Tuesday, August 24, 2010

A morte e a morte de D. Vicente Scherer

Outro dia eu cometi um ato falho, estava falando dos desafetos do Nelson Rodrigues e,entre eles estavam o pensador católico Gustavo Corção, o fundador da AGIR Editora (e também pensador católico), Tristão de Atahíde e o Dom Hélder Câmara.

Não é o que eu iria dizer, ou por outra, ocorre que, ao citar D. Hélder, eu falei Dom Vicente Scherer. Ninguém sabia de quem eu estava falando, até que eu me dei conta que citava por engano o antigo Arcebispo de Porto Alegre (de 1947 até 1981) porque eu descobri que ele havia sido pároco na igreja São Geraldo (bairro operário da cidade), onde meus pais se casaram e este que voz escreve foi levado intrépida e galhardamente à pia batismal.

Mas depois me dei conta que o D. Vicente é uma figura hoje pouco lembrada (e pouco biografada), mas que, mesmo não sendo daqui (ele era de Bom Princípio), foi um dos mais ilustres e folclóricos personagens desta paisagem urbana. Claro que apenas peguei a deixa do meu execrável ato falho paraacrescentar um fato que tem mais a ver com o lado folclórico dele, e que muita gente acha que é lenda urbana.

A história é a seguinte. O Dom Vicente tinha um programa na Difusora toda terça, chamada A Voz do Pastor (ele assinava um artigo de fundo semanal com o mesmo nome na imprensa porto-alegrense, que seguiu no Correio do Povo mesmo depois da sua morte, em 1996, mas redigida obviamente pelo seu sucessor, e não por Dom Vicente in excelsis, vocês entenderam).

Como eu ia dizendo, o Dom Vicente falava nos microfones da Difusora toda semana e, de tanto ouvir a sua vóz fina e anasalada ("mistéeerios gozóooozos"), em pouco tempo, quase toda Porto Alegre sabia imitá-lo. Não era raro apareceram trotes de toda a espécie, sempre "protagonizados" pelo nosso "arcebispo" ao passo que a vítima, com efeito, temendo estar falando com o próprio Dom Vicente, ficava com medo de revidar. Ou não.

Ou não porque, certa feita, no fim dos anos 50, num domingo sonolento de sol, final de tarde, um pouco antes das seis, uma voz de mulher ligou para a então recém fundada rádio Guaíba.

— Pronto, boa tarde — disse a senhora — Eu sou a Madre Heloísa e estou ligando aqui da Cúria Metropolitana para informar, com grande tristeza, que o nosso querido arcebispo, Dom Vicente Scherer, acabou de falecer. Se por acaso os senhores desejarem mais detalhes, por obséquio, liguem para o Cônego Pedro Abelardo, número 5923.

Atônito e sob o impacto de receber aquela hercúlea bomba no colo, o redator de plantão foi confirmar o trágico sinistro (perdoem o pleonasmo. ou não). Atendeu o tal Cônego Pedro Abelardo, muito consternado:

— Sim, é vrdade — respondeu o clérigo. — Estamos muito consternados com tamanha infausta. Ele prostrou o seu deradeiro suspiro...

Num átimo de minutos, a Guaíba irrompia o éter com uma edição extraordinária do Corrspondente Renner (saudoso, diga-se de passagem) enquanto os sinos da Cetedral dobravam (a rigor, eram seis da tarde e eles sempre tocam às seis da tarde — ou não).


Uma hora depois, descobriu-se que era um trote, e que o Dom Vicente estava vivão. O então chefe da redação da emissora, Flávio Alcaraz Gomes, e o diretor da Guaíba, Arlindo Pasqualini irromperam do seu dia de folga para acompanharam o desenrolar dos acontecimentos quando ficaram também duplamente surpreeendidos com a tremenda bariga deflagrada pelo Correspondente.

Pasqualini queria triturar o pobre redator que caiu na pegadinha (embora tenha recebido confirmação embora fria, de qualquer forma, indesculpável, mas eram outros tempos românticos e floridos e dourados & isso hoje não acontece mais não é mesmo gnt). Como ia sobrar — e devia sobrar — para alguém, esse alguém foi o repórter.

Nesse meio tempo, durante a noite de domingo e a segunda inteira, a central de telefones da Guaíba foi infestada por trotes de gente ligando para tirar sarro da barrigada da emissora e, com efeito, imitando o jeito de falar de Dom Vicente...


Mas nosso herói não levou aquilo a sério como Pasqualini, que tinha a credibilidade do jornalismo da rádio a zelar. mas como um valor mais alto se "alevanta", como diria Camões, o nosso arcebispo soube da demissão do redator e, numa sublime missão de paz, decidiu ligar para a Guaíba para falar com o "capitão". Scherer queria que eles voltassem atrás, o perdoassem, em nome dos céus, e o reintegrassem à redação.

Dom Vicente liga para a Guaíba. Alguém atende. Ele fala:

— Alóooo, aqui quem fala é o Dom Vicéénte Scherer, eu queria rogaáar ao doutoóóór Pasqualini para que ele voltasse atrás e...

— Ora, vá à merda!

E desligou.

No dia segunte, surpresa: o Dom Vicente apareceu pessoalmente na sede da Caldas Júnior, para tratar do caso. Da entrada até a porta da Guaíba, no segundo andar, foi uma procissão de beija mãos e de "louvado seja Nosso senhor Jesus" até que Pasqualini o recepciona. Os dois se abraçam, o diretor beija a mão de Dom Vicente, que sorri para Pasqualini e dispara:

— Quer dizer que além de me matarem vocééés me ressusitam e ainda me mandam à merda, não é?

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