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Cazuza na capa do disco Só se for a Dois |
Esse é um trecho da polêmica matéria da Veja de
abril de 1989:
"Cazuza não é um gênio da música. É até
discutível se sua obra irá perdurar, de tão colada que está no momento
presente. Não vale, igualmente, o argumento de que sua obra tende a ser pequena
devido à força do destino: quando morreu de tuberculose em 1937, Noel Rosa
tinha 26 anos, cinco a menos que Cazuza, e deixou compostas nada menos que 213
músicas, dezenas delas obras-primas que entraram pela eternidade afora. Cazuza
não é Noel, não é um gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e
defeitos que tem a grandeza de alardeá-los em praça pública para chegar a algum
tipo de verdade".
O trecho, que aparece na biografia do cantor e compositor
Cazuza, que morreu há trinta anos, em 7 de julho de 1990, no Rio de Janeiro.
Sua grande mágoa ao ler a revista, como afirma Lucinha Araújo, a autora do
livro Só as Mães são Felizes (em colaboração com Regina Etcheverria), foi
justamente porque a reportagem-entrevista desmereceu sua produção musical.
Naquela época, tanto como hoje, essa comparação era
inevitável. No entanto, feita dessa forma, parece desnecessariamente legar
Cazuza, ainda em vida, a um lugar menor no reino dos céus da música brasileira.
Parece que fica claro quando alguém compara um mito sagrado dos pícaros
azulados da MPB com um jovem cantor contemporâneo e que ainda quebrar lanças
para deixar seu nome inscrito como compositor.
Claro que, três décadas depois, seria absurdo querer
bancar aqui o profeta do acontecido e espinafrar a previsão dos autores do
texto. Mas a comparação aqui me permitiria outras divagações a respeito.
Eu lembro do Cazuza dos anos 80 mas, mesmo assim,
tenho uma lembrança lacunar dos acontecimentos. Recordo de quando “Pro dia
nascer feliz” estourou no rádio (naqueles tempos pré-walkman, eu ainda não
ouvia muito FM), do filme Bete Balanço, do sucesso de “Faz parte do meu show”
(já na fase walkman, que eu tinha gravada numa fita TDK provavelmente das
madrugadas da Ipanema”. Por fim, recordo de “Burguesia”, que tocava nas rádios
mas, pensando hoje, soava mais como um réquiem, tanto; que a nota política da
letra, tão atual hoje, me passou batido. Falo que os anos 80 musicalmente foram
lacunares porue esse disco, como toda a produção de Cazuza, eu só fui ouvir de
verdade muito tempo depois. Mas pouco tempo depois de sua morte, a sua música
parecia passar por um lento esquecimento.
Por isso que essa comparação de Cazuza com Noel Rosa
é bastante interessante. Quando Aracy de Almeida revisitou a obra do Poeta da
Vila, nos anos 50, o autor de “Conversa de Botequim” era, como diz Ruy Castro
em A Noite do Meu Bem, um compositor esquecido. O Noel de hoje, gravado,
regravado, publicado, revisitado e amplamente referenciado em centenas de
trabalhos e escritos, acadêmicos ou não, não era o mesmo Noel que Aracy, sua
maior intérprete, reapresentava nas notes cariocas do Golden Room do Palace.
Quando Noel Rosa morreu, ele também passou por um lento
processo de esquecimento. Além de Aracy, que manteve a memória do criador de “Com
que Roupa” foi seu amigo e radialista Almirante, que apresentava programas de
rádio sobre Noel, programas que viraram o livro No Tempo de Noel Rosa, a
primeira biografia do sambista de Vila Isabel.
Para seus contemporâneos, como diz Ruy Castro, Noel
era lembrado como aquele cara que fazia sambas e que ganhava a vida como um
factorum em emissoras de rádio da Capital Federal. Muitos lembravam dele como
contra-regras aqui e ali, e sempre habitué dos bares do Centro e da Lapa. O
Noel Rosa que conhecemos hoje, e que é citado como o grande criador da canção
brasileira, como diz Luiz Tatit, é uma “criação” recente, mas que não deixa de
pagar tributo à grande importância de Noel para a consolidação da música
brasileira do Século XX.
Onde eu quero chegar com isso? Que a construção do
mito de Noel faz parte de um processo que se formou na longa duração da história
da MPB, e passou por movimentos de esquecimento e rememoração, e da formação de
uma historiografia que colocasse tudo nos seus devidos lugares. A própria
trajetória do estudo da canção numa perspectiva acadêmica é muito recente e
passou por novas formas e olhar para esse passado e trabalhá-lo numa
perspectiva teórica, etc.
A famosa matéria da Veja compara Cazuza com Noel
tratando este de “gênio” e comparando a ambos a partir da quantidade de canções
escritas (Noel morreu em 1937, com 26 anos). Para a Veja, pesava a favor de
Noel a alcunha de “gênio” (a concepção de “genialidade” hoje já amplamente discutível) e de ter
escrito mais sambas. Naturalmente que hoje podemos discutir o Poeta da Vila e
Cazuza muito além desses termos: nem genialidade é um indicador válido, muito menos
o tamanho do corpus da obra. É possível inferir muita coisa além desses
parâmetros.
Da mesma forma como entendemos hoje que Noel
representou um papel seminal no curso da música brasileira como o cancionista que
estabeleceu o samba-canção num status de grande arte, emprestando-lhe um acento,
um sotaque, uma lírica que notabilizou o gênero e faz com que o samba saísse do
estágio das letras ou empoladas (do tempo do Catulo da Paixão Cearense) ou meramente
esquemáticas (com as de Sinhô, voltadas em geral para o teatro de revista). A
partir de Noel, e com seus contemporâneos, o samba-canção se torna o começo da
canção moderna brasileira.
Cazuza, por sua vez, muito além de ser gênio ou ter
uma produção gigantesca, tinha noção do seu papel no contexto do pop dos anos
80 e refletia bastante a respeito de suas influências e do seu processo de
criação em inúmeras entrevistas. Ao fazer a aproximação entre ele e Noel, é
possível realizar aproximações com vistas à encontrar pontos de contato entre
eles, sem necessariamente se propor a uma gincana de qual é o compositor que lava
mais branco, como queria o texto da Veja. Por exemplo, assim, como é válido
pensar no Poeta da Vila no processo de formação do samba-canção e da canção
brasileira, também é válido pensar em como a produção musical de Cazuza foi
importante ao estabelecer uma ligação entre a “linha evolutiva da MPB”
(roubando o termo de Augusto de Campos em O Balanço da Bossa) no
pós-tropicalismo dos anos 70 (quando MPB e rock tateavam uma integração) entre
Tropicália, o samba-canção (ou a canção brasileira) e o rock – uma síntese que
poderia ser explicada analisando-se processualmente na longa duração o
desenvolvimento dessas vertentes na produção musical urbana da MPB na segunda
metade século passado.
A hipótese possível é a de que se a canção, a MPB de
festival e a Tropicália (como proposta inicial de síntese) pareciam excludentes
entre si ao longo dos anos 60 e 70, a música de Cazuza representou, pegando a “linha
evolutiva” da canção (aí puxamos Noel lá dos anos 30), o samba-canção (tão
renegado pelos teóricos da Bossa Nova), o tropicalismo (como proposta de
reelaboração de vertentes culturais concorrentes) e o rock (que influenciou a
MPB dos anos 70 mas que seguiu um caminho particular pela década enquanto
buscava uma visibilidade que, como gênero, só encontraria plenamente nos anos
80 de Cazuza).
Com influências desde a velha guarda (Cartola,
Herivelto Martins via Dalva de Oliveira e outros), passando pela MPB e a
contracultura setentista e toda uma geléia geral alhures (Billie Holiday, Kerouac,
Waly Salomão, Novos Baianos, Caetano, Gil, Macalé, Luiz Melodia, Secós e
Molhados) e o rock (Janis Joplin, Beatles, Stones), tanto no Barão Vermelho
quanto em sua carreira solo, Cazuza pode ser considerado como um dos grandes
compositores brasileiros que realizaram, mesmo que sem essa pretensão em termos
de um projeto, uma síntese nunca antes vista, que uniu MPB e rock. Então,
pegando o mote de Arthur Dapieve, que cunhou o termo “Brock”, Cazuza foi além,
e estabeleceu um compósito que poderíamos chamar de “MPBrock”.
Aqui poderíamos estabelecer paralelos entre Noel e
Cazuza no sentido que ambos, cada um a seu tempo, souberam ter visão de campo e
foram capazes de sintetizarem tendências e elementos que, como diria Sinhô,
estavam voando no ar, e elaborarem algo novo e apontarem para o futuro. Noel
morreu e foi esquecido, depois revisitado e mitificado. Porém, o que ele deixou
a curto prazo foi importante para a maioridade do “samba” no sentido de que
agora existe uma lírica, existe um autor, existe um compositor, e existe uma
forma de falar na música, existe um sotaque. Noel jogou o sarrafo lá na frente.
Se depois surgiu um Evaldo Gouveia, um Herivelto Martins, um Tom Jobim, isso
passou pela “primeira síntese” que estabeleceu a canção via Noel.
A questão do Cazuza é diferente, pois mesmo propondo
que ele foi o agente que sintetizou várias vertentes do passado e do presente
na sua música, existe um contexto e uma longo período onde a MPB caminhou quase
meio século e passou pelo fenômeno de consolidação de indústrias culturais,
globalização etc. Ou seja, existe muito a ser levado em consideração.
Mas a idéia é que se todas essas estéticas e tendências
andaram soltas e quase engalfinhando-se pelo longa duração do tempo, olhando em
retrospectiva, hoje, é como se houvesse
uma tendência à síntese desses elementos, ou que um dia eles teriam que se
encontrar em alguma esquina da vida (como diria Noel). A música de Cazuza, ao
mesmo tempo em que pode ser entendida como um agente-síntese dessas tendências
dentro da música brasileira, agora no âmbito do gênero do rock, num segundo
momento, ele representa a consolidação da “mpbização” do rock ou da “rockização
da MPB” nesse compósito, ao mesmo tempo que representa, também, num movimento
no sentido de dar um status de maioridade para o rock brasileiro que, até pouco
tempo, ainda insistia em ser associado à Jovem Guarda.
Curiosamente ambos, Noel e Cazuza inicialmente
pensavam trilhar outras carreiras e acabaram na música. Enquanto o primeiro,
estudante de Medicina, tinha um grupo, o Bando de Tangarás, o segundo, que
ensaiou Comunicação e Fotografia, entrou para o Barão Vermelho para, depois,
encetar carreira solo. No começo, como ele fala em entrevistas, Cazuza não se
pensava como músico profissional, sequer se considerava um roqueiro. A música
veio por parte de mãe, que era cantora e fã de artistas da Era do Rádio,
influência importante em sua poesia.
Por sinal, se no começo ele até se considerava um
quebra-galhos e entendia que havia uma distância entre a poesia e a letra de
canção, com o tempo, Cazuza passou a valorizar sua produção, na mesma medida
que acreditava que poesia e letra eram contíguas. Mas mais do que isso, ;quis o
destino que ele semeasse sua música dentro do rock, num momento de abertura
política (e cultural), tornando-se figura de proa no Brock.
Sobre sua arte, Gilberto Gill disse certa vez: “[Cazuza]
era um poetaço, admirável. Quando ouvia suas músicas, sempre embaladas no
rótulo do rock, tomava enormes bofetadas. Nesse sentido, só Rita Lee me
provocou emoção igual. Tinha uma coisa totalmente despretensiosa, um modo
corriqueiro de dizer coisas profundas. Era um belo observador do ser humano e
tinha a ousadia de universalizar sua individualidade. Cazuza tinha também a
dimensão da tragédia muito explícita, muito almejada, desejada e produzida pela
dinâmica vital”.
Essa “universalização da individualidade” é possível
vislumbrar em Noel Rosa à sua maneira, no sentido que ele deu voz a um eu
lírico que era ausente antes do Poeta da Vila. Antes, com Sinhô ou outros
sambistas de roda, não poderíamos imaginar uma letra como a de “O Orvalho vem
caindo”, onde Noel exala uma visão chapiliniana da vida enquanto expõe a nota social
dos párias da sociedade.
Assim como Noel emprestou densidade poética para o jovem
samba, Cazuza também soube investir sua música, no esteio do rock, de uma
densidade que contrastava com a simplicidade que o rock propõe, como num wit
singular. Ou, como diz Gil, um “modo corriqueiro de dizer coisas profundas”,
algo que Noel sabia fazer. Esse pode ser, de certa forma, um exemplo de
aproximação fértil que podemos fazer
entre os dois compositores. Os exemplos
são muitos e não caberiam nesse texto para lá de despretencioso e introdutório.
Cazuza dizia que era "filho da Tropicália" e da Jovem
Guarda. Quando morou nos Estados Unidos, somou-se a isso o contato com o rock
internacional de fato. Porém, como ele diz, quando voltou e entrou no Barão,
percebeu que não havia ninguém jovem fazendo música brasileira: “todo mundo é
roqueiro, não tem ninguém que faça samba-canção, precisamos redimir a música
brasileira”.
Como experiência particular, além da mãe fã de Dalva
de Oliveira, ele tinha um pai executivo de gravadora, o que lhe encurtou o
contato com os artistas de seu tempo.
Os
Novos Baianos acamparam lá em casa”, disse ele, “dormiam, iam comer, porque na
época eram fodidos, não tinham onde ficar, e meu pai estava produzindo o
primeiro disco deles. Só fui curtir rock, Janis Joplin, meus ídolos dos Rolling
Stones, lá pelos 14 anos, quando dei uma pirada. Mas antes, o máximo que curtia
era coisas do tipo 'Alone again (naturally)', água com açúcar. Nessa época aos
14 anos, passei umas férias em Londres com um primo mais ajuizado. E foi mais
uma abertura. Então passei a ouvir Janis Joplin o dia inteiro. Quando comecei a
compor, acabei misturando tudo isso. Do menino passarinho com vontade de voar
(Luiz Vieira) a Janis Joplin. Mas com uma diferença. A dor-de-cotovelo da MPB,
mas dando a volta por cima. 'Ah, você não gosta de mim? Então, foda-se também,
eu estou aqui e sou mais gostoso.' O rock da turma nova veio amenizar o lance
down, meio negro, de Lupicínio, do pessoal da antiga, que era a falta de
esperança no amor. O importante não é cantar a perda, mas o amor. Afinal, como
dizia Dalva de Oliveira, 'o amor é o amor’.
Cazuza disse que vislumbrava o rock como a “idéia de
eterna juventude”. Se a influência da MPB era um código vital, o rock era o
canal essencial para essa síntese, era a música da sua geração. O rock podia
ser um modo de vida e uma forma de encontrar-se, de encontrar um sotaque
próprio e o fato de ser roqueiro não exclui as demais influências. Ele foi
pródigo em saber que podia negociar com essas duas vertentes em sua música.
Mesmo dizendo-se estranho ao rock, até pelo fato de se considerar mais velho
que Frejat e seus colegas de banda, quando virou solo, ele sabia que não podia
seguir apenas como um artista de MPB e, ao mesmo tempo, queria ser um intérprete
(“eu sempre fui meio cantor de churrascaria”, dizia). Foi fora do campo do rock
que ele percebeu que aquilo era parte integrante de sua persona como
performador e cancionista. Por isso que ele sempre usou a linguagem do rock na
fase solo quanto sempre dependeu da parceria musical de seus pares do rock nos
discos pós-Barão.
No começo Cazuza dizia não se considerar um cantor,
mas um “cara que canta, que gosta de palco”.
Mais tarde, ele passa por processo
de valorizar o próprio trabalho. Se antes se sentia deslocado por ser o
letrista de fossa do Barão, mais tarde ele reconhece isso como uma virtude. Nas
últimas entrevistas, ao olhar para trás, se reconhece como um ouvinte de MPB
mas que ao misturar, rock, estava ainda preso ao pop da sua geração. “sou um
cara que ouve muita música brasileira, relevou. “Eu não conheço os grupos lá de
fora, não conheço o rock internacional. Conheço Janis Joplin, blues, Stones,
Beatles. Estou super por fora do new wave, pós-punk, etc. Sou um cara mais
ligado nas coisas daqui do que nas de fora. Então, minha influência do rock
veio a partir de Rita Lee, Jovem Guarda, Raul Seixas. Eu me coloco dentro de um
rock que já está sendo feito há muito tempo, um rock mais genuíno”.
Ao falar da questão da fossa nas suas letras de rock,
Cazuza não deixava de falar de sua influência, não deixava de falar de velha
guarda, uma influência singular, e que o singularizava entre seus pares. Isso
não vinha de sua geração mas, sim, de suas influências, era o que havia de
pessoal e intransferível em sua obra: “ acho
até que, atualmente, poucos compositores falam da dor.
Antigamente, tinha aos
montes: Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Cartola, Maysa e tantos
outros. Depois disso, pintou uma fase em que era cafona e antiquado falar do
sofrimento. Não estou sendo pretensioso, não, mas vários estudiosos da música
popular já me disseram que eu trouxe essa coisa da dor-de-cotovelo de volta. É
claro que isso aconteceu com a moldura mais epidérmica do rock. Todo
brasileiro, todo latino-americano, é pego um pouquinho pelo pé nisso de mexer
na ferida do amor. E sempre gosta de temas relacionados a uma paixão que não
deu certo. Esse é o lado diferente e talvez polêmico do meu trabalho”.
Essa fala de Cazuza é importante porque ao falar de
suas influências e da forma como ele captava a essência do que aquelas
compositores do passado traziam de novo em sua visão, ele era um cancionista ou
autor que ia além até da visão daqueles que, num primeiro momento, saudaram
movimentos como a Bossa Nova como o novo em contraposição ao velho como o
samba-canção dos anos 50 ou a velha guarda.
Se os ‘modernos’ excluíram a fossa na triagem da
canção no tempo, Cazuza, nos anos 80, trouxe tudo de volta porque, segundo ele,
aquela fossa era o blues à brasileira, era a forma como se cantava blues em
Português. Esse achado, além de reabilitar boa parte do que foi feito no
passado e faz parte do imaginário da música brasileira, ainda transcende a
visão reducionista ou maquineísta daqueles que trocavam o velho pelo novo sem a
sensibilidade necessária para vislumbrar o todo. Podemos dizer até que essa
visão de jogo que Cazuza teve, esse wit foi tão fundamental para sua música e o
seu papel em sua geração quanto a de Noel em seu tempo.
Esse olhar sintético tem
uma matriz, que é o tropicalismo, ou em suas palavras: “Não sou um poeta
aleatório, e, depois, como bom filho da Tropicália, não consigo admitir a
barreira que as pessoas traçam para distinguir o que é e o que não deixa de ser
MPB. “Não sou um poeta aleatório, e, depois, como bom filho da Tropicália, não
consigo admitir a barreira que as pessoas traçam para distinguir o que é e o
que não deixa de ser MPB." (...) "Eu sou letrista de rock por acaso.
Se houvesse pintado um grupo de samba, em vez do Barão Vermelho, eu estaria
compondo sambas. De qualquer forma, sou muito latino, muito passional, e minha
poesia reflete isso. Posso tentar caminhar no estilo Joy Division, mas quando
vou ver o resultado, está muito Cartola”.
Nas últimas entrevistas, Cazuza já tinha esse
pensamento tropicalizante de atualização da fossa, de ser um autor e intérprete
jovem abordando o tema da fossa e outros temas que pode-se dizer que são e eram
caros à esfera da MPB. Até como contraponto a uma tendência da crítica e
público de tentar emoldurar um clichê do lirismo ligeiro e castiço do pop, ao
fazer a ligação entre o novo e o velho, ele une MPB e rock num momento em que
aquela perdia terreno no campo musical para o este: mpbistas como Ney
Matogrosso, Caetano e Gal, que tiveram que reconfigurar suas carreiras nos anos
80, encontram em Cazuza (antes e depois do Barão) como um momento de
reconhecimento de sua vel;ha arte no novo rock dos anos 80 com ele. O caso de
Gal é sintomático: depois de gravar Sullivan e Massadas com Tim Maia, ela encontra
um retorno à temática social interpretando “Brasil”. Ou Ângela Maria, que
gravou “Tapa na Cara”.
Sobre isso, essa fala de Cazuza fala por si:
Atualizar Lupicínio, trazer essa tradição da
poesia brasileira através de uma abordagem mais moderna, mais próxima de nossa
realidade, nosso 'hoje'. Não posso, por exemplo, repetir Noel Rosa. Os tempos
dele eram mais românticos, as pessoas pediam xícara de açúcar emprestada. Hoje,
as pessoas nem se olham na cara. Houve a mudança do universo comportamental, e
do referencial imediato. Mas o referencial básico fundamental, essencial, para
mim, para minha alma, ainda é o mesmo." "De cara fiquei meio constrangido
por dividir o prêmio da Associação Brasileira dos Produtores de Discos de
melhor letrista da MPB com o Chico Buarque. Sou tarado pela obra dele, acho seu
trabalho incomparável. Mas depois pensei melhor e achei que não devia
menosprezar assim o meu próprio trabalho.
É o momento em que o círculo se fechou. A MPB
consagra o jovem roqueiro e este empresta vitalidade àquela. O próprio ciclo de
Cazuza, que começa em “Bilhetinho Azul” simbolicamente se completa na fase
solo, quando faz parcerias com Gil, Rita Lee, Renato Ladeira, o que mostra como
ele foi o mediador que sintetizou todas as pontas soltas na música num caminho
e pavimentou esse mesmo caminho para que outros intérpretes e cantores pudessem
fazer o mesmo. É imaginar carreiras como as de Marisa Monte, Cássia Eller ou
Nando Reis (pós Titãs) sem essa influência, mesmo que indireta, de síntese
entre o pop o rock a MPB e a canção brasileira. Mas com Cazuza, isso é possível
de se imaginar.
A despeito de comparações, inevitáveis ou não,
Cazuza morreu sabendo que havia chegado lá:
“Acho que entrei para o primeiro time, não tô mais
na reserva. Tô no time principal, que é o sonho de todo jogador – chegar à
primeira divisão." "É que eu descobri que é uma caretice você achar
que poesia e letra são coisas separadas. Você pode ser um poeta musical – são
gêneros de poesia: tem a poesia musical, tem a poesia que vive sem a música.
Acho que minhas letras sobrevivem às músicas. Algumas, pelo menos."
"Tem muita coisa que eu não gravei, muita coisa inédita. Mas no dia em que
eu morrer algumas pessoas vão na minha gaveta e pegam. Mas eu acho que vou
deixar até um testamento para rasgarem, queimarem tudo, porque eu acho uma
sacanagem quando um cara morre e deixa uma obra – não tô falando que eu tenho
uma obra, porque eu ainda não tenho. Daqui a dez anos eu vou ter uma obra...”.
Enfim, o mote da comparação entre Noel e Cazuza é interessante porque pode ser ampliada dentro de uma pesquisa sobre música que possa lidar com a produção deste dentro do que ele tem de próprio e aquilo que o torna parte de um processo mais amplo, e isso permitiria um estudo muito mais fértil do que uma mera comparação apressdada, preconceituosa e fora de contexto.
Em oito anos de carreira, segundo levantamento de
Lucinha Araújo, Cazuza deixou 126 músicas gravadas por ele, sendo trinta e quatro por outros
intérpretes e mais de 60 inéditas.
Referências
Lucinha Araújo e Regina Etcheverria. Cazuza - Só as
Mães são felizes. Globo, 1997.