), cuja característica principal vinha de conjuntos vocais folk, como Crosby, Stills, e Nash — que rebatiam no rock rural de Sá, Rodrix e Guarabira e no sonoridade acústica do Clube da Esquina. Muito dessa linguagem aparece na produção local: em sua maioria, bandas sem bateria (este, um apanágio do rock, e havia um certo preconceito com o rock por excelência) até porque, de certa forma, as condições de gravação aqui eram precárias (quase todos gravaram direto na 1120).

Sobre a cena criada pelo programa de Furst, Lúcio Haeser destaca no livro Continental, a Rádio Rebelde de Roberto Marinho: "para os músicos, está facilitado o caminho para tocar no rádio. é desnecessário gravar um disco de sucesso. E, para a rádio, um grande diferencial: identificação com a cidade (...) com a Continental, músicos e público se sentem participantes do movimento. Um movimento sem nome. Na 1120, os músicos da cidade podiam brilhar. Ali estava o canal que reunia diversas tendências de músicos (p 190).

O auge do 'movimento' deflagrado pela visibilidade do programa foram dois shows coletivos. O primeiro foi no Teatro Presidente, com mais de 2 mil pessoas do lado de fora. "Tivemos que chamar a BM. Todo aquele quarteirão foi fechado", diz Furst (7). O segundo concerto tá na internet [no Youtube], umas pessoas fizeram uma matéria chamando o Concerto de Woodstock de Porto Alegre que foi esse segundo Concerto da Lee no dia 9 de novembro de 1975, no Araújo Viana onde eu coloquei diz bandas, todas elas locais e autorais.Não existia cover naquela época, todos com música própria" (8) diz.

No dia seguinte, Juarez Fonseca diz, sobre a apresentação: "preste atenção, a indústria do rock está chegando á Porto Alegre". No texto, Juarez não destacava simplesmente a qualidade da produção musical no palco mas, sim, todo o movimento de massa em torno daquele frisson franqueado pela 1120 como um desenvolvimento natural das Rodas de Som. "está provado que o público, hoje, é maior do que os teatros".

Ao todo, foram quatro concertos de Lee. Após o último, o Correio do Povo chegou a intitular a efeméride como Novo Movimento Musical Gaúcho.

Como diz Marilene Nascimento, na sua tese, Longe Demais das Capitais: "com o grande sucesso do programa na rádio, surge a idéia de fazer shows itinerantes pelo estado, chegando até o Paraná, pois o programa também e retransmitido em Curitiba. As turnês tinham suas lotações esgotadas e sempre havia necessidade de fazer mais de um show".


Cartaz do primeiro show de Mr. Lee, no Presidente


Outro capítulo para o livro a la Ruy Castro: o disco coletivo Paralelo 30 (1978). Produzido por Juarez Fonseca e gravado na ISAEC (lançado pelo breve selo Pentagrama), representou o momento de maturidade do movimento, com um amálgama de uma geração antiga (Cláudio Vera Cruz, Raul Ellwanger e Carlinhos Hartlieb) e novos — Nando D'Ávila, Nelson Coelho de Castro e Bebeto Alves (solo após o Utopia), esses já entronizados pelas audições do então já extinto Vivendo a Vida de Lee.

Talvez imagine descrever os bastidores das gravações, entrevistas com os remanescentes do disco — ainda hoje um dos clássicos da música gaúcha urbana de todos os tempos, e que foi redescoberto — como boa parte daquela produção artesanal do estúdio B da 1120 no CD do disco-encarte do livro de Haeser sobre a Continental (também encontrável no Youtube na íntegra).

Por sinal, o Continental: a Rádio rebelde de Roberto Marinho já trás uma lista de lançamentos de discos oriundos do 'movimento' e o corolário de daquela polifonia, como os discos de estreia de Hermes Aquino (com o megahit "Nuvem passageira", pela Tapecar) e de Fernando Ribeiro ("Em Mar Aberto, pela Odeon), além dos compactos "Voando Alto", do Inconsciente Coletivo ("abra a janela e respire o novo ar da manhã").

Tanto os concertos de Lee quanto o paralelo 30 faziam parte daquele ciclo, o "Novo Movimento Musical" ou o que se chamaria posteriormente de MPG. em matéria sobre o assunto, Fonseca entendia o fim do programa como uma transição, o fim daquele ciclo, iniciado no começo de 75. Agora, muitos artistas já estavam gravitando além do estúdio B da Continental.

Já Haeser salienta que a mudança de Furst de Mr. Lee para Mister Júlio iniciava uma mudança: o 'movimento' se dividia e saía da pauta da programação da rádio (seu programa tocava apenas MPB, e os poucos músicos do grupo que haviam chegado ao disco de fato). Isso também marcava o começo do fim da própria emissora, que começava a perder terreno com o advento das FMs comerciais na capital.

Por fim, o Paralelo 30 acabou sendo o elo entre o fim daquele ciclo do Novo Movimento e a objetivo de solidificar os artistas do disco em carreiras solo. Entre eles, teríamos o Musical Saracura (com o Nico Nicolaiewsky antes do Tangos e Tragédias), com seu único disco (1982, que também merece um super-capítulo), Nelson Coelho de Castro ainda lançaria pela mesma Pentagrama o LP Juntos (que foi um dos precursores do crowdfunding, história que pode entrar no livro). Com Bebeto Alves, Raul e Cláudio vera Cruz, eles seguiram além dos anos 80 até hoje — além do boom da nova cena porto alegrense, agora capitaneada pelo rock gaúcho, nas ondas do FM e com outros discos coletivo ou manifesto, como o (hoje plenamente entronizado)Rock Garagem.

................

Aí chegamos ao ponto de partida. O rock gaúcho dos anos 80 matou o 'Novo Movimento Musical Gaúcho'? Ou foi um novo ciclo. Será que mídia realmente decretou o fim daquele movimento em favor de outro? Ou podemos dizer que é um pouco de cada coisa, ou de outros(muitos) fatores (contexto histórico, tecnológico, etc).

Como terminar esse 'livro'?, livro este, cujo esquete mal desenvolvido aqui (desculpem pelo papo de boteco), terminaria com o Cio da terra, de Caxias, o outro Woodstock dos pampas, talvez o 'canto do cisne' daquela geração que começou no DAFA, passou pelo Musipuc, viveu a vida de Lee e terminou numa festa de beladona e chimarrão e outros baratos nos pavilhões da Festa da Uva?

Enfim, este 'livro' provavelmente, por uma questão de ordem, termina justamente onde o Gauleses irredutíveis começa — ou se alicerça. Ou, resumindo, um 'livro' que transforme os anos 70 em Porto Alegre, algo que pareceu um prólogo, ou "nota de rodapé" num Movimento com "m" maiúsculo, como algo digno de uma obra que tenha um novo olhar sobre o movimento cultural e musical de Porto Alegre naqueles conturbados, inesquecíveis e sonoros anos 70.





Notas:

(1) Álisson Ávila, Cristiano Bastos, Eduardo Müller. Gauleses Irredutíveis. Sagra Luzatto, 2001.
(2) Larry "Legs" McNeil e Gilliam McCain. Mate-Me, Por Favor, LPM, 1997.
(3) Jimi Neto e Rossyr Berny. Carlinhos Hartlieb. Rigel, 1985.
(4) Claudinho Pereira, Na Ponta da Agulha, editora da Cidade, 2011.
(5) Pedro Sirotsky e Marcelo Ferla. Lembra do Transasom?. LPM, 2007.
(6) Marilene Nascimento de Souza. Longe Demais das Capitais: um (novo) movimento musical em Porto Alegre na década de 1970. Tese de Mestrado em História, PUCRS, 2006.
(7) Lucio Haeser. Continental: a Rádio rebelde de Roberto Marinho. Ed. Insular, 2007.
(8) Entrevista com Julio Furst. Projeto Vozes do rádio: PUCRS/Famecos http://eusoufamecos.uni5.net/vozesdoradio/entrevista-27/ (acessado em 14/04/2016).

No comments: