Thursday, June 16, 2016

Amor e Morte





Não tenho palavras para descrever o livro Julio Reny – Histórias de Amor & Morte. Na verdade, tenho. Como eu havia escrito em alguma postagem anterior, eu cheguei a integrar a produção do Gauleses Irredutíveis, em 2000. Não sei se por sorte, ou porque eu degravava as entrevistas rápido, recebia sempre novas fitas para ouvir e transcrever, eu creio que peguei as melhores — entre elas, a do Júlio.

O que o Cristiano Bastos (o "co-autor da autobiografia) descreve no começo do livro, mostrando como foi o primeiro dele com o cara foi o começo do que eu ouvi naquela hora (hora e meia) de entrevista. Não me recordo de quantas eu transcrevi mas, assim como ele explica, à guisa de apresentação, mas aquela foi especial. eu cheguei a guardar o texto inteiro, era como entrar num filme num cinema vazio, tipo o Camilo Mortágua: a saga de um herói quixotesco.

Às vezes, eu passava os olhos nas entrevistas transcritas e me divertia com as histórias que, infelizmente, por motivos de razão editorial, foram naturalmente decupadas. Muita coisa que ele disse acabou também ficando de fora do Gauleses.

Tempos depois, trocando de computador por computador, eu perdi os arquivos dos Gauleses. Mas sempre tive curiosidade como relação às confissões do autor de "Amor e Morte". Algo dentro de mim me dizia que, de todos aqueles relatos, o dele dava um livro. Como um artista da linguagem, ele é um sujeito que fala como quem escreve. Naquela hora e meia de gravação, eu virei fã incondicional daquele cara que parecia um personagem saído de algum conto do Sérgio Faraco.

Mais do que isso: o Júlio Reny do Histórias de Amor e Morte é uma biografia beatnik. Ele parece um amálgama de Dean Moriarty com Jack Kerouac. de um lado, ele é o expedicionário musical; do outro, ele é o protagonista das cenas chaplinianas de Cassady que o autor de On The Road relata.

Na verdade, se formos relacionar os Gauleses com o Histórias de Amor e Morte, a gente descobre que a espinha dorsal de todo aquele movimento musical que surgiu em Porto Alegre, a partir do começo dos anos 80, foi o Júlio. Foi na casa dele na Santana com a Ipiranga que o Wander Wildner apareceu como o primeiro punk da cidade.

Todo mundo passou pela garagem da Santana, todos. Dos Replicantes aos Engenheiros do Hawaii. No fim das contas, a biografia dele é o alicerce daquela história. Inclusive, o livro é impressionante porque, a um só tempo, Júlio é o narrador daquela história e, por ironia do destino, ele, que foi o sujeito que passou a tocha da geração "Deu Prá Ti Anos 70" para a geração "Rock Grande do Sul" perdeu o que ele chama de "a corrida do ouro", quando as gravadoras investiram em paus de sebo para lançar as bandas gaúchas, ele ficou de fora.

Ele explica que, em parte, isso foi fruto de uma apresentação malfadada — que fez com que empresários não se interessassem pelo Expresso Oriente. Em parte, porque ele talvez fosse considerado "velho" demais para aquela geração. Por outra, ele havia sido vítima de magia negra (primeira de muitas outras, que, segundo o livro, vieram depois)). Fato que é isso é simbólico. Uma parte dele era oriunda da fase anterior, imbricada com a MPB setentista: Reny tinha um pouco do compositor da cepa do Nei Lisboa e do Nelson Coelho de Castro. Ao mesmo tempo, ele era um bandleader integrado ao espírito rock.

Mas ele não perdeu a corrida: ele não perdeu a integridade artística. Isso não é a raposa e as uvas. Talvez o que faça sentido hoje é, com efeito, analisar toda a trajetória e os percalços da carreira do Júlio e ver que tudo faz sentido. O corolário disso tudo, a sua extensa obra está aí. O Histórias de Amor e Morte não é só uma autobiografia: é a caminhada de um grande compositor flagrado em seu processo de criação, tirando da pedra as lições da vida.

No fim das contas, ele foi o Moisés que não chegou à Terra Prometida, mas como é da trajetória dos grandes bodisatvas, chegar não importa: o que importa é o caminho e aprender com ele. Preterido, mesmo que isso tenha sido, de certa forma, um evento traumático, ele elaborou aquilo de forma construtiva. Decidiu assumir o lado outsider, virou radialista (na melhor época da Ipanema) e passou a produzir todo o trabalho como self-made man desde então — produção que chega até hoje, quando justamente as multinacionais do disco e o jabá radiofônico morreram. Hoje, o Júlio Reny é moderno. O que muitos tentam entender hoje, num mundo em que não existem mais gravadoras, ele já sabia: o tempo deu razão à ele.








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