Tuesday, March 05, 2019

O Trenzinho do Riacho

Antiga Estação do Riacho, na Cidade Baixa


Achei esses dias numa troca de livros um daqueles exemplares curiosíssimos do Almanaque do Correio do Povo. O de 1980 traz uma matéria assinada pelo falecido Amaro Júnior sobre a antiga linha de trem que existia em Porto Alegre e que ligava o Centro à Zona Sul.

Um parêntese: o Amaro ninguém mais o tem como referência. Ele foi junto com o Archymedes Fortini e o Túlio De Rose o que poderíamos chamar de os primeiros jornalistas esportivos do Rio Grande do Sul e numa época que sequer existiam federações de desporto. O Amaro era especializado em basquete tendo sido inclusive instrutor de ginástica e treinador.

Então me chamou a atenção ver um texto dele versando sobre a história da cidade - fato aliás que não deveria me espantar, já que, no assunto, se com efeito ele não pegou carona na Arca de Noé, pelo menos digamos que pisou no barro.

O chamado "trenzinho do riacho" como era chamado parecia uma locomotiva de mini-mundo. É importante que imaginemos que, naquelas priscas eras, não existiam muitas servidões que levassem o pessoal da península central - o núcleo duro daquele burgo açoriano com os arrabaldes da capital gaúcha. Para se ter uma ideia, era impossível ir à Tristeza à um século e picos atrás se não fosse à cavalo. O trem era a forma mais racional para realizar o trajeto.

Construída em 1912, a estação ficava passando a ponte de pedra, onde hoje fica o monumento aos Açorianos. Dali vinham e chegavam as composições. Havia desde os vagões de passageiros, quase sempre com gente saindo pelo ladrão até os que levavam os cubos de matéria fecal do Riacho até a estação da Ponta do Melo [hoje o começo da Pinheiro Borda] onde o cocô do cidadão de bem porto-alegrense era solenemente despejado. Porém, é importante salientar que, na verdade, a linha foi idealizada, ainda em 1896, apenas e tão somente para levar cubos de dejetos para as margens da Zona Sul.

Aos fins de semana, a procura pelo transporte era grande: havia os que iam passar o dia no clube Tristezense e os veranistas de fim-de-semana, que iam à Pedra Redonda.

Importante lembrar [imaginar] que o Guaíba era um rio vivo, e essa vida consistia numa relação muito grande entre o porto-alegrense e o Guaíba, no tempo que suas águas eram bucolicamente balneáveis e parnasianamente límpidas, ou seja, era o paraíso na terra.

Os horários eram dois: um às oito da manhã e o outro, às quatro da tarde. Nos fins de semana, eram quatro horários: outro às dez e o quarto, às duas.

A demanda de passageiros era grande, e sempre havia gente em pé que, com uma paciência bizantina, tinha que aguentar uma viagem que ia de quarenta minutos ou mais, contando as baldeações, como a no Asilo Padre Cacique que, naquele tempo, ficava na beirinha do rio.

Aliás, quase todo o trajeto era pela margem, pegando passageiros também no fim da José de Alencar ali onde hoje fica o Viaduto [da Marli, a origem do nome fica para um futuro post]. No Cristal, ele parava na altura do Hospital Militar e, mais adiante, na Vila Assunção, onde também havia um nosocômio.

Foi numa segunda etapa que a linha foi estendida até a Pedra Redonda [graças à linha, este bairro tornou-se balneário da cidade muito antes de Ipanema, e era então considerada por muitos, segundo Roberto Pellin no livro Revivendo a Tristeza, como a melhor das praias do Guaíba], que atendia um número enorme de gente que ia para o que era uma espécie de Lido porto-alegrense.

Diz o Amaro: "nessa extensão, o trem passava pelo fundo de um corte de morro, dando a impressão de túnel, até chegar à estação do balneário, onde existia um redondel de ferro no qual colocavam a locomotiva para virar de lado. A operação era feita "a muque" e nela colaborava toda a rapaziada que se encontrasse no local na ocasião. Era tudo brincadeira e muitos até esperavam a chegada do trenzinho especialmente para ajudar no trabalho".

Já numa terceira fase, já sob o controle da Prefeitura [originalmente, como era comum naqueles tempos, a linha era particular. Depois ela seria integrada à Viação Férrea] foi criado um ramal até a Vila Nova. Como se sabe, a região era - e ainda é - um polo produtor de hortifrutis. Porém, a experiência não deu lá muito certo e as operações não duraram por muito tempo. Segundo Walter Spalding, o tal ramal foi criado por fins eleitoreiros já que um dos grandes benfeitores do bairro, Vicente Monteggia [hoje nome de avenida] prometera votos para o candidato a intendente, Otávio Rocha.

Integrada à Viação Férrea, a linha foi estendida do Riacho até o Mercado, com a construção da estação Idelfonso Pinto [em 1927, o Amaro não chega a ser preciso com relação à datas em seu texto], que os mais velhos recordam, ficava onde hoje é a parada do 43 da Carris. Essa estação foi idealizada porque, dada a demanda de passageiros, a parada do Riacho era longe demais para quem vinha de fora.

Diz o Amaro: "passou então o trenzinho a sair do referido ponto, seguindo pela avenida Mauá, bem junto aos armazéns do Cais [os trilhos ainda estão lá, como única lembrança da trilha, hoje totalmente desaparecida] aproveitando os trilhos já existentes que transportavam mercadorias vindas por via férrea para embarque nos vapores surtos na zona portuária. Atravessava o trem os terrenos da saudosa Praça da Harmonia [hoje o limite entre a praça Brigadeiro Sampaio e a Mauá que, provavelmente na época que o Amaro bateu estas laudas, ainda pertencia ao antigo III Exército que, até meados dos anos 70, mantinha um tenebroso paiol na região onde outrora ficava a praça original] entrava na rua General Salustiano, passando em frente da antiga Casa de Correção [hoje a modernosa praça do Aeromóvel] e trafegando, após, pela Pantaleão Teles [Washington Luís] ia fazer a primeira parada na sua anterior estação inicial".

Contudo, para chegar lá, o trem tinha que atravessar o riacho. Por isso, por algum tempo existiu ali, além da vetusta ponte de pedra, uma outra, de ferro, especialmente para a passagem das composições.

Claro que, nessa época, a locomotiva já não levava bosta para o Cristal. Ela ficava defronte à esquina da Pantaleão com a Espírito Santo, onde hoje corre a pista da Perimetral.

Mesmo depois de ter sido extinto, em meados de década de 30, o tráfego regular para a Zona Sul, a ponte de ferro e a estação do Centro eram usadas. A Idelfonso Pinto serviu, até sua demolição, nos anos 70, como depósito e a do Riacho, como garagem para as composições da Viação Férrea [o trecho que compreendia entre o Cristal e a Pedra Redonda posteriormente seriam arrendado à particulares] que, segundo Amaro Júnior, "superlotavam a acanhada estação de Porto Alegre no Caminho Novo [Voluntários da Pátria] esquina Conceição hoje também desaparecida".

Parece piada, mas Porto Alegre já foi uma cidade legal.





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